O crime de importunação sexual, caracterizado pela realização de ato libidinoso na presença de alguém e sem o seu consentimento, foi tipificado no ano passado a partir da sanção da Lei 13.718/18, que teve como base o projeto (PL 5452/16) de autoria da senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM). A pena para quem praticar este crime varia entre um e cinco anos de prisão. O delito, cometido principalmente dentro do transporte público, tem sido lembrado nesta época de Carnaval, quando o assédio contra as mulheres em espaços de grande aglomeração de público também é bastante frequente.

A alteração no Código Penal trazida pela lei tem como aspecto positivo solucionar um problema prático para operadoras e operadores do Direito, que se viam diante de uma lacuna legislativa entre a tipificação das condutas de estupro e de importunação ofensiva ao pudor. Contudo, a medida não pode ser vista de forma acrítica, principalmente no que se refere a como as vítimas serão tratadas por uma tradição jurídica patriarcal, assim como a continuação do encarceramento seletivo brasileiro, que pune principalmente pessoas negras e pobres.

De acordo com Nálida Coelho Monte, defensora pública coordenadora auxiliar do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM), da Defensoria Pública de São Paulo, havia um abismo muito grande entre a tipificação de condutas, entre o que era estupro e o que era contravenção de importunação ofensiva ao pudor. “Muito embora o critério para a tipificação fosse a existência de violência ou grave ameaça, e aí se discutiu se o beijo roubado ou beijo lascivo seria ou não estupro, valia-se de critérios como proporcionalidade para definir. E isso acabava gerando uma insegurança jurídica para quem aplicava a lei e muitas vezes uma sensação de impunidade também”, explica.

Antes da alteração legislativa os casos eram tratados de duas formas. Se havia constrangimento, com emprego de violência ou grave ameaça, e sem o consentimento da vítima, a configuração era de estupro. Se o ato fosse praticado sem violência e sem grave ameaça, a conduta seria uma contravenção penal, a importunação ofensiva ao pudor, sem previsão de aplicação de pena privativa de liberdade por ser considerado um delito de menor potencial ofensivo. Um termo circunstanciado de ocorrência era feito no lugar da abertura de um inquérito policial.

Outra mudança trazida pela lei é que agora a ação civil que trata de delitos sexuais passa a ser sempre pública e incondicionada. “Na sistemática anterior somente nos casos de estupro de vulneráveis a ação era pública e incondicionada, nos demais casos era condicionada à representação”, afirma Nálida. Isso significa que mesmo a titularidade sendo do Ministério Público, a vítima anteriormente poderia desistir até uma determinada fase do procedimento. Agora, a investigação e instauração de processo independem da vontade da vítima e uma vez noticiado o caso, tanto por ela quanto por terceiros, não é mais possível desistir da ação.

“Esta é uma alteração prática. Mas também existe uma alteração que consigo enxergar no sentido político que é o Estado tomar para si a titularidade desta ação penal, quer dizer que a punição para o crime não depende mais da vontade da vítima, o interesse na punição é do próprio Estado”.

Embora seja nítida a importância de tornar crime essas situações que, infelizmente, são bastante corriqueiras na vida das mulheres, a defensora ressalta que a lei não pode ser vista de forma acrítica, principalmente pelas mulheres. Segundo Nálida, vivemos em uma sociedade que é patriarcal, que limita a subjetividade das mulheres, que as objetifica e violenta, e também temos uma tradição jurídica patriarcal que até pouco tempo protegia a honra do agressor e não a dignidade e liberdade sexual da mulher.

“Portanto, o direito penal é androcêntrico e nunca foi aliado do feminismo, tanto que o aborto é crime. Eu acredito, particularmente, que nós mulheres, feministas, devemos ter o cuidado com esse tipo de discurso com o qual nos aliamos. Esse discurso político de criminalização de condutas como se fosse uma solução fácil e aplicável, essa do encarceramento. O encarceramento em si não resolve”.

Ao mesmo tempo em que se pune criminosos ideais, ou seja pretos e pobres, o Direito Penal também protege vítimas ideais, de acordo com a defensora. “Por exemplo, se tratando de delitos sexuais, ao lado do agressor no banco dos réus também senta a moral sexual feminina. Mulheres negras que são hipersexualizadas nessa sociedade que é patriarcal e que é racista, ela vai ter que responder questões como o que ela fez para merecer esse comportamento, que tipo de roupa ela estava usando. Precisamos perguntar: a quem essa norma se destina? Que tipo de vítima ela protege?”, questiona.

Escute o áudio completo da entrevista feita pelo Portal Catarinas com a defensora Nálida Coelho Monte. Nele a defensora explica como as mulheres vítimas de importunação sexual podem proceder nestes casos e destaca a importância da atuação do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM) na defesa dos direitos das mulheres.

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