Hoje, 19 de abril, data oficial que o Estado brasileiro elegeu para celebrar o “Dia do Índio”, o Portal Catarinas retoma a série “Filhas da Terra”. Em 2021, a série não terá o foco nos desafios para sobrevivência das mulheres indígenas durante a pandemia de Covid-19. Vamos ampliar para questões envolvendo território, corpo, saúde, entre outras. Sabemos que não há motivos para celebração no contexto etnocida no qual os Povos Indígenas estão imersos desde a colonização, aproveitamos, então, o dia para ampliar as vozes indígenas e trazer a denúncia de Amaue Jacintho, indígena Guarani Nhandeva, do Paraná. 

Amaue Jacintho, 34 anos, é estudante de Ciência Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL). No início da pandemia, em abril 2020, após um ano observando violências e injustiças na Terra Indígena (TI) São Jerônimo, no Norte do Paraná, a indígena Guarani Nhandeva decidiu fazer publicações em suas redes sociais dando apoio às mulheres vítimas de ameaças, xingamentos, espancamentos, entre outras violações. De acordo com ela, três mulheres indígenas e suas famílias tiveram suas casas incendiadas e foram expulsas da Terra Indígena por não aceitarem as opressões patriarcais, machistas e misóginas que vinham sofrendo. O conflito acontece em uma terra dividida por três povos: Guarani, Kaingang e Xetá.

Após as primeiras postagem, o cacique João Cândido da Silva, indígena Kaingang que está há 15 anos na liderança, foi até a casa de Amaue com capangas para tirar satisfações, utilizando-se de coerção para intimidar a jovem, conforme ela relatou para o Portal Catarinas. Além disso, Amaue também nos contou que o cacique organizou uma milícia armada de indígenas e não indígenas para sustentar suas ações. Sabemos que a população indígena é historicamente vulnerabilizada e, possivelmente, há outros poderes sustentando a ação. Até o final dessa apuração, no entanto, não haviam provas sobre como o cacique está adquirindo as armas. 

Localização de São Jerônimo da Serra no Paraná / Imagem: Google Maps

A TI São Jerônimo é um território com aproximadamente 700 indígenas que está em disputa para a construção de diversas hidrelétricas na região com o apoio de grupos políticos, alguns desses projetos foram embargados por ações judiciais. Grande parte dos moradores do local vivem o terror e o medo das leis coronelistas e práticas de violência cotidiana sofridas nos últimos anos. 

“Eu só vim postar numa rede social qual era a função de lideranças no Brasil, no geral, que é proteger o seu povo e cuidar durante a pandemia. Eu fiz essa postagem numa rede social, foi quando o cacique viu a postagem e foi na porta da minha casa me questionar sobre. Ele chegou com mais duas lideranças com uma câmera me filmando, autorizando um deles a me filmar, e começou a falar sobre como ele agia dentro daquela aldeia. Eu pedi para ele não filmar porque eu não estava autorizando ele a usar a minha imagem e já começou por aí a violação, ele mandou a liderança dele continuar filmando e já começou a me falar como que era a situação dentro daquela aldeia, em que ele mandava e que a vontade dele era lei”, relata.

A intensificação das ameaças e agressões

O atrito se intensificou e, após cinco dias, a situação se tornou insustentável. Amaue não apagou as postagens e precisou se retirar da Terra Indígena, fugindo somente com a roupa do corpo e os documentos junto com o seu marido Guarani – que nasceu e se criou na TI de São Jerônimo. As perseguições por parte do cacique João Cândido da Silva continuaram.

“Depois eu vim a saber que ele entrou em contato com o cacique da minha aldeia de origem, que não me queria na cidade de São Jerônimo da Serra também, porque é próxima ao território dele, entrou em contato com o meu pai, falou que eu não duraria muito tempo, que era para o meu pai dar um jeito de me retirar da cidade São Jerônimo, não mais do território, porque eu já tinha saído do território. Meus pais ficaram muito preocupados e eu optei por passar uns dias na casa do meu irmão em Santa Amélia até que a poeira baixasse, que o cacique me esquecesse. Fiquei ali por um tempo em Santa Amélia. Não pude entrar no Laranjinha, porque as barreiras de contenção do corona já tinham sido formadas e quem estava fora do território já não podia entrar em mais nenhum território”, esclarece.

