Pode acontecer que, ao sabermos que uma velha francesa acabou de ganhar o prêmio Nobel, a gente não se dê conta do quanto isso pode nos tocar.

Mas eu me lembro do impacto das palavras dela, da falta que algo como aquilo nos fez ou faz, mesmo sem sabermos o que era, onde estava, como procurar. Com todos os livros dela essa sensação se renovou, mas foi talvez com “O acontecimento” que a coisa tenha ficado mais clara pra mim.

O que ela toca parece algum tipo de carvão: o escuro quebradiço, oculto, uma espécie de resto queimado de nós. Um aborto, por exemplo. Feito por uma moça sozinha, quase sem dinheiro, perplexa e assustada com algo do próprio corpo que se dá à sua revelia.

E não só a coisa em si e durante, mas também o caminho tortuoso antes e depois do acontecimento, o ruminar abafado por anos, décadas, a solidão persistente ligada àquela experiência, a lembrança de todos os degraus e faces com os quais ela se deparou então: um calvário tão discreto, uma coleção de rostos virados, de recomendações cínicas (só no Brasil, por exemplo, algo que acontece com cerca de 1 milhão de mulheres a cada ano. Que hospitaliza 250.000. E mata outras tantas). 

Pois bem: eu me lembro de uma das minhas avós falando de um médico que fazia a coisa num endereço logo atrás do cinema principal da cidade: as moças entravam na sessão e saíam pelos fundos, disfarçadamente. Voltavam antes do filme acabar, lívidas. As aparências mantidas e a dor oculta. Isso quando voltavam. Sendo que essas eram as sortudas, digamos assim: as que ainda podiam tentar pagar por alguma intervenção profissional. Lembro-me da outra avó também comentar, de raspão, algo relativo a agulhas de tricô, beberagens, pesadelos compartilhados entre amigas. Quase morriam tantas vezes.

Daí a explosão trazida pelas palavras que li de Annie Ernaux. Então havia quem levantasse aquele véu, havia quem procurasse olhar dentro dessa sombra imensa? Com tal cuidado meticuloso, com tal honestidade desarmada e sóbria, com esse coração tão incerto e íntimo e coletivo nas mãos? Como em algum ponto, antes, num conto de Alice Munro. Como noutro, de Lucia Berlin. Como em tão poucos lugares, tão raros, tão pouco vistos e lidos. 

Como se não estivéssemos ainda hoje soterradas de discursos prontos que elidem a experiência e a humanidade que nos cabe a todas. O da “defesa da vida”, por exemplo, que ignora orgulhosamente a vida perdida das próprias meninas e moças largadas à deriva. O do “meu corpo, minhas regras”, que finge não saber que o corpo não nos obedece nem é uma propriedade assim tão regulável por nossas pobres decisões. Etc etc.

Pois o fato é que estaríamos ainda mais aturdidas e sós, sem Annie Ernaux. E sem a literatura, tocando no que há da vida de todos nós que não se rende e extrapola o mero uso e resiste à pressão do esquecimento. Sem ela estaríamos mais distantes inclusive de nossas avós tantas vezes emudecidas, mas também das mulheres ao nosso lado ainda hoje, e também dos riscos que ainda hoje ameaçam as nossas filhas. E estaríamos todas imersas demais naquilo que em nós permanece tragicamente ignorante das coisas da vida, dos laços ocultos fundamentais que nos aproximam apesar de tudo através dos tempos. 

É desse carvão comum que ela fala. Desse carvão que, trabalhado com a devida pressão e com o tempo acumulado sobre si, vira às vezes diamante: enfim transparência, riqueza nítida, alguma herança.

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  • Cristiane Brasileiro

    Doutora em Literatura pela PUC- Rio, professora adjunta na UERJ. Coordena projetos na área de formação continuada para p...

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