Entrevista com Magali Cunha aborda a ascendência evangélica no país, além da relação entre o protestantismo e o capitalismo. 

Fundado na Alemanha em 1517, o protestantismo chega ao Brasil no Brasil Império trazido por ingleses, alemães e majoritariamente pelos americanos. Aqui foram instaladas escolas e igrejas para divulgar o novo modo de processar a fé, inclusive com missões de evangelização junto aos povos originários. De lá pra cá, o número de fiéis evangélicos só vem aumentando no país.

De acordo com o estudo do demógrafo José Eustáquio Alves, o número de brasileiros adeptos da religião evangélica cresce em média 0,8% ao ano desde 2010. Se o crescimento se mantiver, a previsão é que em 2032 os evangélicos devem ser a maioria no país pela primeira vez.

Para Magali Cunha, pesquisadora em comunicação, religião e política, a ascendência evangélica pode ser também explicada pela ocupação dos meios de comunicação. “Isso é parte de um expressivo processo de midiatização, que cada vez mais conta com aparatos para difundir seus discursos e vender seus produtos”, afirma.

Outro fenômeno que chama atenção é o enriquecimento de alguns líderes evangélicos, principalmente da vertente neopentecostal. Em 2018, a revista Forbes publicou a lista dos pastores evangélicos mais ricos do Brasil. Cinco fundadores de igrejas pentecostais no país aparecem com fortunas avaliadas entre R$130 milhões e R$1,9 bilhão. Ao deparar com esses cifrões, a máxima “para ser rico, basta abrir uma Igreja” parece fazer sentido, principalmente se a vertente religiosa for a neopentecostal. O acúmulo do capital na mão de poucos através da religião soa imoral quando parte desse dinheiro vem dos fiéis, muitos deles de baixa renda. É a força do capitalismo infiltrada nas instituições e crenças religiosas mantenedoras da desigualdade social.

“Os pastores são milionários por conta de valores arrecadados nas igrejas, na lógica da teologia da prosperidade que é uma versão religiosa do capitalismo. A bênção financeira é apresentada como uma troca, ou seja, se o fiel doa para a Igreja ele será recompensado por Deus com recursos materiais”, explica Cunha. 

Além do poder financeiro, evangélicos almejam poder político. O resultado das últimas eleições gerais mostrou uma ampliação da base evangélica na política. Mas para quem acha que essa ocupação é nova, engana-se. A bancada evangélica foi criada em 1986 e a cada novo governo foi preenchendo os espaços até chegar a atual ocupação de seis ministérios no governo Bolsonaro.

Para esclarecer sobre a interferência religiosa na política, a relação entre capitalismo e protestantismo e o enriquecimento de líderes religiosos, entrevistamos Magali Cunha, pesquisadora em comunicação, religião e política, que atua na Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e no Instituto de Estudos da Religião (ISER).

Magali Cunha é pesquisadora em comunicação, religião e política no Instituto de Estudos da Religião (ISER)/Foto: arquivo pessoal

Catarinas: Como podemos dividir os movimentos evangélicos?
Magali Cunha: Há fundamentalmente o grupo dos protestantes históricos de imigração e de missão (batistas, metodistas, presbiterianos, luteranos, anglicanos, adventistas), os pentecostais históricos (Assembléias de Deus, Congregação Cristã do Brasil, Evangelho Quadrangular, Deus é Amor, entre outras) e os neopentecostais (Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça, Renascer em Cristo, entre outras). Estes últimos os que pregam a prosperidade material, cura divina e práticas de exorcismo.

Como esses grupos conservadores religiosos têm tanta força no Brasil?
O fundamentalismo está no DNA dos evangélicos brasileiros por conta da forma como os missionários trouxeram esta perspectiva de fé para o Brasil, com base na moralidade puritanado controle do corpo e da sexualidade. As igrejas pentecostais, quando chegaram ao Brasil, conseguiam fazer o encontro com a cultura brasileira muito mais forte do que as igrejas históricas. As históricas eram mais ancoradas naracionalidade da fé, na razão. As pentecostais vão ao encontro da emoção, elas conseguiram fazer uma síntese do catolicismo, das religiões indígenas e africanas, como que “colocando tudo num liquidificador” de discursos e práticas e trabalham com a emoção.