Ele é nascida e criada na Terra Indígena Yvyporã Laranjinha, no Norte do Paraná, mas foi morar na Terra Indígena São Jerônimo em razão de seu casamento. Passados dois meses, Amaue e o marido alugaram uma casa na cidade de São Jerônimo da Serra em razão da proximidade com a família e para que o companheiro pudesse conseguir um emprego, já que eles conheciam muitas pessoas na região. Nesse período, por duas vezes, integrantes do grupo de João Cândido da Silva foram até a casa da indígena. Após as intercorrências, Amaue registrou um Boletim de Ocorrência por ameaça na Delegacia de Polícia de São Jerônimo da Serra, Norte do Paraná.

“Eu liguei, entrei em contato com o administrador da FUNAI de Londrina também, avisei sobre o caso, pedi para ele entrar em contato com o cacique, falei para ele parar com a perseguição que a gente não estava fazendo nada contra ele, a gente estava ali construindo a nossa vida em São Jerônimo, na cidade, então ele não precisava se preocupar comigo. Nisso eu e meu marido já estávamos proibidos de entrar na aldeia, não podia entrar de forma alguma”, conta.

Em setembro de 2020, Amaue relata que um grupo de indígenas, com mulheres, crianças e homens, foi até sua casa na cidade de São Jerônimo pedindo ajuda, pois as mulheres foram agredidas dentro da Terra Indígena de São Jerônimo – tiveram suas casas invadidas e pertences roubados. Foram até à Delegacia de Polícia registrar o Boletim de Ocorrência, mas a polícia informou que não poderia intervir.

“Eles não sabiam o que fazer porque estavam sendo muito ameaçados de agressão, já era a segunda vez que estavam sendo agredidos. Eu optei por ajudar essas pessoas, por orientar elas no que eu tenho de pouco conhecimento, de onde eles poderiam fazer essas denúncias, mas também explicando para eles que seria difícil resolver porque é questão interna. O máximo que eles poderiam tentar era com o Conselho Indígena, mas enfim, ele (o cacique) estava interinamente como presidente do conselho também, então eu sabia que ia ser uma situação muito complicada, mas achei que talvez, por a gente começar as denúncias nas instituições mais fortes como Ministério Público e Polícia Federal, ele pudesse vir a cessar um pouco essa violência contra para que pudessem retornar para casa deles”, explica.

Foto: arquivo pessoal

Após denúncias no Ministério Público e Polícia Federal o conflito se tornou mais intenso. O grupo do cacique João Cândido da Silva fez uma série de lives nas redes sociais, propagando inverdades contra a indígena Amaue Jacintho, incitando a violência contra ela, desmoralizando as ações da jovem que acolheu outros indígenas em sua casa alugada. A maioria eram crianças. 

Segundo Amaue, mais de 100 pessoas foram mobilizadas por João Cândido da Silva para uma emboscada na casa em que ela alugou. A vulnerabilidade foi se tornando uma realidade ainda mais presente, já que não haviam recursos disponíveis para manter todos em segurança. 

“A gente como mulher, passa muitas coisas na vida, mas não assim nesse nível, de tantas pessoas falando contra mim. Nessas lives também eles ameaçavam muito a gente. Da minha casa em São Jerônimo da Serra dá para enxergar o começo da aldeia, a entrada da aldeia onde todos eles se mobilizaram, como se a gente fosse uma ameaça e fosse invadir a aldeia. Tinha aproximadamente 20 pessoas na minha casa, entre as quais a maioria era criança também. A gente não era uma ameaça para eles. De homens, se eu não me engano, eram seis, no máximo, entre eles o meu marido, e ali pelo tanto de gente que eu via era mais de 100 pessoas, era muita muita gente mesmo”, comenta.

Foi necessário que a polícia fosse acionada para dispersar os agressores.  “A partir de então, até por uma forma de defesa, eu também comecei a expor nas redes sociais a situação e pedir ajuda para outras organizações indígenas que estivessem acima dele para que ajudassem a gente e interferissem, principalmente porque essas mulheres com crianças estavam no meio de uma pandemia, fora da casa, não podiam retornar para casa delas. As crianças começaram a adoecer na minha casa, eles choravam muito, a gente começou a passar necessidade”, relata.

A polícia da cidade começou a fazer rondas na casa alugada por Amaue Jacintho e o esposo que resolveram se mudar para a cidade de Londrina (PR). As demais famílias permaneceram. Passada uma semana, os capangas de João Cândido da Silva foram até a residência e agrediram as pessoas que estavam no local. Nesse momento, as casas das três famílias que estavam abrigadas por ela foram incendiadas.

