Outro dia ouvi de uma amiga que compartilhar conhecimento é algo sagrado. Fiquei refletindo sobre isso por um tempo. Eu sou dessas pessoas que ficam ruminando as ideias, mastigando elas em um canto da boca. Começo então esse texto pensando em como articular algumas ideias que andam me rodando, aparentemente sem muita conexão, mas ao mesmo tempo, fazendo muito sentido para nosso momento atual, nosso aprendizado pandêmico, nosso compartilhar da existência. Esse compartilhar é o que nos move. Onde vamos chegar com isso? Não sei responder. Mas é no caminho que o caminho se faz.  

Sabemos que não são poucas as opressões que vivenciamos nesse tempo histórico, assim como também não foram poucas aquelas vivenciadas por quem veio antes de nós e trilhou caminhos possíveis para que a vida avançasse e que aqui a gente pudesse chegar. Que bom. Agradecida estou sempre. No entanto, parece que de fato é bastante incômodo para muitas pessoas fazer o exercício de pensar a raiz das opressões. Sim, estamos afoitos em apontar o racismo nosso de cada dia, o machismo cotidiano que nos mata, estamos todos cansados de nos submeter aos desmandos de situações vexatórias, que limitam nossos corpos, que nos colonizam a todo instante, que dita regras para nosso prazer, para nosso existir e para nosso sonhar.

Como disse a maravilhosa drag Rita Von Hunty, discutir e evidenciar as opressões pode ser muito importante e até alivia nosso ser desgastado, mas isso não vai resolver nada enquanto a gente não tiver a coragem de enfrentar aquilo que as origina e as organiza como opressão: o capitalismo como modelo.

Antes que os olhos de quem me lê agora se arregalem, eu já logo respondo: não tenho as respostas. 

No entanto, sei que existem várias saídas possíveis que, se combinadas, poderão dar certo. Não podemos negar que ainda vivemos em um modelo capitalista, mas eu quero acreditar que a pandemia nos ensinou algo muito valioso que ainda não caiu na ficha para muita gente, pois nos desapegar dos velhos padrões realmente é muito difícil. Talvez já exista entre nós a semente capaz de germinar a consciência de que, organizada como Estados Nação competitivos em si, fomentando a defesa de fronteiras, nós jamais evoluiremos enquanto sociedade. Ou vamos demorar bem mais nesses passos de evolução. 

Alguns dados recentes divulgados pela Oxfam em sua série intitulada “Nós e as desigualdades” mostram que alguma evolução aconteceu no Brasil nos últimos tempos, mas ainda estamos engatinhando. Quando paramos para refletir sobre as possibilidades de uma nova economia e os Direitos Humanos, alguns dados chamam atenção.

A mobilidade social está condicionada à redução das desigualdades. Sem isso não há progresso. A pesquisa aponta que 86% das pessoas entrevistadas acreditam que é importante reduzir a desigualdade de renda entre ricos e pobres e o Estado tem um papel fundamental nisso através de políticas públicas concretas.

Além disso, 56% das pessoas concordam em pagar mais impostos para financiar políticas sociais (como mais creches públicas e postos de saúde, amplo apoio à universalização dos serviços públicos).

Essa opinião é 25% a mais de pessoas do que no ano de 2019. Esse fato é relevante porque é a primeira vez que isso acontece desde o início desse monitoramento. Ocorre também a defesa de um sistema progressivo de tributação, ou seja, de taxar mais os ricos. A pesquisa apontou um aumento de 13% na opinião das pessoas que acreditam nisso em 2021 se comparada à opinião dada em 2017 (71%) e em 2020 (84%).

Outro dado relevante é que a percepção do que é a pobreza para alguns brasileiros parece ser algo equivocado. 52% das pessoas acreditam que a linha da pobreza está acima de uma renda de R$1.000 e que abaixo disso é onde mora a pobreza. Ou seja, uma renda entre 1 mil e 2 mil é ser pobre no Brasil. Mas o Banco Mundial indica uma renda de R$300 como o limite para a linha da pobreza.  

Rico? Eu não. 

No geral as pessoas mapeadas na pesquisa da Oxfam se acham pobres apesar de receberem até 5 salários mínimos quando a esmagadora maioria do povo brasileiro é miserável. 

A pesquisa mostrou uma relação interessante entre educação, fé e religião. Esses três pilares para os brasileiros atualmente parece ser pré-requisito para obter uma melhora de vida. Podemos perceber aqui a presença do discurso meritocrático muito propagado pela teologia da prosperidade das igrejas neopentecostais. Mas em anos anteriores da pesquisa, em 2017 e 2019, a fé religiosa era algo muito decisivo na melhora de vida. A educação não aparecia citada nas respostas dos entrevistados. Há esperanças, portanto. Hoje, na opinião das pessoas, depois de educação, fé e religião, temos a saúde como item de avanço na melhora da vida. 

Também é visível na pesquisa um avanço na percepção de que racismo institucional existe em mais de 75% da população entrevistada. Outro ponto importante a destacar é que 86% discordam que o papel da mulher é ficar em casa cuidando dos filhos. Ufa! 

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Foto: Cristina Souza.

Por outro lado, parece que ainda não caiu a ficha para a relação intrínseca entre as desigualdades sociais e o “papel da mulher”. Melhor dizendo, entre o empobrecimento econômico de um país e suas famílias com a divisão desigual do trabalho doméstico e com a escassez de tempo feminino.   

