Keila Simpson estava lá em 29 de janeiro de 2004 quando um grupo de ativistas e lideranças transexuais e travestis lançaram a campanha “Travesti e Respeito” no Congresso Nacional, em Brasília (DF). Uma parceria até então inédita com o governo federal via Ministério da Saúde. O ato tornou-se um marco na história do movimento e a data foi escolhida como o Dia Nacional da Visibilidade Trans para lembrar anualmente as conquistas e novas demandas dessa população.

Presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Simpson sabe exatamente quais são essas reivindicações. Ela criou a organização em 1998 justamente por perceber uma lacuna de representação. Desde então, a Antra desenvolve ações para promoção da cidadania de pessoas trans e travestis através de 127 instituições espalhadas pelo país.

Aos 57 anos, é dona de uma história imersa no ativismo LGBTQIA+. Travesti, negra e prostituta, ela nasceu em Pedreiras, no interior do Maranhão. Morou em Teresina (PI), Recife (PE) e atualmente vive em Salvador (BA), de onde conversou com o Catarinas.  Foi na capital baiana que sua atuação na linha de frente ficou mais intensa e ela fundou a Associação de Travestis de Salvador, em 1995, no auge da pandemia do HIV e da Aids.

Em entrevista, ela fala das conquistas a serem celebradas até aqui, recentemente foi nomeada Doutora Honoris Causa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mas lembra que as violências concretas e simbólicas continuam existindo no Brasil. Pelo 14º ano consecutivo, o país é o que mais acumula mortes de pessoas trans e travestis no mundo. Foram 131 em 2022. Os dados constam no”Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras”, da ANTRA, divulgado dia 27 de janeiro e entregue ao ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida. Confira. 

O Brasil continua sendo o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. O que é necessário para combater esse tipo de violência?

Lançamos o dossiê pelo sexto ano consecutivo, é um dossiê que traz aquela dança dos números, anos acima, anos abaixo, mas a média persiste a mesma. A média persiste, as políticas não acontecem, não existem. Temos sempre batido na tecla da importância de termos políticas públicas eficazes e efetivas para combater essa violência, mas não tem. O que acho que é preciso para combater a violência? Primeiro, políticas públicas. E a gente tem um momento bem auspicioso nesse exato início de ano porque estamos virando uma página danosa da nossa população, que saiu de um processo completamente violento para um processo mais democrático. Então, estamos aqui propondo uma pactuação para que possamos fazer intervenções políticas para que a população possa de fato começar a trabalhar na diminuição desses números. Os casos de assassinato só vão diminuir quando tivermos políticas específicas, só vamos conseguir erradicar o problema quando trabalharmos diretamente no cerne da questão que são essas notificações muito altas e as subnotificações que estão aí. Nosso processo é de construção com esse governo para chegarmos a esse consenso que até hoje não tivemos. Passamos seis anos publicando dossiês em governos adversos, mas acreditamos que agora nós temos uma perspectiva boa de trabalhar com esses dados para que a gente possa fazer, a cada ano, mais produção de vida e menos divulgação de mortes.

Quase 20 anos depois do lançamento da campanha “Travesti e Respeito”, em ato político pela diversidade de corpos e de identidade de gênero no Brasil,  o que você acha que realmente mudou de lá para cá?

Keila: Mudou muita coisa no sentido mais amplo. A conjuntura, a visibilidade. Naquela época, os destaques positivos eram muito difíceis. Tínhamos alguma visibilidade, mas era no caráter negativo, nas páginas policiais, e foi preciso deflagrar um marco de luta para nós. Então, faço uma avaliação bem positiva desses quase 20 anos. Hoje temos colocado debates que envolvem a população trans na mídia quase diariamente, estamos sempre pautando a mídia, para o bem ou para o mal. Além disso, em 2004, não tínhamos quase nenhuma travesti ou mulher trans disputando cargos políticos partidários. Começamos a disputar em 2006 e neste último pleito houve uma completa modificação. Agora, pela primeira vez, temos duas travestis eleitas para o Congresso Federal do Brasil (as deputadas Erika Hilton (Psol-SP) e Duda Salabert (PDT-MG)).

Então, a gente sai do completo apagamento e invisibilidade para o processo de visibilidade em 2023, ainda que pequeno dentro do contexto todo de exclusão que temos, mas temos uma visibilidade que perpassa por todos os setores da sociedade e é assim que a gente quer seguir. Que daqui a 20 anos, a gente tenha cada vez mais pessoas trans integradas, utilizando os espaços sociais como qualquer outra pessoa, sem qualquer discriminação, estigma ou preconceito. 