Da chegada em Londrina à ocupação na FUNAI

Após os ataques, a migração forçada das famílias indígenas se tornou uma realidade. Com os poucos pertences que ainda tinham e com a carona de algumas pessoas da cidade, chegaram em Londrina e decidiram ocupar a construção da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). “Eu fui receber eles e estava todo mundo muito triste, as mulheres muito machucadas, as crianças muito assustadas, e a gente não teve outra opção a não ser entrar na FUNAI e ficar por ali, porque a gente já não tinha mais casa, não tinha mais lugar, não tinha proteção de mais nada”, conta Amaue.

Articulação dos Estudantes Indígenas da UEL/ Foto: arquivo pessoal

De outubro de 2020 até janeiro de 2021 essas famílias ficaram acampadas no prédio da FUNAI de Londrina. Em plena pandemia, com poucos recursos para se manterem e sem conseguir apoio dos órgãos “competentes”, que deveriam dar suporte ao caso, algumas dessas famílias retornaram para a cidade de São Jerônimo da Serra, as demais foram morar em outras Terras Indígenas.

“Mas como eu já estava bem traumatizada com a situação eu não andava sozinha na cidade, eu só saía com o meu marido de casa e também descobri nesse meio tempo que eu estou gestante e sempre tomando muito cuidado por conta do coronavírus também. E por conta das ameaças que eu já tinha sofrido várias, então eu não circulava mesmo pela cidade, ficava mais em casa”, conta Amaue.

Foto: arquivo pessoal

Em março de 2021, após receber o valor da bolsa de estudos disponibilizada pela Universidade, ela e o marido foram ao supermercado comprar alimentos. Foi quando se depararam com um integrante do grupo armado de João Cândido da Silva, que passou as informações da localização de Amaue por rádio amador para os demais integrantes. A casa da cunhada da indígena, irmã de seu marido, estava há uma quadra do mercado, foi para onde foram naquele momento de tensão. Na casa estavam Amaue, o marido, a cunhada, a sobrinha e uma amiga. Logo ligaram para a Delegacia de Polícia.

Em seguida, mais de trinta pessoas em carros e motos apareceram na frente do imóvel em que estavam e forçaram a entrada na residência. “Vamos tirar seu filho a chute e a facada”, lembra Amaue dos gritos direcionados à ela que tentou pular o muro da residência para fugir, mas não conseguiu. O filho do homem que liderou a ação foi ferido com um golpe de faca no pescoço ao forçar a entrada na casa. O jovem acabou falecendo no mesmo dia.

“Assim que eu olhei na frente da casa e que eu saí que eu pude ter a dimensão do perigo que a gente correu porque pude ver com mais calma, com mais clareza, o tanto de gente que tinha. E era muita gente. Depois, na delegacia, eu vim saber, a partir do depoimento dos policiais, que tinha mais de 30 pessoas, entre eles tinham muita liderança. Os policiais tiveram que apaziguar, ser firmes com eles para eles recuarem, não vim para cima da gente. Tinha dois policiais só e a gente entrou dentro do carro para poder ir para delegacia e na delegacia ficar realmente em segurança”, relata.

Segundo Amaue, os integrantes das Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas (ROTAM) foram chamados para dar suporte ao local e evitar novos confrontos. A mobilização de uma rede em direitos humanos possibilitou a ação para a proteção da indígena Amaue e de sua família naquele momento, pois diversos grupos se articularam naqueles dias para dar suporte ao caso. Hoje,  Amaue Jacintho vive escondida com o companheiro, longe de seus dois filhos, sob serviço de proteção à vítimas de ameaça de morte. 

“Desde então eu estou refugiada, estou num lugar escondido, ninguém sabe, estou ali sob um serviço de proteção às pessoas ameaçadas de morte. Minha família também não sabe onde eu estou, não posso falar para ninguém. Uma situação muito triste. É essa a situação em que eu me encontro agora. Tudo isso eu tenho plena consciência de que foi porque eu fiz essas denúncias de violações de direitos humanos contra aquela comunidade, que o cacique praticava”.

A indígena Amaue Jacintho Guarani Nhandeva fez diversas denúncias em diferentes órgãos, mas não obteve respostas ou mesmo auxílio para poder se afastar das violências. Ela e as outras famílias indígenas continuam desassistidas por políticas públicas que possam amparar os Povos Originários em contextos como esses. Daqui para frente uma rede de advogados e parceiros está trabalhando para levantar as informações oficiais sobre as denúncias, compreender o caso e dar sequência nos pedidos de respostas aos órgãos em que as denúncias foram feitas. O Portal Catarinas é uma das instituições que irá acompanhar o desdobramento do caso.

