O que assistimos no palanque eleitoral que Bolsonaro fez das comemorações oficiais do bicentenário da independência, neste 7 de setembro de 2022, é a expressão máxima do que a antropóloga Rita Segato chamou de reinstalação de um “fanatismo patriarcal militante que parecia estar ausente para todo sempre”. Em seu livro La guerra contra las mujeres (2016), a pesquisadora argentina nos alerta para o fato de que países da América Latina e América Central, em destaque o Brasil, passam por um intenso processo de “mafialização da política”, momento em que os colonizados exercem sua “hipertrofia da masculinidade”. Uma masculinidade bélica que reproduz as violências coloniais direcionadas aos corpos dominados e que para ser reafirmada precisa de espetáculos de crueldade diante de seus pares.
Espetáculos como esse que vimos no 7 de setembro mostram como Bolsonaro tem uma capacidade infinita de estender o limite do que consideramos suportável. E como já refletimos em outro momento, quanto mais afirmamos que agora é o limite, mais flexível tornamos a fronteira da violência.
Pois bem, o que era para ser a comemoração de 200 anos de Independência do Brasil mostrou-se o oposto disso, a afirmação do colonialismo mais primitivo, aquele que faz do corpo das mulheres seu território primeiro, aquele que afirma as violências históricas de um país que dizimou parte de sua população originária e estuprou a outra parte.
Bolsonaro exerceu o que Segato chama de “pedagogia da violência”, firmando pactos de masculinidade e afirmando a mensagem doutrinadora que o capitalismo patriarcal de alta intensidade necessita impor à sociedade. São alvos todas as mulheres, mas especialmente as que não estão representadas na figura de Michelle Bolsonaro, as que não são brancas, heterossexuais, ricas, magras, jovens, as que não ocupam o padrão estético de disciplinamento e feminilidade de uma “princesa”, as que não são subservientes a seus maridos, ou ainda as que não são casadas.
Bolsonaro não direcionou sua exaltação às mulheres que passam fome e presenciam seus filhos chorar por não ter o que comer. Isso porque seu discurso falsário em defesa da família não contempla essas pessoas pobres, pretas, periféricas que, em sua grande maioria, sustentam seus lares sozinhas, sem marido, sem assistência do Estado. Tampouco, as mulheres indígenas que traçam cotidianas batalhas em defesa de territórios e da vida de seus povos.
Como se estivesse em um churrasco de domingo com seus pares, dividiu as brasileiras ao propor uma comparação entre Michelle Bolsonaro, e Rosângela da Silva – conhecida como Janja, esposa de Lula – convocando à exaltação das obedientes e ao ataque contra as que devem ser inferiorizadas – as que merecem ser estupradas, agredidas e, em última instância, ser possíveis alvos de feminicídio. Em comum a todas o lugar da servitude, em que pesem as hierarquias sociais de classe, sexualidade e raça. É um recado de encorajamento e compadrinhamento aos pares, colonizados e colonizadores, para que disciplinem suas mulheres, sejam elas esposas, filhas, sobrinhas e netas.
Já vimos um filme parecido durante a preparação para o golpe de Temer com a icônica manchete da Revista Veja em elogio ao perfil bela, recatada e do lar de Marcela – ante a personalidade “explosiva” da presidenta Dilma na capa da Revista Isto é, que entrou para a história como documento da misoginia fundadora do golpe.
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Sim, como já tratamos aqui, nos acostumamos a ver homens conservadores se relacionando com mulheres muito mais jovens, instrumentalizando-as como troféu garantidor de um nível de masculinidade desejado, como presenciamos com o ex-presidente Michel Temer e agora com Bolsonaro.
Esta masculinidade valiosa, atrelada a uma potência sexual que é facilmente substituída pelo poder político, econômico, intelectual, moral ou bélico, tributa ao feminino a subserviência, subordinação e cuidado.
Nesse cenário, recai sobre as mulheres o peso de um padrão estético só possível de ser atingido em um período curto de existência, enquanto potencialmente reprodutivas e sexualmente ativas, já que é a idade de suas companheiras o que valida, aos olhos da sociedade marcada pelo machismo, a afirmação social do poder.
O governo de Bolsonaro, aliado às milícias, aos discursos de ódio exacerbados, à releitura da colonização dos corpos femininos e não brancos, promove uma frente poderosa e perversa: uma guerra contra as mulheres, mas também mira seu armamento contra a democracia e toda a sociedade brasileira. Como nos explicou Segato, a construção colonial moderna que valora o destino das mulheres precisa ser desmantelada, porque expressa os males que afetam a sociedade contemporânea como um todo.
“Os ataques que as mulheres sofrem diariamente em casa e em novas formas informais de guerra, são o termômetro que permite diagnosticar as transições históricas da sociedade”, afirmou Segato.
Segundo analisa a antropóloga, nas guerras informais contemporâneas, cuja expressão máxima é o estupro e o feminicídio, o corpo da mulher é um lugar em que se inscreve a potência jurisdicional dos homens e da máfia: a soberania sobre um território. O exercício da crueldade sobre o corpo das mulheres, porém, também se estende a crimes homofóbicos, lesbofóbicos e transfóbicos. Violências que nada mais são do que o “disciplinamento que as forças patriarcais impõem a todos que moramos à margem da política, de crimes do patriarcado colonial moderno de alta intensidade, contra tudo o que desestabiliza”.
Mesmo que perca as eleições – sendo as mulheres as grandes responsáveis por esse feito – Bolsonaro solidifica o legado do fanatismo patriarcal militante como estratégia de continuidade do poder da extrema direita, latifundiária, fascista, fundamentalista, armamentista, militarista e paramilitar.
Nesta conformação do capitalismo em sua fase apocalíptica – de exploração e acumulação de riquezas sem freio – como descreveu a antropóloga, o patriarcado colonial moderno de alta intensidade exerce caráter funcional e central por meio do disciplinamento e pedagogia da crueldade para que esses grupos continuem a tomar de assalto o Estado.
Em nome da família (deles) vão persistir no parlamento, nos governos, nas polícias, nas milícias, nas ruas, nas vizinhanças, dentro das nossas casas. Ancorados no acionador do pânico moral “ideologia de gênero”, violentamente contrários ao modo de vida que não obedeça ao disciplinamento da heterossexualidade compulsória e da branquitude, serão eles os divisores e destruidores de laços familiares e de qualquer possibilidade de convívio harmônico em sociedade. Armados, espetacularmente agressivos e prontos para expressarem seus pactos mafiosos de masculinidade que lhes garanta lugar na confraria. O chamado ao coro de “imbrochável”, mais do que uma chacota jocosa desproporcional ao cargo, é o apito de cachorro que convoca ao exercício da violência sem precedentes e sem limites.