Podemos dizer que a neopentecostal é a maior daqui?
Não, este grupo é o que mais tem crescido no Brasil em termos de quantidade de igrejas, presença nas mídias, na política, mas as maiores igrejas, em termos numéricos, são as Assembleias de Deus. Elas têm uma capilaridade maior e muita força política também. No ramo histórico, a Igreja Batista é que tem grande força. 

De onde vem esse crescimento das igrejas neopentecostais?
O crescimento das igrejas neopentecostais no Brasil é parte de uma expressiva  popularização da fé evangélica com a criação de inúmeras igrejas, acompanhando o crescimento urbano do país, acompanhado de um processo de midiatização, que cada vez mais conta com aparatos para difundir discursos e vender produtos da parte de algumas igrejas. Estas usam todo esse aparato midiático, mas onde este grupo de igreajs realmente interage é dentro dos templos, talvez seja por isso essa luta em manter as igrejas e cultos funcionando mesmo na pandemia.

São eles que fazem questão de construir templos gigantes, tudo parece ser megalomaníaco…
Na lógica da teologia da prosperidade, quanto maior o patrimônio, mais abençoado por Deus a pessoa ou grupo é. A bênção financeira é compreendida como o desejo divino, como uma troca, ou seja, se o fiel doa para a Igreja ele será recompensado por Deus com recursos materiais. É uma versão religiosa do capitalismo e junto vem a teologia ancorada da guerra espiritual, no entendimento de que se tem que lutar contra os poderes que impedem que pessoas alcancem a felicidade, seja a falta de dinheiro, a falta de saúde… dá pra encher os dedos das mãos na contagem das grandes Igrejas e lideranças das mega igrejas, não são o todo do pentecostalismo porque há uma imensidão de igrejas que funcionam nas periferias, nas favelas e realmente se envolvem com as comunidades, seja dando abrigo, comida, atuando como suporte para as mazelas humanas.

É, há uma grande quantidade dessas Igrejas menores espalhadas pelas cidades. 
Sim, muitas destas igrejas pequenas são, porém, flutuantes, elas estão ancoradas em uma liderança que a estabeleceu e funciona naquela determinada lojinha que acaba sendo  três, quatro igrejas diferentes. Este grupo é muito frágil.

Por que algumas Igrejas foram contra o lockdown e contra a proibição de cultos durante a pandemia?
Há uma certa arrogância de certas lideranças no movimento pentecostal de que a verdade está ali, o certo está ali, o que salva está ali, e as igrejas têm que ser mantidas abertas pois garantem a presença de Deus na vida das pessoas, do bairro, da cidade. Tenho visto matérias que dizem que é por conta do dinheiro que se busca manter as igrejas abertas. Pode até ser em alguns casos (há que se pagar as contas, a manutenção do templo), mas o que conta mesmo é a manutenção da visibilidade, de que a igreja segue existindo e seus pastores liderando.

Quando se inicia a entrada dos evangélicos na política?
Com o fim da ditadura militar e a definição por uma nova Constituição, os evangélicos não queriam que a Igreja Católica tivesse a hegemonia neste processo e assim formaram sua base. Foi então na Constituição de 1988 que se formou a primeira bancada evangélica. Nos anos 90, altos e baixos com casos de fisiologismo denunciados. De lá pra cá, houve a consolidação da bancada, com alianças fortes com católicos, que criaram sua bancada no Congresso recentemente, em 2013. Este grupo em aliança tem trabalhado fortemente para bloquear avanços nas pautas relacionadas à moralidade sexual que defendem.