​Keila Simpson na ​26ª edição da Parada do Orgulho LGBT+ em São Paulo​. ​Foto: Celso Tavares

Começamos o ano com mais um governo Lula (PT), dessa vez com expectativa de reconstrução total, após os inúmeros desmontes do governo Jair Bolsonaro. Alguns compromissos já foram firmados ou sinalizados para a população trans e travesti. No último dia 11 de janeiro, por exemplo, o presidente equiparou injúria racial ao crime de racismo. Portanto, xingamentos transfóbicos e lgbtqifóbicos também são equiparados ao crime de racismo. A Antra, inclusive, fez questão de destacar essa mudança em suas redes. Gostaria que você comentasse a importância dessa equiparação…

Para nós é importante porque essa decisão corrobora com a decisão do Supremo que apensou os crimes lgbtqifóbicos como crimes de racismo e essa decisão proferida pelo presidente Lula vai de fato nos ajudar nesse processo. A equiparação vai fazer com que pessoas que discriminam e atacam a população trans e negra sejam denunciadas a responder por um crime que não é mais banalizado. As pessoas precisam ser educadas a não cometer racismo, mas se cometerem elas precisam compreender que vai ter uma legislação específica para puni-las.

A Antra elaborou uma carta para a equipe de transição com compromissos considerados atemporais. Como está o diálogo com a nova gestão federal? Algum desses compromissos já está encaminhado?

Como você destacou, essa carta de posição que preparamos é atemporal. É uma carta que foi fomentada no encontro que fizemos em Niterói (RJ), muitas das demandas ali, foram debatidas profundamente. Claro que tudo o que está ali vai ser discutido com a gestão para que seja implementado. Temos uma gestão do campo progressista, temos visto falar dessa pauta interseccional que converge com vários ministérios. Sempre tivemos a certeza de que atuar para nossa população não é fator de uma ou outra pasta, mas de várias pastas porque elas todas se entrecruzam. Vamos pensar em trabalho para a população trans, por exemplo, eu preciso fazer uma intercalação entre trabalho e educação porque eles estão diretamente ligados. Isso vale para a saúde, porque a pessoa tem que ter saúde para estudar, trabalhar, então as pautas se interseccionam e a gente tem visto que os discursos dos ministros e das ministras têm convergido nesse propósito. Visando atuar muito para as populações mais vulnerabilizadas, as que mais necessitam e aí estão as travestis e toda a população trans. O cenário que a gente vê com esse governo é um cenário bem positivo, propositivo.

Em cerimônia de posse, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, fez um discurso muito simbólico, reafirmando o valor de grupos minorizados, entre eles pessoas trans e travestis. Ele ainda reafirmou o compromisso de recriar o Conselho Nacional de combate à discriminação LGBTQIA+. Almeida também e nomeou Symmy Larrat, travesti, feminista e militante para a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+. E vale lembrar que a pasta foi comandada por Damares Alves, que promoveu diversos retrocessos. Qual a principal demanda a tratar com esse ministério?

Especificamente nesse ministério, a gente quer reativar o conselho para que ele possa ser um conselho plural, de representantes de toda a sociedade civil organizada, das letras que compõem esse universo e que as demandas possam ser entendidas. Como o conselho é um espaço construtivo, esperamos que a secretária da pasta possa de fato encaminhar as demandas e transformá-las em política.É muito alentador perceber a virada que está posta. A gente sai de um negacionismo total do governo federal para um centro importantíssimo de ações e atuações, inclusive na oralidade do ministro (Silvio Almeida) citando as populações que precisam e devem ser visibilizadas.

Como ele bem disse, nós existimos e somos importantes para aquele ministério. Nós existimos e somos importantes para esse governo. Eu acho que fica bem explícito nesse discurso a importância que se dá a toda a população mais invisibilizada e que chega nesse processo agora de construção do governo, de formatação desse governo já destacada pelas falas. Então, é como se a gente tivesse acordado de um pesadelo e tivesse compreendido que foi um pesadelo que passou, deixou danos, mas a gente vai retomar.

Da esquerda para direita: Cláudia Gonçalves, pró-reitora de Extensão e Cultura da UERJ, Keila Simpson, Catia Antonia Silva, pró-reitora de Políticas e Assistência Estudantis, e Sara York. Foto: Divulgação 

Keila, você se tornou a primeira travesti Doutora Honoris Causa do Brasil em 2022, título outorgado de maneira unânime pelo Conselho da UERJ. Qual a importância de receber a honraria, especialmente em vida? *Antes dela, o psicólogo João Nery recebeu o título de Doutor Honoris Causa in memorian pela Universidade Federal de Mato Grosso.

O título de Doutora Honoris causa pra mim tem um significado especial porque eu não consegui concluir os meus estudos por conta da transfobia, do bullying sofrido quando eu estava estudando. Era bem difícil ser uma pessoa como eu, travesti, e conseguir conciliar isso tudo com a violência que eu sofria na sala de aula. Abandonei a escola sem nem pensar duas vezes porque não tinha a quem recorrer. Parecia que a culpa era minha, a culpa era da gente que tinha essas violências perpetradas contra nós. Os professores não ligavam ou a gente nem chegava a falar com eles, muitas vezes por vergonha. Agora, com 57 anos, ser outorgada com esse título é motivo de orgulho para mim. É motivo de pensar que é sempre bom trabalhar nesse processo educacional, formar novas lideranças, estar sempre atuando, sempre discutindo com a academia. Eu já estive em muitas universidades pelo país, de Norte a Sul do Brasil, e esse título vem coroar esse processo. Que bom que ele vem no momento em que eu posso experimentar, em que eu posso recebê-lo.

