O Portal Catarinas fez uma chamada às candidaturas feministas de Santa Catarina, voltadas especificamente às candidatas mulheres cisgênero e transgênero. A ideia é mapear as postulantes feministas do estado e gerar maior visibilidade para suas propostas. O mapeamento acontece a partir do preenchimento do formulário pelas candidatas. As respostas serão publicadas na íntegra por ordem de envio.

A nona candidata a responder o formulário é Kerexu, 35 anos, postulante a uma vaga na Câmara Federal pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Mulher cis*, heterossexual e indígena, Kerexu vive na Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Palhoça. Foi cacica do seu povo Guarani e é formada em Licenciatura Indígena pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Catarinas: Conte um pouco sobre sua trajetória de vida/militância e quais motivações a levaram a disputar essas eleições.
Kerexu: Sou Mulher indígena, da etnia Guarani que habita milenarmente este estado e este país, originariamente nosso. Sou mãe, avó, formada em Licenciatura Indígena pela Universidade Federal de Santa Catarina e, antes de tudo, nasci Guerreira.  Sempre acompanhei as lideranças do meu povo e depois que cresci passei a acompanhar o Movimento Indígena do Brasil, que é referência no Planeta por sua diversidade e força na defesa da Floresta e do Bem Viver. Fui escolhida para ser cacica da Terra Indígena Morro dos Cavalos, para nós uma função que une Diplomacia entre o universo não-indígena e o multiverso Guarani, pois em nossas aldeias somos muitos seres além dos humanos: somos plantas, bichos da floresta, ar, água, fogo e todas as entidades ancestrais que nos criaram e seguem conosco. Depois que deixei de ser cacica devido às ameaças de morte e ataques que sofri, continuei na militância no Movimento Indígena e fui articuladora da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil -, que reúne todos os Povos Indígenas brasileiros, somos 305 etnias e falamos 274 línguas diferentes.
Quando se aproximaram as eleições, nós indígenas nos organizamos nacionalmente para vencer uma barreira histórica, que é de ocuparmos uma cadeira no Congresso Nacional, que foi ocupada apenas pelo cacique Mario Juruna, eleito em 1982 até 1986. Nossa missão em 2018 é eleger o máximo de indígenas possível em todos os estados do país, e aqui em Santa Catarina eu represento esta missão com muito orgulho e força na vitória.

Catarinas: Qual a importância de se eleger mulheres feministas em 2018?
Kerexu: Nós Mulheres teríamos que ocupar a maioria das cadeiras do Congresso, pois somos maioria no Brasil. Mas não é assim que vemos na realidade. Vemos todos os dias líderes homens e a maioria machistas, que disputam o poder sem qualquer noção de cuidado com os demais, e pensam apenas em seus grupos políticos. As poucas Mulheres que no Congresso nos representam precisam de nosso apoio para não sofrerem com os atropelos dos truculentos, que reverberam em cada canto do país com o feminicídio, estupro e toda a forma de ataques machistas às Mulheres. Ser feminista é ser Guerreira, e essa é minha missão.

Catarinas: Quais as principais questões a superar hoje em relação à desigualdade entre homens e mulheres? E quais suas propostas para isso?
Kerexu: A principal questão é que a sociedade que é ainda machista, aprenda a respeitar os Direitos de todos, Mulheres e homens, e não apenas o Direito dos homens. As Mulheres produzem e estão em vários postos de trabalho nesta sociedade, apesar das dificuldades de se colocarem nas vagas, mas não recebem os mesmos direitos trabalhistas e salariais. Há ainda candidatos como “o Coiso”, que faz ameaças aos Direitos das Mulheres e busca trazer do passado algo que estamos superando, unidas, todos os dias, em casa e nas ruas. Não podemos jamais deixar que um sujeito como este seja eleito. Como propostas concretas, levarei ao Congresso Nacional minha tradição de Mulher Indígena, Guerreira, defendendo com olho no olho dos demais deputados que forem eleitos comigo. Vou debater democraticamente todas as questões, sempre defendendo a Mulher, desde a nossa Mulher Mãe Terra que nos acolhe e todos os dias é estuprada por empreendimentos abusadores da vida e que retiram nosso Bem Viver; defenderei a Mulher Mãe Humana que vive todos os dias lutando para manter seus filhos, e vou fiscalizar as instituições para que os Direitos da Mulher sejam garantidos nas capitais e interiores deste país, recebendo denúncias e expondo as situações dentro do Congresso Nacional, fazendo reverberar nacional e internacionalmente os crimes contra nossas Mulheres. Também defenderei a Mulher que escolheu sua orientação sexual como lhe é melhor viver, independente do que a sociedade machista pensa, e garantir que ela viva sua vida e que seja plena de si, com segurança e saúde, com Direitos de Ir e Vir garantidos.

