As mulheres indígenas entrevistadas para esta matéria analisam que o termo “genocídio” foi retirado do relatório da CPI da Covid-19 por questões políticas colonialistas que pretendem manter os privilégios da branquitude.

A população indígena morreu proporcionalmente mais em relação às populações não-indígenas em quase todos os grupos etários, durante a pandemia da Covid-19. Crianças indígenas, por exemplo, apresentaram mortalidade até sete vezes maior do que as não-indígenas. Essa realidade* apresentada no Relatório Final de CPI da Covid-19 é reveladora do que a sociedade civil organizada tem apontado como genocídio. 

Até 14 de dezembro foram registrados 62.310 casos de Covid-19, em 162 povos, com 1.241 óbitos entre indígenas, conforme o boletim epidemiológico (14/12) da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Por todo o Brasil essa população ainda está morrendo, projeto que continua o seu curso.

Diante do cenário desolador causado pelas políticas genocidas ao cotidiano dos Povos Originários desde o início da pandemia de Covid-19, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a Clínica de Direitos Fundamentais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e seis partidos políticos levaram, ainda em 2020, a questão ao Supremo Tribunal Federal (STF). Por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709, o objeto foi assegurar medidas efetivas de proteção aos indígenas como as barreiras sanitárias, pois o governo federal não havia desenvolvido ações para a segurança dos povos originários.

Durante a CPI da Covid-19, instaurada somente em abril de 2021, um dossiê com informações sobre a pandemia entre os Povos Indígenas foi entregue pela Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (Famddi), pela coordenadora da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas, deputada Joenia Wapichana (REDE-RR), entre outras organizações, ao senador Omar Aziz (PSD/AM), presidente da CPI da Covid-19.

Clique aqui e assista ao vídeo da votação do Relatório Final da CPI da Covid-19.

Apesar das discussões, os crimes de homicídio qualificado e genocídio contra populações indígenas foram removidos da versão final do relatório, pois parlamentares justificaram que não haveriam provas que sustentassem as acusações. A ação revela a incapacidade do Estado em considerar as temáticas indígenas e as reivindicações dos Povos Originários, desconsiderando a continuidade de suas culturas.

“O papel escrito pelos colonizadores sempre justificou (e foi o causador de) nosso extermínio ao longo desta guerra de mais de 500 anos. A palavra deveria ser dita, escrita a partir de uma realidade. E mais uma vez, lavam as mãos no sangue dos povos indígenas para justificar o extermínio em curso. Isso é apagamento e matam mais uma vez os que encantaram (morreram) vítimas desta pandemia deles”, analisa a conselheira editorial do Portal Catarinas, Pietra Dolamita Kowawá Kapukaya Apurinã. 

Pietra Dolamita Kowawá Kapukaya Apurinã

Para a antropóloga, essa é mais uma demonstração da histórica injustiça contra os Povos Originários.

“Juridicamente estes demônios não poderão ser responsabilizados, embora o dolo exista. No entanto, mais uma vez, a escrita está sendo feita pelos vencedores, no caso, grupos que entraram na história como cúmplices do governo genocida. Não é a primeira vez que a sociedade envolvente, ou seja, colonialista, mascara suas ações contra os Povos Indígenas. Um dia espero que eles (políticos) estejam também em ‘maus lençóis’, pois já fazem isso desde que chegaram com seus piolhos e ratos”, relata Pietra.

Leia a Série Filhas da Terra: mulheres indígenas em luta contra a pandemia Covid-19.

Médicas indígenas analisam o cenário político que concluiu o relatório

A médica Yara Karipuna de Oiapoque, Região Norte do Amazonas, que atuou na emergência do hospital como linha de frente para combater a Covid-19, lembra com desconfiança as últimas eleições e comenta que a intenção do governo sempre foi explícita em relação à retirada de direitos. “Nós povos indígenas, desde a época das eleições tínhamos receio desse governo pois éramos sabedores da opinião do presidente quanto aos povos indígenas, terras indígenas e populações vulneráveis”.

Para a Karipuna, o governo federal tinha conhecimento sobre a histórica vulnerabilidade dos povos e sobre o impacto da entrada do vírus nas áreas indígenas, pois as doenças respiratórias ainda são a maior causa de morte de indígenas em todas as regiões do Brasil.

Yara Karipuna

“Um vírus com tropismo (mudança de orientação determinada por estímulos externos) pelas vias respiratórias poderia ser um massacre para nós, tenho certeza que o governo tinha conhecimento de tudo isso”, denuncia Yara, médica indígena.

