Ligia Moreiras: acredito mais do que tudo no poder da educação e do acesso à informação
Nesta semana, o Portal Catarinas fez uma chamada às candidaturas feministas de Santa Catarina, voltadas especificamente às candidatas mulheres cis e trans. A ideia é mapear essas candidaturas feministas do estado e gerar maior visibilidade para suas propostas. O mapeamento acontece a partir do preenchimento do formulário pelas candidatas. As respostas serão publicadas na íntegra por ordem de envio.
A segunda a responder o formulário é Ligia Moreiras, 40 anos, postulante a uma vaga na Assembleia Legislativa pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Mulher cis* e branca, Ligia vive em Florianópolis. Sobre sobre sua orientação sexual respondeu que está em exploração. Idealizadora da plataforma Cientista Que Virou Mãe, a candidata é bióloga, mestre e doutora em ciências e doutora em saúde coletiva.
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Catarinas: Conte um pouco sobre sua trajetória de vida/militância e quais motivações a levaram a disputar essas eleições.
Ligia: Cresci em São Bernardo do Campo, vendo os movimentos dos trabalhadores crescer para que o povo pobre pudesse ser representado, morando bem perto das montadoras e metalúrgicas. Cedo percebi que sem a participação popular, os interesses do povo nunca seriam pautados. Me graduei em Biologia, depois fiz mestrado em Ciências, me dividindo entre pesquisa e o amor pela ciência e a atuação popular comunitária, em cursinhos pré-vestibulares comunitários, formando professores das escolas públicas como educadores ambientais, entre outras ações. Fiz meu primeiro doutorado em Florianópolis, na UFSC, e ao final dele, engravidei. A chegada de uma gravidez inesperada transformou completamente minha vida, meus valores e meu posicionamento no mundo. A busca por um parto respeitoso me fez descobrir a violência obstétrica e a indignação de saber que as mulheres eram violadas em um momento de tamanha vulnerabilidade quanto o nascimento de um filho não me permitiu seguir em frente em minha carreira profissional anterior. Larguei tudo o que havia construído academicamente e, com um bebê de menos de 1 ano no colo, decidi fazer um segundo doutorado, pesquisando a violência obstétrica no Brasil. Tornei-me ativista e militante pelos direitos das mulheres ao próprio corpo, contra a violência que nos fere e mata e em defesa da infância. Criei a plataforma Cientista Que Virou Mãe para reunir mulheres mães que produziam conteúdo para outras mulheres, defendi minha tese, intitulada “Ameaçada e sem voz, como num campo de concentração”, onde relato os horrores de ser vítima de violência obstétrica no Brasil, e tenho a satisfação de vê-la sendo usada, pela Organização dos Estados Americanos (OEA) como prova contra o Brasil por violação dos direitos humanos das mulheres brasileiras. Em 2018, após a execução de Marielle Franco, senti-me compelida a me colocar à disposição para representar as mulheres na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, como candidata a Deputada Estadual. Sou mulher, sou mãe, sou ativista, sou cientista, feminista, sanitarista, e sei que a única alternativa possível para nós, mulheres, na luta contra o fascismo e o ódio é: ELEGERMOS MUITAS MULHERES FEMINISTAS COMPROMETIDAS UMAS COM AS OUTRAS.
Catarinas: Qual a importância de se eleger mulheres feministas em 2018?
Ligia: Desde 2013, vemos a tentativa de descaracterização e enfraquecimento dos movimentos sociais e a luta contra o partidarismo. Em 2014, juntamente com a reeleição de Dilma, vimos a formação do Congresso Nacional mais reacionário de toda a história brasileira. Ali, vimos que não seria fácil. Mas ficou ainda pior do que imaginávamos. Com o golpe misógino de 2016, temos visto a destruição dos direitos duramente conquistados e o congelamento das verbas que nos contemplariam como povo. Em setembro de 2016, como mulheres feministas, tomamos as ruas e mostramos que um movimento forte e contundente se fortaleceria ali. Vivemos a destruição progressiva de nossos direitos em 2017, o avanço da misoginia, do racismo, da homofobia, do neoliberalismo. E em 14 de março de 2018 vimos a execução de Marielle Franco. Não vamos conseguir impedir o avanço dessa destruição, cujas vítimas preferencias têm cor, gênero e endereço certos, se não colocarmos mulheres feministas no poder legislativo. Não dá mais pra aceitar que homens em sua imensa maioria brancos governem para e pelo capital, matando mulheres, matando o povo LGBT, matando o povo negro, vendendo nosso território e queimando nossa história. Se há um grupo de pessoas que pode e irá transformar a política e trazer representação ao povo brasileira ele tem nome: são as mulheres feministas. E é agora, nas eleições gerais de 2018. Esperar pode ser tarde demais pra quem já vem morrendo como mosca.