Leia outras informações sobre o caso: 

A articulação das mulheres em rede

A advogada Lucia Helena Villar entrou em contato com a indígena Amaue Jacintho enquanto ainda estava na delegacia. Ela faz parte da rede Terra de Direitos, uma organização que apoia os direitos humanos e atua na defesa, promoção e efetivação de direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Está sendo preparando um relatório, junto com o apoio de outros advogados, para organizar a documentação enviada pela indígena.

“Como advogada a gente precisa estar mais apropriada para falar da situação. Eu pretendo passar o relatório para um colega advogado de Londrina que pode checar as informações em São Jerônimo da Serra. Nesse material tem várias denúncias com representações no Ministério Público. Nós precisamos ver primeiro qual a consequência que foi dada, se alguma ocorrência foi arquivada e qual a razão. É só o pontapé inicial para a gente poder saber cada uma dessas coisas inclusive se foi arquivado, se foi investigado ou se o MP abriu um inquérito. É o início de um mapa que a gente está fazendo. A Amaue bateu em várias portas e a gente precisa saber se alguém abriu”, diz a advogada.

Foto: arquivo pessoal

Pietra Dolamita, indígena conhecida como Kuwawa Kapukaya Apurinã, do Povo Apurinã, antropóloga que acompanha o caso, integrante da Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges (ABIA) diz que observou as postagens de Amaue Jacintho pelas redes sociais, monitorando algumas violências contra mulheres indígenas. Ela também foi chamada por Amaue para acompanhar no ano passado as mulheres na ocupação da FUNAI em Londrina.

“Eu acompanhei as reuniões com os indígenas, a gente via claramente, eu percebia claramente que a FUNAI não tinha interesse nenhum de resolver aquele conflito étnico, de etnias, onde esse João da Silva expulsa outras etnias da Terra Indígena São Jerônimo. Também nessa Terra Indígena ele abriga não indígenas. Isso é possível constatar. Como o Estado não pode intervir dentro do território ele usa a própria lei, que garante os nossos direitos, para beneficiar a si próprio e o seu coronelismo contra o seu próprio povo. Isso é uma coisa muito triste”, declara a indígena antropóloga.  

Como indígena Kuwawa Kapukaya Apurinã, Pietra Dolamita, comenta que não se pode utilizar a cultura indígena para justificar a violência. Para ela, essas atitudes não representam os modos de vida dos Povos Indígenas e é inaceitável esse tipo de comportamento nas Terras Indígenas.

“É preciso entender que o fato de ser indígena não exime esse tipo de atitude. Não exime essas atitudes machistas e essas relações de patriarcado, uma vez que esses costumes copiados da sociedade envolvente podem se repetir dentro dos territórios indígenas. E é o que está acontecendo nesse caso. Violência contra as mulheres indígenas, e violências extremas. E não se pode valer de uma cultura para justificar violências. Não se pode dizer ‘ah, eu sou indígena e posso fazer isso’. Não. Isso não faz parte da cultura indígena, isso é valer-se de uma cultura para praticar violência, isso não será aceito dentro das culturas indígenas. Isso é repudiável. E quem disser que a cultura indígena é violência estará mentindo, seja indígena ou seja não indígena”, afirma.

Abril Indígena 

A indígena refugiada Amaue Jacintho lembra da importância de discutir a violência contra as mulheres indígenas durante o mês de abril, de luta para os Povos Indígenas, espaço para dar visibilidade aos diferentes temas abordados pelas mulheres indígenas contra todos os tipos de violação

“Nesse mês que é o Abril Iindígena especificamente que é um mês de luta dos povos indígenas contra todo tipo de violação. Gostaria que as mulheres e os Povos Indígenas, as lideranças, no geral, focassem também um pouco mais nisso e olhassem com um pouco mais de sensibilidade para essa violência, que está sendo cometida contra as mulheres indígenas em territórios”, enfatiza a indígena. 

Foto: arquivo pessoal

De acordo com Amaue é necessário dar visibilidade a essas questões de violências contra as mulheres indígenas para não fortalecer o agressor, pois é uma vivência que está sendo muito destrutiva para as mulheres indígenas dentro e fora dos territórios.

“É uma luta a mais, um fardo a mais que nós mulheres indígenas temos que carregar e sozinhas. Então não está certo. Seria um pedido meu mesmo que essas lideranças, no geral, olhassem com mais sensibilidade para isso e procurassem fazer esse combate junto com as mulheres para que a violência diminua porque está realmente muito grande, está muito forte isso em cima das mulheres”, reivindica Amaue.

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