Segundo a entrevista, o dossiê entregue pela deputada Joenia Wapichana (REDE-RR), ao presidente da comissão, Omar Aziz (PSD/AM), apresenta comprovações da negligência do governo aos Povos Indígenas e o genocídio praticado na atualidade. “A retirada (do termo genocídio) do relatório da CPI da pandemia é mais um desrespeito, é mais uma prova que continuamos sendo ignorados pelo governo que mais uma vez se omitiu em admitir ou investigar o genocídio indígena”, analisa.

Na análise da também médica, Miriam Guarani Nhandewa, do Vale do Ribeira (SP), profissional da linha de frente no combate a Covid-19, o não há porque haver controvérsias sobre o sentido  da palavra “genocídio”. “Eu entendo por genocídio qualquer ato que venha a ser praticado com a intenção de destruir, em todo ou em parte, um grupo nacional étnico ou religioso. Então, o que a gente vem sofrendo, o que o meu povo indígena vem sofrendo desde o começo, sim, é um genocídio”, afirma a indígena.

Nhandewa enfatiza que a negligência na demarcação de terras indígenas é parte central no projeto de genocídio por responder a uma lógica de exploração e espoliação dos povos. “Dizem que o  o indígena só sabe falar sobre demarcação de terra. Mas a demarcação de terra para nós gira em torno de todos os nossos problemas. Porque nós, perdendo essas demarcações de terras, automaticamente a gente vai ter a destruição daquele povo, vai ter a perda da sua língua, o impedimento de nascimentos e crescimento desse grupo. E isso vai gerar um genocídio”, explica.

Compreende-se, nesse contexto, que as leis de mercado em relação à terra e aos bens materiais que ela pode proporcionar para a sociedade ocidental faz com que não exista uma ética universal na distribuição da terra. O espaço está dominado pelos valores do uso privado no capitalismo global, ocasionando a violência latifundiária, entre outras vulnerabilidades.

Miriam Guarani Nhandewa

“Quando o branco solicita, quando ele quer aquela terra é porque ele já está de olho no que ela pode produzir economicamente, no que ela vai trazer de benefícios e lucros para ele. O indígena não tem essa visão. Ele vê aquela terra simplesmente como um lugar para morar, para resgatar, para preservar tudo que nós temos. Sabemos que todo o ecossistema gira em torno disso. Uma vez que é tudo destruído a gente começa a ter várias consequências como a perda do nosso povo. Estamos perdendo os nossos anciões”, lamenta Miriam.

O dossiê entregue pela deputada indígena Joênia Wapichana (REDE-RR)

Em abril de 2021, a partir do encontro intitulado “Violações dos direitos indígenas e genocídio no Amazonas” lideranças indígenas, advogados indígenas, representantes de organizações indigenistas e de direitos humanos, parlamentares e juristas formularam um dossiê com informações sobre o impacto da pandemia nas vidas dos Povos Indígenas.

Entrega do relatório das organizações indígenas pela deputada/ Crédito: Cassandra Castro da Cenarium

O documento cita casos específicos como a morte, o adoecimento e a distribuição de cloroquina entre o Povo Indígena Yanomami, as Invasões sistemáticas de garimpeiros em suas terras; sobre o Povo Indígena Juma; o último ancião Aruká; sobre os as ameaças aos indígenas autônomos, livres ou isolados em todo Vale do Javari; o negacionismo de missionários que provocam recusa de indígenas à vacinação; a exclusão e descaso do governo federal com indígenas residentes em áreas urbanas e terras indígenas não demarcadas, ocasionando centenas de mortes; e a mortalidade em série de indígenas Kokama pela Covid-19.

De acordo com o documento da Frente Amazônica de Mobilização (FAMDDI) há dados que “comprovam o extermínio dos Povos Indígenas pelo Governo Federal, que utiliza o coronavírus como instrumento de sua política pública de morte” (FAMDDI, 2021, p.8). Leia o documento, clique aqui.

Povos Indígenas no Relatório Final de CPI da Covid-19

O Relatório Final da CPI da Covid-19 possui um capítulo dedicado aos Povos Indígenas (Capítulo 7), subdividido em seis sessões: o impacto da pandemia sobre os Povos Indígenas; definição legal de genocídio e de crimes contra a humanidade; a perseguição aos indígenas antes da pandemia; fatores de risco e indícios de atos preparatórios para crimes de atrocidade contra os Povos Indígenas; atos que caracterizam crimes contra Povos Indígenas no contexto da pandemia de COVID-19 e conclusões relativas ao impacto da pandemia sobre os Povos Indígenas.