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Catarinas: Quais as principais questões a superar hoje em relação à desigualdade entre homens e mulheres? E quais suas propostas para isso?
Ligia: A desigualdade entre homens e mulheres tem base histórica no país, sempre governado por homens e que depôs nossa única mulher presidenta em um golpe claramente misógino. As questões educacionais têm papel de destaque na superação dessas desigualdades: quando ensinamos meninas e meninos que é preciso ser respeitado e tomar o poder, que podemos fazer isso, transformamos o futuro. A Escola Sem Partido será a morte de um futuro igual em termos de gênero e é preciso combatê-la municipal, estadual e nacionalmente. Acesso à saúde universal, fortalecendo o trabalho do SUS, é decisivo nessa questão para todas as pessoas, mas ainda mais para as mulheres, para que deixemos de morrer por falta de acesso ao abortamento seguro e para que possamos parir sem sermos violadas. A inserção das mulheres no mercado de trabalho, para que tenham autonomia financeira e não sejam vítimas de violência patrimonial, com a criação das condições que tornarão sua permanência possível (paridade salarial, creches estruturadas em horários que as contemplem, acesso a restaurante popular, entre outras questões), vem como estratégia prioritária. Quando os direitos trabalhistas e previdenciários nos são usurpados, são as mulheres as primeiras a serem afetadas, com ainda maior impacto para as mulheres que são mães. Minhas propostas focam exatamente nestas questões:
– a luta contra a violência à mulher catarinense, com a criação de delegacias de atendimento exclusivo às mulheres, a interiorização do atendimento, com foco nas regiões com maior índice de feminicídio, a criação de Casas de Acolhimento e Passagem;
– a luta contra a violência à criança, que vem sendo invisibilizada no Estado, contribuindo para que sejamos o segundo Estado brasileiro em pornografia infantil;
– a luta pela humanização do parto e contra a violência obstétrica, com a criação de Casas de Parto em diferentes municípios estratégicos, a criação de estratégias que insiram ainda mais as enfermeiras obstetras na assistência ao parto de risco habitual, a garantia da presença e permanência das doulas na cena de parto;
– a luta pela inserção de mulheres mães no mercado de trabalho catarinense, com a criação de programas de incentivo para empresas que mais contratarem mulheres que são mães;
– a luta pela garantia dos recursos destinados a saúde da menina, da mulher e da idosa;
– a fiscalização do devido atendimento a mulheres em situação de abortamento previsto por lei por instituições que estão se negando a atendê-las;
– o compromisso com a luta em defesa do SUS, contra a privatização e com garantia de fortalecimento à estratégia Saúde da Família;
Entre outras propostas que contemplam as meninas e as mulheres catarinenses.
Catarinas: Como pretende atender às diferentes especificidades das mulheres, contemplando em seus projetos as mulheres negras, indígenas, lésbicas e mulheres trans?
Ligia: Atender às diferentes especificidades das mulheres só é possível mediante representatividade direta. Assim, a criação das comissões e núcleos de mulheres negras, indígenas, lésbicas e trans no mandato representado por minha candidatura é compromisso assumido. Nos moldes da Gabinetona – vereança em Belo Horizonte representada pelas vereadoras Áurea Carolina e Cida Falabella (PSOL) -, vamos criar tais comissões em nosso mandato horizontal e coletivo para que as próprias mulheres envolvidas pautem suas questões e estejam ativamente envolvidas nos processos decisórios legislativos. De forma que não partirá de mim, candidata eleita, as decisões acerca das pautas a serem levadas adiante, mas das próprias mulheres, em um compromisso explícito com o protagonismo dos grupos e pelos grupos. Haverá prioridade total para as questões de raça, classe e gênero em todas as propostas e projetos pautados por nosso mandato.
Santa Catarina é o segundo estado do País com maior número de estupro, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. De acordo com o mesmo relatório, em 2017, foram registrados 48 feminicídios. Como pretende atuar para a redução da violência contra as mulheres em SC?
