A decisão da primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF) de não criminalizar o aborto até os três primeiros meses de gestação colocou a pauta da legalização mais uma vez em debate na sociedade. Segundo estima a Organização Mundial de Saúde (OMS), 200 mulheres morrem todos os anos no país: entram para a estatística das mortes evitáveis. É como se um avião com essas centenas de mulheres caísse ao ano por uma omissão deliberada do Estado e da sociedade que o respalda. Não há homenagens, não há luto coletivo. Pelo contrário, há uma afirmação de merecimento. Ao exercer o direito a decidir sobre suas vidas, essas mulheres são criminalizadas e estigmatizadas como assassinas. Logo, merecedoras da morte para a qual estão predestinadas. Suas famílias choram um luto silencioso, quase escondido.
Por trás do argumento simplista em defesa do feto, está uma cultura de violência contra a mulher, construída cotidianamente por uma sociedade patriarcal, machista e misógina que, ao cercear a sua liberdade de viver escolhas, sonega-lhe a existência enquanto pessoa humana. Ao mesmo tempo em que se dá personalidade ao feto retira-se toda a humanidade da mulher, como se uma vida humana em construção fosse tão elementar a ponto de subjugar aquela que é vivida. No determinismo biológico, em que a maternidade é destino, a mulher figura como incubadora.
Camuflado de “pró-vida”, o discurso constrói-se e ampara-se na disseminação de preconceitos. Para além de não levar em conta a desigualdade de gênero que transforma a maternidade em um fardo para as mulheres, ainda lhes imputa a responsabilidade total pela proteção contra a gravidez.
Fica evidente na agressiva máxima “abriu as pernas tem que parir” que o feto é menos importante do que o controle da sexualidade da mulher. Frente a essas violências intimidatórias, é possível entender porque o direito da mulher de decidir sobre sua vida – da qual o ser em desenvolvimento depende – enfrenta dura resistência e requer um esforço dramático de diálogo. Ainda que não admitam ou tenham compreensão, essas pessoas que apoiam o cárcere engrossam sistematicamente o coro da opressão contra a mulher, dando margem para outras violações.
Legisladores de vários países classificam o controle pela via penal – que quando não causa sequelas físicas e emocionais leva à morte – como parte do escopo de feminicídio, caracterizado pelo assassinato de uma mulher pelo simples fato de ser mulher. “O feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse, igualando a mulher a um objeto”, conforme conceito firmado pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher (Relatório Final, CPMI-VCM, 2013).
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Mesmo que não tenha se utilizado do conceito de feminicídio, o ministro Luis Roberto Barroso evidenciou em seu parecer que é por meio da própria desigualdade de gênero que se sustenta a manutenção da criminalização e, consequentemente, das mortes e sequelas evitáveis. Para ele, o debate sobre a garantia do direito à escolha pela interrupção não pode ser adiado, uma vez que é pressuposto para corrigir uma injustiça histórica. “Na medida em que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não”, defendeu em seu voto.
O STF optou neste caso pela saúde e dignidade das mulheres, e a justiça social, levando em conta que o aborto só é inseguro para o contingente mais empobrecido da população. A decisão, apesar de pontual, é simbólica e concreta para os movimentos de direitos sexuais e reprodutivos, pois aventa a possibilidade de avanço do debate e abre precedente para que novos casos recebam o mesmo tratamento.
Barroso não trouxe nenhum componente novo, porém aceitou uma realidade, a qual poderes e sociedade, por conveniência e comodismo, preferem resguardar à esfera de tabu. Diferente do que afirmou o presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (DEM-RJ) – que se apressou em criar uma comissão para reverter a decisão – o ministro não ousou legislar, apenas interpretou o caso à luz da Constituição Federal, cujo texto se sobressai ao ultrapassado código penal da década de 40. Diante de um cenário de avanço do conservadorismo, ele não fez mais que cumprir a lei. “Obrigar pela via do direito penal uma mulher a manter uma gestação que não deseja, viola claramente a Constituição”, afirmou em entrevista ao Estadão.
Agora, é a justiça brasileira que referenda: a prática do aborto até os três primeiros meses encontra-se no campo dos direitos fundamentais, da saúde pública e não da legislação penal, tampouco da religião – tendo em vista que o Estado Laico divide crença de lei. À sociedade cabe refletir sobre a base de um discurso pró-vida – que ao contrário de seu suposto objetivo – leva à morte e mutilação. Cabe vencer o cinismo e a hipocrisia que cercam essa realidade. Uma realidade em que uma em cada cinco mulheres abortam e as pobres morrem. Ao Estado cabe assegurar que a Constituição Federal esteja acima de qualquer retórica, principalmente quando o que está em jogo é a vida das mulheres – que juridicamente sobrepõe-se a uma vida humana em potencial. Aborto não é crime, é um direito.