Não bastasse a cruel, ilegal, inconstitucional e anticonvencional concertação entre a magistrada e a promotora de justiça de Santa Catarina ser uma das mais grotescas páginas da história do Judiciário brasileiro, após ter sido garantido à menina o acesso à interrupção legal da gravidez, no parlamento catarinense foi protocolado o pedido de uma “CPI do Aborto” para supostamente apurar se o procedimento a que a criança teve acesso após ter sido libertada do jugo de suas inquisidoras “foi realizado legalmente ou se houve cometimento de crime”. 

Além disso, no Executivo, por meio do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a Consultoria Jurídica do órgão foi instada para que solicite ao Ministério Público a apuração sobre “a responsabilidade cível e criminal da equipe médica que realizou o procedimento de aborto na 29ª semana de gestação”. E, como cereja do bolo, para não perder o hábito de perseguição à imprensa, o Ministério também se movimentou para requerer a abertura de investigação contra o site The Intercept (e possivelmente o Portal Catarinas), “por veicular as imagens e o áudio do depoimento especial sigiloso” da criança à Justiça.

Sob este último trecho do ofício, que trata da imprensa, me permitam um breve parêntesis, pois é irresistível (tanto quanto é necessário) dizer que somente nos delírios de uma mentalidade jurídica messiânica aquela sessão de inquisição medieval a que a menina foi submetida poderia ser considerada como um “depoimento especial”. Tão só essa referência já faria com que a atuação da Conjur do Ministério fosse inadmissível. Fecho parêntesis. 

Já escrevi, aqui nesse mesmo espaço do Catarinas, sobre o que configura o estupro de vulnerável, a licitude da interrupção da gravidez nestes casos e a alternativa penal visando a não aplicação de medida socioeducativa ao menino, caso reste provado ser ele o autor do ato, nesta hipótese, ato infracional (leia Sobre o estupro entre crianças e o caso de Santa Catarina). Não pretendo, portanto, voltar a este tema. 

Contudo, relembro em rápida passagem que a gravidez decorreu de estupro de vulnerável, nos termos do art.217-A do Código Penal segundo o qual: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos: Pena- reclusão de 8 (oito) a 15(quinze) anos […]”. De modo que são injustificáveis, ilegais e contrários ao princípio da dignidade humana e à legislação internacional admitida pelo Brasil, todos e quaisquer gestões e/ou decisões tanto para impedir o acesso ao aborto legal, como para tentar criminalizar o ato já realizado. Em síntese, é flagrantemente abusivo e, a princípio, criminoso, o tal pedido de investigação sobre a conduta de profissionais que nada mais fizeram do que cumprir a lei. 

Segundo o Código Penal brasileiro, constitui crime dar causa à instauração de inquérito policial, de procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente. São estes os termos do art. 339, com a redação dada pela Lei nº 14.110, de 2020, que trata da “denunciação caluniosa”, um dos delitos previstos no capítulo dos chamados “crimes contra a administração da justiça”. 

A pena prevista é de reclusão, de dois a oito anos, e multa. E, como em outros casos, não está excluída também a possibilidade de que todos e todas que fazem parte da equipe médica que realizou o procedimento busquem reparações cíveis em razão dos danos a suas imagens e reputações profissionais que a cruzada do Ministério venha a lhes causar.    

Seria ingenuidade pensar que estes novos e inacreditáveis contornos que este caso tomou são frutos somente das elucubrações da equipe jurídica do Ministério que, em pleno século 21, vive a enquadrar corpos e mentes em parâmetros jurídicos medievais. De fato, envolto nos mais diversos tipos de crimes, o governo bolsonarista busca a todo custo construir factoides capazes de desviar o foco de atenções dos cadáveres que sob sua diretriz de ódio começam a ser empilhados em frente ao Palácio do Planalto. 

A fictícia proteção da criança “desde a concepção”, portanto, não coincidentemente veio na exata semana em que a todo custo o governo precisava dissipar as atenções sobre o homicídio político de Marcelo Arruda. Todavia, reagir a mais este disparate autoritário em defesa da equipe médica e das jornalistas faz parte da luta diária que se tornou viver no Brasil.

Nunca antes na história desse país utilizar a expressão “nunca antes na história desse país…” foi tão lugar comum. 

Mas, quando tudo o que pensávamos de perverso e sórdido já pudesse ter ocorrido ao redor do caso da criança de apenas 11 anos de idade levada a uma instituição de internação para que mantivesse a gravidez fruto de estupro, a misoginia bolsonarista mostrou ser capaz de ainda mais. 

Enfim, nunca antes na história desse país a mentalidade jurídica inquisitória vagou tão plena e à luz do dia pelos corredores dos poderes constituídos cujo compromisso paradoxalmente é (ou deveria ser), por determinação constitucional, com a ordem democrática e a dignidade da pessoa humana.

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  • Soraia Mendes

    Soraia Mendes é jurista, doutora em Direito, Estado e Constituição com pós-doutorado em Teorias Jurídicas Contemporâneas...

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