“Ministra Marina, que bom reencontrá-la”, disse, sorrindo e em tom de deboche, o mesmo parlamentar que, em março, afirmou publicamente ter “vontade de enforcá-la” durante um evento no Amazonas. À época, Plínio Valério (PSDB-AM) não demonstrou arrependimento. Pelo contrário: reafirmou sua fala e, mais tarde, tentou desqualificá-la como uma “brincadeira”. Como se ameaçar uma mulher — uma ministra de Estado — fosse algo leve, banal.
Acesse o resumo do que aconteceu na sessão.
Durante sua intervenção, o parlamentar seguiu no ataque: “Ao olhar para a senhora, estou falando com a ministra, não com uma mulher, porque a mulher merece respeito — a ministra, não. Vamos separar”, declarou.
Mas como separar a mulher do cargo que ela ocupa, das decisões que toma, da autoridade que exerce? É justamente por ser mulher — e, ainda mais, uma mulher negra em posição de poder — que ela se torna alvo de violência.
Esse tipo de espetáculo misógino não é um deslize: é estratégia de silenciamento e humilhação. Expõe, com todas as letras, o que significa ser mulher na política brasileira. E o recado é ainda mais cruel quando quem ocupa esse lugar é uma mulher negra: não basta estar no poder, é preciso o tempo todo provar que se pode estar ali.
Como se não fosse o suficiente, a provocação escalonou para intimidação, desta vez explícita. “A senhora está gritando, quando diz que eu sou o psicopata, a senhora está acreditando na sua afirmação? (…) Tá com medo de mim ministra?”, perguntou Plínio, enquanto Marina se retirou da sala. Ele se referia à resposta dada por ela, meses antes, quando ele declarou publicamente ter vontade de enforcá-la.
A luta exige resistência — e, em muitos dias, também exige não vomitar.
O mesmo parlamentar que enforcaria a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima recorreu ao velho álibi de sempre para justificar sua fala misógina: já foi casado duas vezes, tem filhas, netas, enteada, irmãs. Mais um “homem de bem” que acredita que conviver com mulheres o isenta de ser machista. Representante da tradição que acha que o lugar da mulher é na cozinha ou servindo de adorno. Como se não soubéssemos que a maioria das violências contra meninas e mulheres vem justamente de maridos, pais e irmãos.
Ainda durante a sessão, três parlamentares protagonizaram a confraria do ataque, da humilhação e do silenciamento. Tantos outros assistiram calados, como quem consente. Esses são os homens que se sentem ameaçados por mulheres que não se submetem. E por isso atacam. Repetem, em coro, os velhos mantras do patriarcado:
“Ponha-se no seu lugar”, disse Marcos Rogério (PL-RO), que presidia a sessão; “Você não merece respeito”, declarou Plínio com cinismo; “nhen, nhen, nhen, blá, blá, blá”, desdenhou Omar Aziz (PSD-AM) — enquanto mantêm seus privilégios às custas do desrespeito, da violência e da desinformação.
Em certo momento, a ministra viu sua fala reduzida pelo senador Omar Aziz à “ideologia” — um recurso cada vez mais frequente para invalidar qualquer discurso comprometido com justiça social. A verdade é que não há nada mais ideológico do que o machismo, o racismo e o elitismo que sustentam esses discursos.
Na sessão em que Marina Silva foi novamente alvo de violência política de gênero e raça, o que ficou foi a revolta — e uma tristeza profunda.
Porque ouvir aquele tom, perceber o desprezo, assistir à tentativa de humilhação, tudo isso dói. Deu vontade de abraçar Marina e dizer que vai ficar tudo bem. Mas o que mais machuca é saber que, com esse Congresso e com o que se repete diariamente nos rincões do país, não vai ficar tudo bem.
Vivemos num país onde a misoginia e o racismo seguem sendo práticas recorrentes nas estruturas de poder. Onde ameaças são naturalizadas e a violência vira espetáculo político. Onde se homenageiam torturadores, se ridicularizam os direitos humanos, e se tenta silenciar qualquer mulher que ouse se posicionar. Um país onde frases como “não merece ser estuprada” seguem impunes. É esse o Brasil que ainda autoriza e normaliza essas violências.
“E eu não sou uma mulher submissa.” A frase dita por Marina ecoa alto e firme em meio ao barulho dos que tentam calá-la. Em um ambiente hostil às mulheres — sobretudo às mulheres negras — sua existência política já é, por si só, um ato de insubmissão.
E para encerrar com o manual clássico do machismo, durante sessão no Plenário do Congresso, vieram os comentários que sempre aparecem quando uma mulher reage aos que tentam, aos gritos, silenciá-la: disseram que Marina estava exaltada, agressiva, nervosa — talvez doente, quem sabe sob efeito de remédios. Tentaram transformar sua firmeza em descontrole, sua defesa em desequilíbrio. Como se sua reação não fosse proporcional aos ataques em ofensas e gritos ininterruptos. Como se aquele ambiente, de provocação e desrespeito, não fosse insalubre o suficiente para desestabilizar qualquer pessoa minimamente comprometida com o bem comum.