Catarinas: Como pretende atender às diferentes especificidades das mulheres, contemplando em seus projetos as mulheres negras, indígenas, lésbicas e mulheres trans?
Kerexu: Sou Mulher Indígena, Filha de Mulher Indígena e Neta de Mulher Indígena e sofremos desde o ano 1500. Sei exatamente onde nos dói e reconheço a mesma dor nas Mulheres Negras que foram escravizadas, mas resistiram com sua religiosidade, tradição e precisam que mais Mulheres se unam nesta causa que é de todas nós. As Mulheres Trans e Lésbicas também não podem sofrer e, unidas, retomaremos as grandes Conferências Nacionais de Mulheres, contando suas histórias umas às outras, buscando caminhos e soluções. Confio que assim poderemos melhorar a situação de todas. Os resultados das Conferências não podem ficar apenas no papel ou em fotos, mas precisam ser implementados e com agilidade. Por isso, como Deputada Federal buscarei incansavelmente recursos e articulações para que a Política Feminina seja pensada e executada por Mulheres, Feministas, e não por machistas que só pensam que Políticas Públicas servem para custear eventos. Mostraremos que recursos públicos podem ser investidos em todas as Mulheres deste país, do interior ou das capitais, Negras, Indígenas, Lésbicas, Trans, num só sonho que se tornará realidade.

Catarinas: Santa Catarina é o segundo estado do País com maior número de estupro, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. De acordo com o mesmo relatório, em 2017, foram registrados 48 feminicídios. Como pretende atuar para a redução da violência contra as mulheres em SC?
Catarinas: A violência contra a Mulher deve ser extirpada de nossa realidade planetária. Ninguém em sã consciência violentaria quem lhe deu origem, e se isso ocorre, como vemos em vários Estados e Países, é sinal de que estamos vivendo uma insanidade. As Mulheres, não apenas as Indígenas das Américas ou da África, sabem que a escassez leva a conflitos e violência, inclusive entre familiares. Acredito que estamos sofrendo com a escassez de soluções e futuros, e terminamos vivendo em situação de concorrência onde o lado mais fraco sempre perde, e neste caso as Mulheres representam o lado mais fraco diante de machistas e estupradores. A origem da impunidade, nesta perspectiva, é que no estado de escassez a violência passa a ser comum e agredir, estuprar, assassinar Mulheres se tornou um crime que choca menos. E choca ainda menos se elas tiverem pele e origem Negra ou Indígena.
Para extirpar esta violência será preciso uma grande solução que estou preparada para propor ao País, que será a busca pela abundância, onde não seja preciso que ninguém seja “melhor” que ninguém; mas que sejamos todas e todos iguais e busquemos nosso Bem Viver em conjunto. Para isto, precisaremos de propostas que mudem nossa Educação e nosso modelos Escolar para Escolas Comunitárias, onde a criança não seja tratada como cidadã apenas depois de adulta, mas que já aprenda as responsabilidades comunitárias que tem, desde a infância, na relação com a alimentação, com o lixo que produz, com a vida ao redor que ela afeta. Este estado de cuidado resultará numa sociedade que observa e promove a vida, que promove a abundância e não apenas aceita a escassez e parte para a violência. Sei que muitas pessoas gostariam de ouvir como proposta a criação de mais delegacias da Mulher e mais policiamento, mas não acredito nisso como mudança real para as Mulheres. Isso apenas geraria mais violência e levaria-nos a retornar ao ponto inicial da escassez, estupros, agressões e assassinatos de Mulheres por sermos mais fracas (fisicamente falando) que os agressores.