Ligia: Por meio de:
– Reestruturação da rede de acolhimento à mulher em situação de violência, que passa por formação continuada em violência de gênero aos profissionais envolvidos;
– Criação das delegacias exclusivas de proteção à mulher, que hoje se encontra fundida em forma de Delegacia da Criança, Adolescente, Mulher e Idoso;
– Construção e estruturação das Casas de Acolhimento e Passagem, com acolhimento devido à mulher em situação de violência e seus filhos;
– Interiorização das estratégias de acolhimento à mulher em situação de violência com foco nas mulheres trabalhadoras rurais, que não vêm recebendo atenção devida.
Catarinas: Quais resistências vêm enfrentando em sua campanha e quais imagina enfrentar se for eleita para um cargo de poder tradicionalmente ocupado por homens, brancos heterossexuais?
Ligia: Estou em um partido considerado à esquerda, o PSOL. E, ainda assim, vivendo na pele o machismo estrutural que existe inclusive nestes espaços, representado por agressões verbais provenientes de militantes homens, distribuição de fundo eleitoral que privilegia homens brancos na disputa pelo mesmo cargo que eu e outras ações que evidenciam o poder nas mãos dos homens brancos heterossexuais. Continuar a ser candidata tem sido, por si só, com este fundo, uma forma de resistência. Esta semana, fui mandada à merda por um correligionário. Espera-se de mulheres, quando da presença de ataques como esse, o silenciamento e o constrangimento. Que não virão de mim! Não vou silenciar, não vou me calar e expor essas formas de violência estruturais também é forma de resistência.
Realizar uma campanha com pouco dinheiro, com pouca gente trabalhando em sua maioria de maneira voluntária, tendo que trabalhar para gerar renda e cuidar de criança em idade de primeira infância são, por si só, formas de resistência. Tem sido devastador. Mas muito pior é para outras mulheres que sequer podem acessar o sistema político eleitoral, como eu tenho o privilégio de poder. Minha presença e o tensionamento que causo são estratégias de resistência. Especialmente neste momento histórico, onde cidadãos se sentem contemplados por um candidato fascista.
Catarinas: Enquanto uma candidata feminista como pretende atuar de forma a enfrentar os discursos reacionários que acreditam na existência de uma “ideologia de gênero” e que não admitem que as mulheres tenham autonomia plena sobre seus corpos, incluindo aí a pauta pela descriminalização do aborto?
Ligia: Sou uma cientista e acredito mais do que tudo no poder da educação e do acesso à informação. A questão é que ter acesso à informação em um país como o nosso já é uma forma de exclusão e privilégio. Mostrar de forma compreensível os dados relacionados à violência de gênero é algo que nem todos fazem, partindo do princípio do que “é óbvio”, numa postura elitista que não tem ajudado a promover a reflexão. Todas as crianças são vítimas de opressões sexistas – e todas as pessoas viveram isso na pele. Todas as pessoas conhecem mulheres que já abortaram.
Todas as mulheres heterossexuais ou bissexuais já viveram a angústia da possibilidade de uma gravidez indesejada.
Sempre, quando sou confrontada a respeito do meu posicionamento sobre a falácia da ideologia de gênero ou sobre a legalização do aborto, apelo à humanidade das pessoas e não me farto de fornecer a elas informação. Converso com calma, com tempo, envio material, me disponho a encontrá-la pessoalmente, a conduzir uma roda de conversa – e a grande surpresa é que venho obtendo um resultado maravilhoso! Não venho recebendo ódio em contrapartida, acredito que porque as pessoas veem meu esforço em ajudá-las na questão educacional e porque meu discurso é coerente: não é violento. Porém, esse meu esforço individual e de todas as mulheres envolvidas nesta campanha, tem gênero: é voltado para as mulheres. Porque vemos a campanha eleitoral como um momento talvez incomparável de levar informação a um maior número de mulheres.
Catarinas: Quais pautas são prioritárias na sua plataforma de campanha?
Ligia: Nossas pautas prioritárias são:
– a luta contra a violência à mulher catarinense;
– a luta contra a violência às crianças, que são sistematicamente invisibilizadas;
– a melhoria da vida integral das mulheres que são mães;
– a defesa da ciência catarinense e das universidades, que estão sob ataque e ameaça de desmonte;
– a defesa e o compromisso com o SUS em Santa Catarina;
– o compromisso com a reformulação da política de drogas;
– e a luta constante pela defesa da democracia e dos princípios democráticos.
*Cis caracteriza a pessoa cuja identidade de gênero é a mesma designada no nascimento.