É aí onde a chave muda.. Ou deveria mudar 

Um debate recente realizado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a ONU Mulheres e a Fundação Friedrich Ebert (FES Brasil) apresentou um relatório interessante sobre como o papel das mulheres desempenhado com as atividades do cuidar – a elas atribuídas – é preponderante para a economia capitalista. O documento discute a dimensão de gênero no contexto da abordagem do Grande Impulso (ou Big Push) para a Sustentabilidade no país. 

Baseado em evidências, são oferecidos subsídios para a formulação de uma estratégia de recuperação econômica com igualdade e sustentabilidade, que promova, a partir de investimentos sustentáveis, oportunidades de emprego e renda para as mulheres, consideradas na sua diversidade, e de melhoria da disponibilidade e da qualidade de serviços de cuidado, liberando o tempo das mulheres e contribuindo para sua autonomia econômica.

 “A dimensão de gênero e Grande Impulso para a Sustentabilidade” (Big Push) – mudar o paradigma econômico da sustentabilidade.

Algumas representantes de ministérios da economia dos países latinos convidados para o debate ressaltaram que a recuperação econômica com sustentabilidade deve envolver a igualdade de gênero nas políticas públicas e na condução econômica dessas políticas.

Listo aqui alguns dos principais pontos debatidos:

1 – É importante subverter o entendimento de gerar emprego. Não se trata apenas de construção civil. Abrir empregos nos setores da indústria e do transporte para que as mulheres possam ocupá-los é fundamental. De acordo com os dados apresentados, 1 a cada 100 pessoas da construção civil é mulher. Ou seja, precisamos com urgência “feminilizar” os empregos desenvolvendo estratégias e capacitação para que mulheres possam ocupar espaços de tecnologia e empregos verdes;

2 – Energia Renovável: menos de 12% de mulheres ocupam empregos nessa área. Mulheres ocupam a maior parte dos empregos relacionados aos cuidados, o que reduz suas possibilidades;

3 – A escassez / pobreza de tempo feminino é apontado como a principal causa das desigualdades econômicas, pois enquanto as mulheres, que são as principais responsáveis pela geração de renda dos lares do Brasil e da América Latina, não tiverem tempo para investir em capacitação profissional, a mobilidade social de suas famílias não ocorrerá, perpetuando assim o quadro de desigualdades;

4 – Reduzir a jornada constante de trabalho doméstico feminino para que as mulheres tenham tempo para estudar e se capacitar. Lembrando que o acesso digital é precário para muitas mulheres de localidades afastadas;

5 – No plano de descarbonização de frotas urbanas para transporte público de muitos países na América Latina existe a falta de mão de obra e, na Costa Rica, as mulheres são minoria na condução de veículos de transporte público (4,5% são mulheres aptas para conduzir os veículos e 95% são homens). Maioria de empresas familiares;

6 – O trabalho do cuidado não remunerado tem, na América Latina, a cultura geral de que “Mulheres não fazem nada”. Mas sem elas, no entanto, não é possível produzir nas forças de trabalho para o sistema capitalista. Elas não só parem novos seres humanos, como também criam, alimentam, promovem a educação, e lidam com todo o sistema doméstico de cuidado familiar com crianças, idosos e serviços que um lar demanda. Mulheres são mais suscetíveis que os homens aos impactos climáticos, além de estarem mais tempo em deslocamento diário, portanto sob maior risco. O Estado se exime de suas obrigações para com as populações, deixando a cargo das mulheres todo o trabalho duro. Em Bogotá, 9 a cada 10 mulheres trabalham cerca de 30% a mais que os homens por dia (10 horas).

O mundo já não é mais o mesmo

Existe uma completa inação frente à crise climática no Brasil hoje.  Para existir uma retomada econômica é necessário haver uma nova consciência para colocar a política do cuidado no centro de todas as decisões daqui em diante. Recentemente a União Europeia apresentou um plano bastante ambicioso contra a poluição que inclui extinguir carros à gasolina até o ano de 2035. O projeto prevê, entre outros pontos, o aumento do uso de energias limpas —como solar e eólica—, estímulos para o uso de carros elétricos, taxar ainda mais aviões e navios. A implantação das medidas deverá custar 500 bilhões de euros (R$ 3 trilhões).

É preciso fazer uma completa transformação no estilo de desenvolvimento econômico e de fato TRANSFORMAR tudo que a gente conhecia até então como política pública emancipatória.

Não podemos mais voltar ao que éramos antes da pandemia. Ou seja, precisamos inverter a lógica adotada até hoje e promover uma recuperação de caráter novo. Não é uma crise do futuro.  O impacto já está aqui. A chave para a sustentabilidade econômica é promover empregos para as mulheres.

Esta é sem dúvida uma abordagem contemporânea de um tema que ganha cada vez mais relevância global nos governos, empresas e sociedade civil. A agenda ambiental, ao contrário do que muita gente pensa, é um tema geopolítico que pauta o desenvolvimento. Além de ser um tema contemporâneo e de ditar as bases para que novos arranjos e parcerias comerciais aconteçam ou não, essa é uma agenda que engloba um grande divisor de águas no mundo, assim como foi a era digital recente.

A igualdade entre homens e mulheres em direitos e deveres passa por essa mudança de mentalidade e de prática. Se outrora o combate à corrupção era uma prioridade para os brasileiros e hoje essa prioridade é emprego, saúde e combate ao racismo, já podemos perceber que a população é capaz de enxergar de modo diferente alguns aspectos sociais que não via antes, como mostrou a pesquisa da Oxfam. Sem dúvidas, boas lideranças e uma imprensa responsável que informa e conduz ao esclarecimento fazem a diferença. Um país afirmativo é um país que almeja um futuro a longo prazo.

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  • Aline Cristina Souza

    Natural do Norte de Minas Gerais, é jornalista e Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF)...

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