Por Tabata Pastore Tesser.

Foi na paróquia que frequentava aos 16 anos que descobri o que é um religioso dissimulado. Um catequista de 39 anos, casado com uma agente do Encontro de Jovens com Cristo (EJC), me assediou pela primeira vez. Seu discurso de pânico e perigo me levaram a ser encurralada pelo assediador durante uma carona de volta para casa sob discurso de “proteção” mundana. “O mundo é muito perigoso – te levo para casa vociferava o agente pastoral-assediador. Foi a primeira vez que tive certeza que a força de Deus existia pois, divinamente, a esposa do assediador ligou e pude saltar rapidamente do carro. O que ainda parecia inexplicável pra mim era a dissimulação religiosa em nome de uma suposta e divina “proteção”. 

Só recentemente pude entender que havia sido vítima de assédio e mais propriamente alvo de violência religiosa. Diríamos que a violência religiosa se expressa de muitas facetas e é facilmente sentida quando um sujeito religioso/pertencente de uma comunidade de fé se sente violado por indivíduos que instrumentalizam a religião para fins de dominação e controle. 

São facilmente encontrados líderes cristãos políticos-religiosos que lapidarmente usufruem do discurso religioso para manutenção do status quo e reprodução de violências. Um cristão dissimulado é aquele descomprometido com a vida e com as dores do mundo. É capaz de chegar ao poder, por exemplo, negligenciando a morte de mais de 680 mil brasileiros(as). 

O projeto de poder de Bolsonaro representa não só o atraso que se desimporta com a vida ou defende uma seletiva, mas encarna em si um projeto masculinista que propaga ódio contra grupos subalternizados socialmente. A lista de dissimulação do atual chefe de Estado brasileiro é gigantesca. Sentimos que estamos diante de quatro anos de asfixia constante por parte de um dissimulado religioso. 

Sob judice de versículos fora de contexto, o presidente-cristão (nunca sabemos a qual religião estamos nos referindo) é capaz de, devastadoramente, em um momento de dureza, questionar vacinas, rebaixar a ciência, além de acobertar inúmeros escândalos envolvendo superfaturamento da compra de vacinas e oxigênio. Em meio à uma crise social, econômica e política sem precedentes, o chefe de Estado decidiu fazer piada dos milhares de mortos pela pandemia. O dissimulado religioso é, antes de tudo, fiel ao pesadelo social. Ele se apropria do discurso religioso, domina e destrói. Vidas, corpos, florestas e sonhos. 

Temos um governo que se autointitula cristão, sob o slogan “Deus acima de tudo e Brasil acima de todos”, mas que no momento de maior dificuldade social não zelou nem protegeu a vida das pessoas e escolheu o lugar sombrio do autoritarismo violento.

Na economia, o presidente-dissimulado foi um desastre. Os principais cortes nas políticas sociais afetaram diretamente os mais pobres e ajudaram a ampliar a desigualdade social no país. A incapacidade de gerir uma nação levou o Brasil vergonhosamente ao retorno do Mapa da Fome. Os brasileiros passaram horas e horas em filas de ossos na busca desesperada por comida. Ao cortar políticas de investimento na saúde, educação, trabalho e assistência social, o governo afetou diretamente aquelas que sustentam a pirâmide das famílias brasileiras, virando as costas para as mulheres negras, pobres e cristãs. Sem comida no prato e sob comando de um dissimulado, vivemos o desalento da falta de empregos dignos e convivemos com os altos preços de comida e gás. 

Para comprar base de apoio no Congresso, o dissimulado protagonizou o escândalo do “orçamento secreto” que destina cerca de R$19,4 bilhões de reais para deputados aliados. Em nome da usurpação dos valores religiosos foi capaz de protagonizar um dos maiores casos de desvio de dinheiro no Ministério da Educação (MEC) que levou à prisão do pastor e ex-Ministro, Milton Ribeiro.

Apesar de se autointitular governo ‘pró-vida’ foi nesta gestão que tivemos o pior orçamento para o combate à violência contra às mulheres. O corte possibilitou que só no primeiro semestre de 2022 tivéssemos o aumento de 35% nos casos de feminicídios no país. O dissimulado subjuga e trata as mulheres como seres de segunda classe.

O falso messias passou os últimos quatros anos destilando ódio contra às mulheres e protagonizando um ataque moral contra os direitos historicamente garantidos. Mesmo com milhões de pessoas passando fome, o governo foi capaz de dedicar tempo e dinheiro para perseguir uma menina de 11 anos que estava grávida após ter sido cruelmente estuprada visando não lhe garantir o acesso ao aborto legal.

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Tabata Pastore Tesser em ato pelos direitos das mulheres | Imagem: reprodução.

Um religioso dissimulado é, antes de tudo, um usurpador espiritual que exala fingimento e injustiça. Comprometido com a mentira, o religioso dissimulado é capaz de culpar o “mundo” pelos perigos profanos, enquanto ao dar uma carona comete um ato de violência; é capaz de dizer que é ‘pró-vida’, enquanto persegue uma menina de 11 anos vítima de cruel estupro; é capaz de dizer que levanta a mão sob o judice de Deus, enquanto te espanca com a outra; é capaz de dizer que “mulheres são esposas de Deus”; enquanto rebaixa sua própria filha dizendo que sua criação é advinda da “fraquejada”. 

Está na hora de nós, mulheres cristãs, darmos um basta aos religiosos dissimulados. Começando por tirar um destes da presidência. Estamos fartas de violências religiosas e abuso espiritual. E não, não vamos aguentar mais um pouquinho.

Para acabar com este pesadelo é preciso denunciar os fundamentalismos políticos que se expressam em religiosos usurpadores da fé alheia. O bolsonarismo é um fenômeno religioso que dissimuladamente mobiliza sentimentos e afetos no tecido social e, infelizmente, ainda segue latente na sociedade brasileira. Derrotar este projeto de poder fundamentalista é tarefa permanente de nós cristãos e cristãs que cremos em um Evangelho garantidor de justiça social, reprodutiva e ética. 

*Tabata Tesser é Socióloga, Mestra em Ciência da Religião pela PUC/SP e católica feminista

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