Como você acabou de compartilhar, a sua experiência na escola foi muito ruim. Não houve acolhimento, espaço para diálogo. Como a educação formal pode ser inclusiva para as pessoas trans e travestis?

Ela precisa ser específica. Essas pessoas têm uma necessidade de conciliar a escola com o trabalho que desenvolvem, já que muitas delas fazem trabalhos sexuais. Muitas ainda vivem na rua, trabalham na prostituição, fazem do trabalho sexual a sua fonte primária de renda. Então, a escola precisa estar antenada a isso. Precisa compreender também que muitas dessas pessoas, apesar de adultas, são semialfabetizadas. É preciso investigar de fato qual é o grau de conhecimento dessas pessoas para saber a série em que elas vão se desenvolver melhor. É preciso desenvolver conteúdos programáticos que atendam essa população, formá-las socialmente. Não vivemos numa sociedade muito aberta e educada para respeitar pessoas trans. Geralmente, elas são completamente colocadas no papel de vulnerabilização por conta dos riscos que correm em razão do preconceito. Vale dizer que quando a gente vê uma travesti reagindo de uma forma muito forte com relação a qualquer coisa que aconteça, ela está reagindo a uma coisa que a sociedade sempre deu pra ela. É uma reação imediata e às vezes essa reação se torna até um pouco rude por conta de todo o processo de violência que ela viveu. Conversar com os movimentos sociais também é muito importante para desenvolver estratégias dentro dessa cadeia de formação. E seguir pensando em naturalizar cada vez mais o processo educacional. Não queremos uma escola exclusiva para pessoas trans, não é isso. Mas para que elas possam estar incluídas é preciso entender essas especificidades e trabalhar para diminuir as violações e violências que elas possam sofrer dentro desse processo educacional.

A escritora norte-americana Toni Morrison defendia que a linguagem não é apenas a representação da violência e sim a violência em si. Em 2022, o termo “pessoas que menstruam” foi questionado num artigo da Folha de São Paulo pela filósofa Djamila Ribeiro. A Antra respondeu de maneira bem didática sobre o assunto, elencando as razões pelo uso do termo. A linguagem também é uma questão política fundamental para a visibilidade de pessoas que não se identificam com a heteronormatividade?

Nós nascemos, vivemos, estamos o tempo todo dentro de uma linguagem completamente binarizada. No momento em que a gente experimenta tirar o gênero da linguagem estabelecida aí a gente vê o tamanho do problema. Imagina se nós tirarmos o gênero de uma cadeira, chamar de “o” cadeira ao invés de “a” cadeira. Fica estranho, né? A nossa audição está habituada a ouvir essa binaridade de uma forma muito intensa. Uma das nossas parceiras escreveu que a gente reivindica o lugar de fala, mas nunca queremos praticar o lugar de escuta. Ou seja, o meu lugar de fala, a minha voz precisa ser ouvida porque eu sei exatamente o que me aflige. Eu preciso educar o meu ouvido também para essa escuta, essa escuta mais aberta a essas condições que são postas na nossa sociedade. O termo “pessoas que menstruam” não é um termo que foi escolhido em detrimento de outro. Nós não queremos que as mulheres cis sejam denominadas com esse termo “pessoas que menstruam”. O que nós queremos chamar atenção é no sentido da saúde biológica dessas pessoas (trans e não-binárias). Elas precisam ter essa condição demonstrada porque sofrem uma violência tremenda quando decidem executar os seus direitos sexuais reprodutivos. A “biologização” da saúde está toda voltada para esse universo masculino e feminino. Dentro do que é ser homem, com aparelho reprodutor masculino, dentro que a mulher com o aparelho reprodutor feminino. Nós da Antra dialogamos muito com os movimentos constituídos e é uma bandeira que esses movimentos defendem para homens trans masculinos, pessoas não binárias, etc., e nós vamos usar. Por isso fizemos essa resposta didática para as pessoas entenderem.

Não se trata de uma imposição, tirar um termo e colocar o outro, mas sim abrir possibilidades na nossa linguagem para incluir um termo que vai responder a uma demanda de alguém que está ansiando por essa visibilidade. Essas pessoas não encontram, especialmente na saúde, a humanização que deveriam receber. Imagina o que é para um homem trans entrar numa sala de obstetrícia? Numa sala de ginecologia? Então, é muito nesse sentido. Queremos muito que a sociedade compreenda a dimensão dessa demanda de inclusão.

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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