O documento cita a pesquisa elaborada pelo Grupo de Trabalho sobre Vulnerabilidade Sociodemográfica e Epidemiológica dos Povos Indígenas no Brasil à Pandemia de Covid-19, publicado em 5 de maio de 2020, pelo Núcleo de Métodos Analíticos para Vigilância Epidemiológica do PROCC/Fiocruz e de EMAp/FGV, que aponta as vulnerabilidades em que vivem os Povos Indígenas na atualidade.

O gráfico abaixo registrado que integra o relatório revela que “os indígenas morrem proporcionalmente mais em todos os grupos etários, com exceção do correspondente à faixa entre 30 a 39 anos. Crianças indígenas, por exemplo, apresentavam mortalidade até sete vezes maior do que as não-indígenas” (Relatório CPI COVID-19, 2021, p. 532).

Crédito: Relatório CPI Covid-19, 2021, p. 532.

Entre os documentos citados estão as denúncias feitas à Comissão pela Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas e os relatos da Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O relatório final da CPI da Covid-19 apontou que o plano de contingência apresentado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) foi criticado por ser genérico, não ser transparente em seus objetivos e ações, pois “até hoje as ações do governo são avaliadas pela Justiça brasileira como incompletas ou insuficientes” (Relatório CPI COVID-19, 2021, p. 535).

O documento relata a colonialidade nas relações implementadas pela hierarquia de Estado em relação aos Povos Indígenas, reconhecendo que “submeter a sociedade a modelos culturais, raciais e religiosos de matriz europeia, integrando marginal e subalternamente todos que não se encaixem nesses padrões, é típico do colonialismo ou do totalitarismo” (Relatório CPI COVID-19, 2021, p. 544).

Segundo o relatório, “é lamentável que o totalitarismo ideológico, cultural e racial de então siga vivo, indevidamente enrolado na bandeira brasileira” (Relatório CPI COVID-19, 2021, p. 547).

A CPI denunciou o desmantelamento da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), registrando a incapacidade de seus gestores, já que a “Fundação Nacional do Índio (FUNAI), principal órgão indigenista do Brasil, foi entregue a gestores que não têm contribuído para evitar violações aos direitos dos povos originários – ao contrário, movem ações contra indígenas que criticam sua gestão, acusando-os de difamar o país. No lugar de técnicos experimentados, militares e religiosos assumem cargos importantes na Funai” (Relatório CPI COVID-19, 2021, p. 554).

A justificativa da retirada da palavra “genocídio”

De acordo com o dicionário Oxford Languages o significado do termo “genocídio”, substantivo masculino, é o “extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso” e, por extensão, a “destruição de populações ou povos”.

O relatório justifica que “nem todo massacre, morticínio ou assassinato em massa pode ser descrito como genocídio, ou como crime contra a humanidade. O tema é sensível e, com discernimento e cautela, devemos avaliar os fatos à luz da lei e chamar cada um à devida responsabilidade” (Relatório CPI COVID-19, 2021, p. 538).

Para os membros da CPI, “a definição de genocídio certamente é defensável, mas o caráter sistemático com que o anti-indigenismo se manifesta nas políticas e atitudes que expuseram os indígenas ao vírus e à violência amolda-se melhor à definição de crimes contra a humanidade, nas modalidades extermínio e, inegavelmente, perseguição” (Relatório CPI COVID-19, 2021, p. 541).

Relembramos aqui as viagens de membros do governo no início da pandemia como possíveis vetores na transmissão e contágio do vírus da Covid-19, adentrando em diversas Terras Indígenas como a justificativa de promoção da alimentação e saúde, como o caso de entrega de cestas básicas no Amazonas e em Santa Catarina, levando os indígenas para áreas de vulnerabilidade de contato.

“O que distingue a morte de centenas de indígenas da morte de centenas de milhares de outros dos nossos concidadãos é, fundamentalmente, a intenção de submeter esse grupo específico da população ao risco de contágio. Atitudes deliberadas do governo ajudaram a produzir esse efeito, como fica demonstrado a partir da análise de documentos entregues à CPI” (Relatório CPI COVID-19, 2021, p. 564).

