O Brasil continua a ser o país que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo. É o que alerta o novo dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), publicado nesta quarta-feira (29), Dia Nacional da Visibilidade Trans. Em 2019, 124 pessoas foram assassinadas no Brasil, um número de assassinatos três vezes maior que o segundo colocado no mundo, o México com média de 50 mortes. Foram registradas 50 tentativas de homicídio, através das redes sociais e imprensa.

Os dados evidenciam a gravidade da violência e o descaso das autoridades: 80% dos assassinatos apresentaram requintes de crueldade e somente 8% dos casos tiveram suspeitos identificados. Houve aumento nos casos de apedrejamento e uso de arma branca como ferramenta do assassinato. 52% dos assassinatos por espancamento apresentaram associação com outros métodos cruzados durante o homicídio, como tiros, afogamento, tortura, violência sexual, entre outros.

O número de assassinatos em 2019 foi menor em relação aos últimos dois anos. Em 2017, foram 179 assassinatos e, em 2018, 163. Entre 2017, 2018 e 2019, tivemos 466 assassinatos de pessoas trans no Brasil.  Entretanto, apenas de 1º a 24 de janeiro de 2020, por exemplo, houve um aumento de 180% no número de homicídios em relação ao ano anterior. Números que, no entanto, são atravessados pela subnotificação e ausência de dados governamentais.

Essas pessoas assassinadas são vitimadas pela violência de gênero, putafobia, transfobia e racismo.  “Veremos que, mesmo com a queda aparente nos números nos dois últimos anos, não notamos nenhuma diferença significativa no dia-a-dia da vida das pessoas trans. Os números se mantêm acima da média, que assegura ao Brasil o 1º lugar no ranking dos assassinatos durante últimos 10 anos”, explicam no dossiê.

Desde 2008, o Brasil se encontra com uma média de 118,5 assassinatos de pessoas trans por ano. O maior pico ocorreu em 2017, quando o país teve recorde de assassinatos em geral e chegou ao seu ponto mais alto na história.

Casos representativos dessa violência explícita são destacados no dossiê, como o de Dandara Kettlyn de Velasques, identificada pela imprensa como Dandara dos Santos, foi morta em Fortaleza (CE), em 2017. “Sua tortura à luz do dia foi filmada e disponibilizada nas redes sociais, à princípio como um prêmio para quem expressa seu ódio por meio de uma execução que remete às leis abraâmicas. Por fim, diante da mobilização das organizações e ativistas, as imagens serviram como prova para a condenação dos criminosos”, afirma Neon Cunha Mulher, articuladora da Marcha das Mulheres Negras de SP, no texto inicial do dossiê.

Outro caso de violência exacerbada ocorreu há um ano. Quelly da Silva teve seu coração removido com golpes de uma garrafa quebrada, e substituído pela imagem de uma santa. O jovem executor alegou para a imprensa, sorrindo, que ela era o demônio.

“Não há o que comemorar repetimos a cada ano e as nossas vozes não ecoam aonde deveria chegar. Estamos à mercê de nós mesmas. Quem chora por nós? Quem vai contribuir com a vaquinha pra enterrar mais uma? pra que não seja enterrada como indigente, sim porque abjeta já somos, a sociedade já nos cunhou esse adjetivo”, afirmou Keila Simpson, presidenta da ANTRA, na nota “Resistir pra existir, existir pra reagir”, divulgada nesta quarta-feira.

Estados com maior incidência
Em números absolutos, São Paulo foi o estado que mais matou a população trans em 2019, com 21 assassinatos, contando com aumento de 50% dos casos em relação a 2018; seguido do Ceará; com 11 casos; Bahia e Pernambuco, com 8; Paraná, Rio de janeiro e Rio Grande do Sul, com 7 casos cada; e Goiás com 6 casos. Amazonas, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso e Paraíba aparecem com 5 casos cada; Espírito Santo, Pará e Rio Grande do Norte com 4; Alagoas, Rondônia e Tocantins com 2; e 1 caso em Mato Grosso do Sul, Roraima, Sergipe e Piauí. Não foram encontrados casos reportados na mídia no Acre, Amapá, Santa Catarina e no Distrito Federal.