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Como bem analisou a antropóloga argentina Rita Segato, no livro La guerra contra las mujeres (2016) vivemos a “mafialização da política”, em que o mandato da masculinidade opera pelo poder autoritário. A violência, nesse contexto, não se trata de deslize, é método para exibir força, impor medo, consolidar poderes diante da plateia. É uma estratégia para excluir as mulheres dos espaços de decisão.
Os mafiosos do patriarcado estão sempre à espreita. Esperando uma brecha para atacar, desqualificar, humilhar. Mas Marina não se dobra. Eu saí dali mais fortalecida. Eles não conseguiram me intimidar”, afirmou a ministra à GloboNews. “Ninguém vai dizer qual é o meu lugar. O meu lugar é defendendo aquilo que eu acredito. O meu lugar é trabalhando para combater a desigualdade, ter um modelo de desenvolvimento que gere prosperidade”, completou.
Ser uma mulher negra, pobre e com posições firmes continua sendo uma afronta no Brasil. A política tradicional ainda tenta empurrar essas mulheres para os bastidores. Mas elas seguem ocupando a cena — com inteligência, coragem e força. E por isso incomodam.
Quando os que deveriam zelar pela democracia usam o púlpito para destilar misoginia e racismo, mostram que não compreendem nem respeitam o que é política. E é por isso que precisamos ouvir mais as vereadoras das periferias, das zonas rurais, das comunidades indígenas e quilombolas. Elas já enfrentam diariamente essa violência — e seguem resistindo.
O que Marina viveu é apenas a face visível de um país que não cicatrizou suas feridas mais profundas. Um país que relativiza a violência contra as mulheres, normaliza o racismo e se incomoda com a dignidade. Mas também é um país onde mulheres como Marina seguem em pé, dizendo com a voz firme de quem conhece a dor e a luta. Afinal, nunca é demais afirmar que lugar de mulher é onde ela quiser.
“Quando esse bode expiatório é uma mulher preta, de origem humilde e que tem convicção… ninguém vai dizer, nem o senador e nem ninguém, qual é o meu lugar. O meu lugar é defendendo aquilo em que eu acredito”, disse a ministra em entrevista.
Em um dos ataques, Omar Aziz gritou que a ministra atrapalha o desenvolvimento do país. Quem atrapalha o desenvolvimento do país são vocês — machistas, racistas, misóginos — que defendem um desenvolvimento a qualquer custo. São vocês, nobres parlamentares, que fazem da violência uma estratégia e do atraso uma convicção.
Marina Silva é o futuro. Ela é vanguarda, reconhecida mundialmente por sua defesa do meio ambiente e por sua compreensão de que a crise climática é a maior ameaça à humanidade.
Vocês, do petróleo, do agro predatório, que tentam silenciar, humilhar e desqualificar uma mulher para “passar a boiada” sobre o meio ambiente. Vocês são apenas homens que não suportam ver uma mulher que não é submissa, que não abaixa a cabeça, que pensa e age com coragem.
Vocês são o que há de pior no Brasil. Mas o tempo de vocês está acabando. Vocês são os senhores do atraso — e é para o passado que vão voltar. Porque o futuro já começou, e ele tem rosto, voz e coragem de mulher. De uma mulher como Marina Silva.
Desculpem, nobres senhores: o que incomoda vocês é que ela não nasceu para obedecer.
Resumo
- Durante uma sessão da Comissão de Infraestrutura do Senado, a ministra Marina Silva foi ofendida por falas do senador Omar Aziz (PSD-AM) e questionou a condução dos trabalhos feita por Marcos Rogério (PL-RO), que presidia a sessão. Rogério interrompeu repetidamente a fala de Marina, cortando seu microfone e ironizando suas queixas. Em resposta, a ministra afirmou que o senador gostaria que ela “fosse uma mulher submissa”. E completou: “E eu não sou”.
- A tensão aumentou quando Marcos Rogério, sentado ao lado da ministra, reagiu dizendo: “Me respeite, ministra, se ponha no teu lugar”. Diante da repercussão da frase, tentou se justificar, alegando que se referia ao “lugar” institucional de Marina como ministra de Estado.
- A situação foi se escalando quando o senador Plínio Valério (PSDB-AM) declarou que era preciso “separar a mulher da ministra”, porque, segundo ele, “a mulher merece respeito e a ministra, não”. Não é a primeira vez que Valério ofende Marina: em março, durante um evento no Amazonas, disse ter “vontade de enforcá-la”.
- Em entrevista à GloboNews, a ministra Marina Silva afirmou que ninguém determinará seu lugar, destacando sua trajetória como mulher preta, de origem humilde e convicta: “Ninguém vai dizer, nem o senador e nem ninguém, qual é o meu lugar. O meu lugar é defendendo aquilo que eu acredito, trabalhando para combater desigualdade, ter um modelo de desenvolvimento que gere prosperidade”, declarou.
- Marina também apontou para o racismo e machismo da violência política que sofreu. “Quando esse bode expiatório é uma mulher preta, de origem humilde e que tem convicção, e que ninguém vai dizer, nem o senador e nem ninguém, qual é o meu lugar. O meu lugar é defendendo aquilo que eu acredito.”