Segundo o relatório final da CPI da Covid-19, “não há disfarce suficiente para encobrir a disposição confessa do Presidente da República de atingir os indígenas” (Relatório CPI COVID-19, 2021, p. 568). Apesar das informações e relatos citados no documento a palavra “genocídio” não foi considerada pela branquitude dos que prepararam suas alianças para as eleições de 2022 tendo como palco a vida de milhares de pessoas.

“As informações recebidas pela CPI sobre o impacto da pandemia nos povos indígenas, resumidas neste capítulo, são preocupantes. O impacto da covid-19 sobre os povos originários foi grave e desproporcional. Medidas mitigatórias de importância fulcral foram deliberadamente recusadas ou negligenciadas […] A assistência prestada foi insuficiente e descontínua” (Relatório CPI COVID-19, 2021, p. 591).

Na hierarquia da atual política de Estado fica evidente quando o culpado é apontado pelo relatório. “Fica a lição de que a responsabilidade pelos crimes contra a humanidade, como nas modalidades de extermínio e perseguição, ou mesmo genocídio, aumenta, e não diminui, quanto mais alta a hierarquia, pois quem detêm controle de todo o processo provoca mais mortes do que os seus subalternos” (Relatório CPI COVID-19, 2021, p. 601).

#BolsonadoGenocida. Clique aqui e assista ao vídeo da votação do Relatório Final da CPI da Covid-19.

Acompanhe o resultado da CPI e os crimes identificados

Em abril deste ano, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, determinou a instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 para investigar irregularidades nos serviços de atendimento à saúde. Ao final de seis meses foram apresentados mais de 20 crimes cometidos, com mais de 60 pessoas indiciadas de acordo com o relatório final.

Entre os indiciados estão profissionais da área da saúde como médicos, empresários, deputados federais e assessores, ministros e ex-ministros, além do atual presidente Jair Bolsonaro (Sem Partido), indiciado por nove crimes: charlatanismo, incitação ao crime, prevaricação, emprego irregular de verbas públicas, falsificação de documento particular, infração de medida sanitário preventiva, por causar epidemia com resultado de morte, além dos crimes de responsabilidade e contra a humanidade.

Contra o presidente, as suspeitas de crime comum foram encaminhadas à Procuradoria-Geral da República (PGR). Os crimes de responsabilidade foram para análise da Câmara dos Deputados (com possibilidade de abertura de processo de impeachment). As acusações de crimes contra a humanidade estão sendo enviadas ao Tribunal Penal Internacional (TPI), ao qual poderá sofrer processo.

Com relação à desinformação e a propagação de notícias falsas, as conclusões do Relatório Final da CPI da Covid-19 afirmam que a “veiculação de notícias falsas, as conhecidas fake news, contribuíram para que o objetivo negacionista fosse alcançado. Nesse ponto, a CPI apurou que não apenas houve omissão dos órgãos oficiais de comunicação, no combate aos boatos e à desinformação, como também existiu forte atuação da cúpula do governo, em especial do Presidente da República, no fomento à disseminação de fake news” (Relatório Final, CPI da COVID-19, 2021, p. 1166).

Segundo o Relatório Final da CPI da Covid-19 foram cometidos os crimes como homicídio, crime de perigo para a vida ou saúde de outrem, crime de epidemia, crime de infração de medida sanitária preventiva, omissão de notificação da doença, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documento particular, falsidade ideológica, uso de documento falso, emprego irregular de verbas ou rendas públicas, corrupção passiva e ativa, prevaricação, comunicação falsa de crime, fraude processual, crimes de responsabilidade, improbidade administrativa e lei anticorrupção, crime contra a humanidade (Relatório Final, CPI da COVID-19, 2021).

A escolha de Renan Calheiros (MDB-AL) como relator da CPI diz muito sobre o caráter da proposta. Durante a votação Relatório Final ele disse “que o trabalho das mulheres foi fundamental aos propósitos antes delineados nesta investigação, nesta comissão parlamentar de inquérito”, citando, entre outras parlamentares sua companheira de partido, a senadora Simone Tebet (MDB-MS). Observou-se que as construções de narrativas para as eleições do próximo ano fizeram parte do jogo político brasileiro na CPI. Clique aqui e acesse o relatório completo.

*Estudo da Fundação Oswaldo Cruz, em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca no Rio de Janeiro.

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    Jornalista feminista, antirracista e descolonial atua com foco nos olhares das mulheres indígenas. A cada dia se descobr...

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