O movimento se tornou tão forte ao ponto de ajudar nas eleições?
Sim. O surgimento do Movimento Evangélico Progressista nos anos 90 como apoio à candidatura de Lula em 1989 e em reação ao fisiologismo da bancada evangélica foi muito importante para levar Lula à Presidência em 2002. Quando o Lula assume, ele estabelece diálogo com lideranças evangélicas e leva ao Palácio do Planalto esse grupo que até então estava somente no Congresso, entre eles os líderes religiosos neopentecostais e midiáticos. Foi este processo que levou à nomeação do primeiro ministro evangélico no governo Dilma, o senador bispo Marcelo Crivella (Pesca) e depois o Ministro do Esporte, deputado federal bispo George Hilton, ambos da Igreja Universal do Reino de Deus.

E quando eles não se veem mais representados eles debandam…
Sim,  Dilma Rousseff acabou “levando uma rasteira” desse mesmo grupo religioso, os políticos midiáticos, do poder patrimonial, que compunham a base do governo, em 2016. Esses grupos, não só a Universal do Reino de Deus, mas também a Assembleia de Deus têm interesse em poder. Quem eles veem um partido ou liderança que está flutuando para o poder é com quem eles estarão. Quando viram que o PT tendia a cair, no processo de impeachment de Dilma, eles se aproximaram do vice-presidente Temer. E agora com o governo Bolsonaro, a quem deram total apoio, alguns já estão se retirando, como mostrou a reportagem do O Globo com a diminuição de apoio de evangélicos ao governo dele.

Como isso se ampliou no governo Bolsonaro?
As igrejas que deram suporte público a Jair Bolsonaro são as pentecostais, as mais midiáticas e empresariais. No entanto, Bolsonaro já nomeou sete ministros evangélicos (atualmente são seis), em ministérios estratégicos, de viés ideológico, como o da Mulher, Família e Direitos Humanos, da Justiça, da Educação, Casa Civil, Secretaria de Governo, das Comunicações. Todos estes ministros são vinculados a igrejas históricas e não são pentecostais, da base mais forte de apoio público ao governo: são batistas e presbiterianos, um luterano. O interesse político de pentecostais passa pelos seus interesses na manutenção do poder patrimonial e de espaço nas mídias de suas igrejas, não necessariamente em cargos. O governo, por seu lado, quer respeitabilidade por isso nomeia evangélicos ligados a igrejas históricas que têm capacitação técnica para seus cargos e são credenciados, o que é mais difícil encontrar entre quadros pentecostais.

Mesmo assim parece haver uma debandada desse grupo em relação à política do Bolsonaro…
As pesquisas dizem que há mudanças, que o apoio caiu pela metade, chegando a 30% dos evangélicos que apoiam o presidente, o que já foi 60%. Ainda há um número alto de apoio, na verdade, há um núcleo. Quando Bolsonaro chegou ao poder houve uma articulação reacionária dos setores da elite e da mídia brasileiras contra o que vinha sendo construído em termos de direitos e políticas públicas desde Fernando Henrique Cardoso. Uma reação que vem numa conjunção, da Operação Lava Jato, a judicialização da política, antes o “Mensalão”. É como se as classes dominantes, o empresariado, tivessem dado um basta. Mas esses mesmos grupos hoje veem que o que eles fizeram trouxe terríveis consequências para vida do país, porque agora afeta a vida deles todos, a imagem do Brasil está manchada.

O Brasil é um país colonizado, temos um ranço colonial que não morreu, assentado no patriarcado e no latifúndio dos coronéis. Temos coronéis dentro da política, nas igrejas, na família e temos o racismo como base. O bolsonarismo soube trabalhar com isto muito bem. O bolsonarismo é uma ideologia que foi muito bem construída na imagem do Bolsonaro, é maior do que ele, essa ideia de que é com vingança que se resolve as coisas, com armas, que os negros têm é que trabalhar na limpeza e não estar nas Universidades. É uma ideologia que está arraigada na elite, na classe média que quer ser elite e nos pobres que se acostumaram a estar ali.

Ainda há esperança?
Tem sim, sempre houve, mas foi na base da resistência que as coisas foram transformadas. Esses 70% que estão fora desse apoio incondicional é onde temos oportunidade de reverter, com processo de educação e construir um momento novo. 

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