A maior concentração dos assassinatos foi vista na região nordeste, com 45 assassinatos (37% dos casos), seguida da região sudeste, com 37 (30%), Sul; com 14 (11%); Norte, com 14 (11%) casos; e Centro-Oeste, com 12 (10%) assassinatos. Em 2019, a região sudeste apresentou aumento de 10,8% no número de assassinatos de pessoas trans. As demais regiões se mantêm na média de assassinatos nos últimos três anos.

Jovens de 15 anos apedrejadas até a morte
A idade média das vítimas dos assassinatos em 2019 é de 29,7 anos, demonstrando que, quanto mais jovem, mais exposta e propensa ao assassinato as pessoas trans estão. Quinze anos foi a idade com que a mais jovem adolescente trans foi assassinada em 2019. Foram 3 vítimas de 15 anos cada e duas delas foram apedrejadas até a morte. A terceira, além de espancada até a morte, foi enforcada e o seu corpo foi encontrado com sinais de violência sexual.

A violência chama a atenção em todos os níveis de idade, mas as maiores chances de uma pessoa trans ser assassinada são entre 15 e 45 anos. O Mapa dos Assassinatos 2019 aponta que 59,2% das vítimas tinham entre 15 e 29 anos; 22,4% aquelas entre 30 e 39 anos; 13,2% entre 40 e 49 anos; 3,9% entre 50 e 59 anos; e entre 60 e 69 anos, 1,3% dos casos.

Gênero e raça
Em 2019, 64% dos assassinatos aconteceram nas ruas. 67% dos assassinatos foram direcionados contra travestis e mulheres transexuais profissionais do sexo, que são as mais expostas à violência direta e vivenciam o estigma que os processos de marginalização impõem as essas profissionais.

82% dos casos identificados como sendo de pessoas pretas e pardas, explicitando ainda mais os fatores da desigualdade racial nos dados de assassinatos contra pessoas trans, como já estava ratificado nas edições anteriores.

As questões de gênero se reforçam e demonstram que 97,7% dos assassinatos foram contra pessoas trans do gênero feminino (121 casos), enquanto, para pessoas cisgêneras, de acordo com o Atlas da Violência 2019, essas taxas variam entre 91,8% dos homicídios intencionais para o gênero masculino e 8% para o gênero feminino.

Neste ano, 29% dos casos notificados não respeitaram a identidade de gênero das vítimas e 91% dos casos expuseram seu nome de registro, muitos deles sem menção ao nome social. “É urgente entendermos que, depois de mortas, qualquer tentativa de marcar a identidade de gênero das pessoas trans parte exclusivamente da sua percepção sobre ela, logo, com grandes chances de se deixar levar por estigmas ou olhar genitalista sobre nossas existências. É impossível dizer a identidade do outro, ignorando sua história de vida, suas construções e vivências”, afirmam no documento.

Mesmo após a decisão do STF sobre a retificação Registral das pessoas trans, chama atenção a falta de marcadores de orientação sexual e/ou identidade de gênero nos formulários de atendimento, ou seu correto preenchimento, especialmente nas delegacias, hospitais e órgãos de atendimento às vítimas de violência. As pessoas que tiveram seus nomes retificados serão lidas pelo Estado como sendo pessoas cisgêneras, o que contribui ainda mais para o aumento da subnotificação dos casos e dificulta a busca de informações.

Crueldade
Dos 124 assassinatos notificados em 2019, em 13 notícias não informaram ou não constaram dados sobre o tipo de ferramenta/meio utilizada para cometer o assassinato. Dos demais casos observados nesta pesquisa, 43% foram cometidos por armas de fogo; 28% por arma branca; e 15% por espancamento, asfixia e/ou estrangulamento. No Brasil, Cerqueira (2014) mostrou evidências de que, a cada 1% a mais de armas de fogo em circulação, há um aumento de 2% na taxa de homicídio. Houve, ainda, 9 casos de execução direta com número elevado de tiros.

Aumento do ódio
O documento enfatiza que durante o período eleitoral, houve um aumento violência contra a população LGBTI. “Tivemos casos de pessoas trans agredidas e até mesmo assassinadas por motivações políticas. O horror se instalou no Brasil após a eleição do atual presidente, conhecido por incitar o ódio contra a nossa população de forma pública”.