Catarinas: Quais resistências vêm enfrentando em sua campanha e quais imagina enfrentar se for eleita para um cargo de poder tradicionalmente ocupado por homens, brancos heterossexuais?
Kerexu: Como Mulher Indígena e Guerreira, sempre enfrentei dificuldades e na campanha eleitoral não está sendo diferente, e estou certa de que em Brasília, no Congresso Nacional, também não será fácil. Mas aprendi com meus ancestrais que todo confronto é um jogo de soma zero, e que é melhor nos juntarmos a quem pense como nós e caminhe junto rumo a um mesmo objetivo. Disputar com quem sei que não irá me dar ouvidos não adianta de nada, pois o que este pessoal ouve são apenas suas próprias vozes. Por isso, quando eleita, continuarei com minha rede de apoio que será transformada em Gabinete de Apoio, com reuniões frequentes, levando e trazendo informações, tomando decisões em conjunto com as pessoas que escolheram digitar o número 5088 para Deputada Federal no dia 7 de outubro de 2018. Lá não serei mais eu, Kerexu, mas seremos todas Mulheres conscientes do mundo que estamos construindo.

Catarinas: Enquanto uma candidata feminista como pretende atuar de forma a enfrentar os discursos reacionários que acreditam na existência de uma “ideologia de gênero” e que não admitem que as mulheres tenham autonomia plena sobre seus corpos, incluindo aí a pauta pela descriminalização do aborto?
Kerexu: As Mulheres são livres como todo ser Humano. Está escrito em nossa Constituição Federal de 1988 que reconhece a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Muitas pessoas já foram assassinadas por acusações de que “tinham uma ideologia” e temos que ter muito cuidado com isto.  Os Direitos foram instituídos para evitar confrontos e guerras, e este é nosso caminho quando nós Mulheres somos acusadas de coisas que os demais não compreendem. Quanto ao aborto, por exemplo, temos que cuidar da Mulher e observar em quais condições ocorreu a gravidez. Ninguém vai sair por aí escrevendo cartilhas sobre como engravidar e depois abortar, como devem pensar muitos como Bolsonaro que fala do “Kit Gay”. As Mulheres precisam de cuidados e abortar uma gravidez não desejada é uma forma de garantia à Mulher seu Direito à Vida, e isto é inegociável pois se trata de Dignidade Humana, que é o maior de todos os Direitos. Certamente na história dos países do Hemisfério Norte e suas guerras infinitas, homens preferiram que suas companheiras morressem para que fosse garantida a vida dos herdeiros, mas naquela época não tínhamos os Direitos Humanos que hoje temos e que devem ser respeitados, independentemente de opiniões. Vamos cuidar das Mulheres!

Catarinas: Quais pautas são prioritárias na sua plataforma de campanha?
Kerexu: Primeiramente proponho nossa relação social e ambiental com a vida não na forma do Viver Melhor, mas sim na forma do Bem Viver. Parece igual, mas é completamente diferente. Bem Viver é quando vivemos e escolhemos nossos rumos em conjunto, analisando e planejando como queremos estar em curto, médio e longo prazo. Viver Melhor é cada um por si, como numa corrida, onde cada um toma sua decisão pensando em si. Este é o estado de escassez que queremos que mude para o estado de abundância. Somente assim poderemos chegar a um Ambiente Ecologicamente equilibrado para todos e todas, e para isso precisaremos de um modelo de Educação Comunitário, onde caibam todos e todas nos planos do futuro onde os nossos jovens irão viver. As Mulheres precisam compreender este modelo de abundância para poderem promover entre si, em suas relações locais, regionais, nacionais e internacionais. Somente unidas e sem concorrência podemos alcançar todos os nossos Direitos, perspectiva que chamo de Ecofeminismo, onde teremos Segurança Alimentar para todas e todos, e assim garantiremos casas e territórios para todas e todos. É uma lógica que dá certo e já deu certo por milhares de anos, aqui mesmo no território catarinense, onde meus ancestrais viveram, e sei que são também ancestrais de muitas Mulheres que até hoje falam que suas “avós foram pegas a laço”, sem perceberem a violência contida nesta frase e, ainda, sem perceberem que se suas avós são indígenas, elas como eu têm raízes fortes de Mulheres Indígenas e Guerreiras. Por isso estou contando com que todas digitem 5088 para Deputada Federal e que juntas possamos viver num mundo em que caibam todas e todos. Obrigada pela oportunidade de falar aqui.

*Cis caracteriza a pessoa cuja identidade de gênero é a mesma designada no nascimento.

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