Conforme denunciam no dossiê, o Brasil naturalizou um projeto de marginalização das travestis. A maior parte da população Trans no país vive em condições de miséria e exclusão social, sem acesso à educação, saúde, qualificação profissional, oportunidade de inclusão no mercado de trabalho formal e políticas públicas que considerem suas demandas específicas. “Mas não só: o que era ruim piorou ainda mais este ano, com a eleição de um governo que é explicitamente transfóbico por ideologia”.

“Pessoas LGBTI+ continuam sendo espancadas à luz do dia e há grupos de ódio eclodindo pelo país, anunciando em nome de deus o que se tornaria o ‘novo Brasil’, pós golpes e sob a égide de um governo processado por machismo, denunciado por racismo e condenado por homofobia”.

Empregabilidade e exclusão social
Apenas 4% da população Trans feminina se encontra em empregos formais, com possibilidade de promoção e progressão de carreira de acordo com dados levantados pela ANTRA. De igual modo, apenas 6% estão em atividades informais e subempregos. Mantém-se aquele que é o dado mais preocupante: 90% da população de Travestis e Mulheres Transexuais utilizam a prostituição como fonte de renda.

Devido à exclusão familiar, estima-se que 13 anos de idade seja a média em que Travestis e Mulheres Transexuais são expulsas de casa pelos pais (ANTRA) – e que cerca de 0,02% estão na universidade, 72% não possuem o ensino médio e 56% o ensino fundamental (Dados do Projeto Além do Arco-Iris/AfroReggae). Essa situação se deve muito ao processo de exclusão escolar, gerando uma maior dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho e deficiência na qualificação profissional causada pela exclusão social.

Em 2019, houve 15 casos de suicídio relatados por meio das redes sociais e outros meios de comunicação. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2018), mais de 800 mil pessoas chegam ao óbito por suicídio anualmente no mundo, o que levou a OMS a abordar a questão como prioridade na agenda global de saúde pública. Mais de 70% dos suicídios acontecem em países de baixa e média renda, demonstrando que as motivações estão correlacionadas às relações de agressão e exploração.

Grupo mais vulnerável
As travestis e transexuais femininas constituem um grupo de alta vulnerabilidade à morte violenta e prematura no Brasil. Apesar de não haver estudos sistemáticos sobre a expectativa de vida das travestis e transexuais femininas, acredita-se que a expectativa de vida desta população seja de 35 anos de idade, enquanto a da população brasileira em geral, é de 74,9 anos (IBGE 2013).

No caso de homens trans e pessoas transmasculinas, há dificuldade maior no levantamento de dados, devido à invisibilidade. Em geral, a escolaridade desta parcela da população é inversamente proporcional à baixa escolaridade das Travestis e Mulheres Transexuais. A Antra estima que pelo menos 80% dessa população tenha concluído o ensino médio e seja a maior parcela da população trans nos empregos formais, com índices superiores a 70%. Não há dados sobre o percentual de homens trans que estejam atuando na prostituição. Em geral, eles acabam optando pelo atendimento em privês e locais que promovem uma maior sensação de segurança.

Quase 70% dos assassinatos foram direcionados contra travestis e mulheres transexuais profissionais do sexo, que são as mais expostas à violência direta e vivenciam o estigma que os processos de marginalização impõem as essas profissionais.

Como explica a socióloga Berenice Bento, o transfeminicídio é classificado como o assassinato sistemático de travestis e mulheres transexuais, sendo caracterizado como uma política disseminada, intencional e sistemática de eliminação da população trans, motivada pelo ódio, abjeção e nojo.

Subsídios para políticas públicas
Lançado desde 2018, o dossiê atua no monitoramento desses crimes de ódio que tem sido omitido pelo Estado. A proposta é a partir dos elementos e padrões encontrados no modus operandi desses assassinatos, indicar caminhos para enfrentar a LGBTIfobia estrutural instalada na cultura brasileira. De acordo com a associação, tal violência vem sendo perpetuada pela falta de ações efetivas do poder público no combate às violências e violações dos direitos humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (LGBTI), especialmente da população de travestis, mulheres transexuais, homens trans, transmasculinos e demais pessoas trans, binárias ou não.

Exemplos de caminhos que podem ser tomados são campanhas de prevenção à violência, denúncias que possam enfrentar a impunidade e a omissão, e a luta pela efetivação da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de Injunção (MI) 4733, reconheceu a discriminação da população LGBTI como uma forma de racismo, ou ainda, nas denúncias aos órgãos internacionais diante do cenário alarmante em que o Transfeminicídio segue naturalizado e impune no Brasil.

Ações frente à violência
Entre as ações para combater a violência contra essa população estão a cartilha de segurança pública para a população LGBTI, lançada através da Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBTI (RENOSP-LGBTI) e um Manual de atendimento e abordagem da população LGBTI por agentes de segurança. Houve, ainda, o lançamento do projeto Resistência do Arco-íris que, culminou no lançamento do aplicativo Dandarah, em uma parceria entre a ANTRA, ABGLT e a FIOCRUZ. “Ferramentas como essas são importantes para garantir que a população LGBTI não seja coagida a se esconder ou a recuar diante do aumento da violência e do novo momento político”.

Dados inéditos da pesquisa realizada pela Antra por ocasião do mês de enfrentamento da LGBTIfobia no mundo, revelam que 99% das pessoas LGBTI participantes afirmaram não se sentirem seguras no país. Em levantamento recente, a Revista Gênero e Número, revelou um aumento de 800% das notificações de agressões contra a população trans, chegando ao grave número de 11 pessoas agredidas diariamente no Brasil. Em um caso recente, uma travesti teve que se fingir de morta para conseguir sobreviver.

Elementos mais comuns nos casos levantados pela pesquisa:
•A maior parte das vítimas é jovem, entre 15 e 29 anos;
• A maioria é negra, pobre e se reivindica ou expressa o gênero feminino;
• Entre as vítimas, a prostituição é a fonte de renda frequente;
• Os crimes ocorrem principalmente nas ruas, principalmente nas ruas desertas e à noite; • Os casos acontecem com uso excessivo de violência e requintes de crueldade;
• Os assassinos não costumam ter relação direta, social ou afetiva com a vítima;
• As práticas policiais e judiciais caracterizam-se pela falta de rigor na investigação, identificação e prisão dos suspeitos;
• É constante a precariedade e a deficiência de dados, muitas vezes intencionalmente, usados para ocultar ou manipular a ideia de uma diminuição dos casos em determinada região;
• Nos poucos casos em que a acusação é conduzida, os crimes, geralmente, ficam impunes ou os assassinos são soltos, mesmo tendo confessado, em diversos casos;
• A importância e a gravidade destes crimes tendem a ser minimizadas e explicadas pela identidade de gênero, atribuindo-lhes responsabilidade por suas próprias mortes;
• Há casos dados como “morte por causas naturais”, o que prejudica a implementação falta de um inquérito adequado para buscar as verdadeiras causas da morte, destacando, em particular, a falta de inquérito sobre as ações e envolvimento de forças policiais.
• Não há respeito à identidade de gênero das vítimas na condução dos casos e elas são registradas como indivíduos do sexo masculino, o que apresenta aumenta a subnotificação e dificulta a identificação dos casos para fins de pesquisa;
• Os casos criminais são afetados pelos estigmas e preconceitos negativos que pesam sobre as travestis e as mulheres trans;
• O descrédito de suas vozes os coloca em posições desfavoráveis como testemunhas e vítimas e, por sua vez, promove seus agressores.
• É comum a palavra dos assassinos ser utilizada para obstruir, ou enfraquecer o indiciamento ou julgamento por se apresentarem como senhores de bem;
• Travestis e mulheres trans são frequentemente recebidas mais como suspeitas do que como queixosas ou testemunhas. Isso as desencoraja de recorrer à Justiça ou às forças policiais, particularmente no caso de pessoas envolvidas em prostituição. Nos casos em que os autores fazem parte da força policial, isso também coloca em risco a vida daqueles que tentam solucionar o crime (Gilardi, comunicação pessoal, abril de 2016);
• A impunidade favorece o assassinato.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

Últimas