O Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) publicou, em 26 de julho, suas conclusões sobre a Revisão dos Direitos Civis e Políticos em oito países, entre eles o Brasil. No que diz respeito à interrupção voluntária da gravidez e direitos reprodutivos, o Comitê mostrou preocupação com a violação do acesso ao aborto legal no país e fez recomendações que vão desde de cumprir a legislação vigente até alterá-la para incluir casos de gravidez indesejada que submetam meninas e mulheres a “dor ou sofrimento substantivo”.

O Estado brasileiro tem prazo de três anos para informar o que tem feito para cumprir as recomendações. A publicação ocorreu durante a 138ª sessão do Comitê de DH, após as Revisões de Estado do Brasil, Burundi, Colômbia, Chipre, Lesoto, Somália, Estado da Palestina e Uganda.

Foram três recomendações ao Brasil, incluindo a reforma da legislação para “garantir acesso seguro, legal e efetivo ao aborto, inclusive em áreas rurais e remotas, nos casos em que a vida ou a saúde da mulher ou menina gestante esteja em risco, ou quando levar a gestação a termo possa causar à mulher ou menina gestante dor ou sofrimento substantivo, notavelmente quando a gestação for resultado de estupro ou incesto, ou quando for inviável”.

O Comitê recomendou ainda a revogação das “leis que impõem punições criminais às mulheres e meninas que se submetem a aborto legal e aos médicos que as assistem”. Além disso, que o país assegure “o acesso desimpedido aos serviços de saúde sexual e reprodutiva e à educação em saúde sexual e reprodutiva, inclusive com o objetivo de prevenir a gravidez indesejada e combater efetivamente a estigmatização de mulheres e meninas que recorrem ao aborto, nas zonas urbanas e, em particular, nas zonas rurais áreas”.

Tais recomendações seguem o parágrafo 8 do Comentário Geral 36 do Comitê que reconhece o poder dos Estados Parte de adotar medidas para regular a interrupção voluntária da gravidez, mas estabelece que essas medidas não podem resultar em violação do direito à vida ou de outros direitos da mulher ou da menina gestante, protegidos pelo Pacto de Direitos Civis e Políticos. 

“O Comitê está preocupado com relatos de que mulheres grávidas ou meninas que têm direito legal ao aborto nem sempre podem desfrutar de seu direito na prática, devido ao medo de processos judiciais, negação de acesso a hospitais e ambiente hostil, inclusive em áreas rurais, entre outros razões”, alertou o órgão, referindo-se ao direito ao aborto nos casos previstos (estupro, anencefalia fetal e risco de morte).

O acesso à interrupção voluntária da gravidez e aos direitos reprodutivos estão entre os mais de 20 temas com os quais o Comitê demonstrou preocupação. As recomendações são baseadas no monitoramento que as organizações da sociedade civil fazem com a função de fornecer aos comitês análise crítica e independente a respeito de como estão funcionando (ou não) as políticas públicas do Governo, quanto aos vários aspectos dos direitos previstos nos tratados de direitos humanos. 

Ipas, Anis – Instituto de Bioética, Grupo Curumim, Coletivo Margarida Alves e as internacionais Fòs Feminista e Center for Reproductive Rights foram responsáveis coletivamente pela apresentação de um dos chamados relatórios sombra, que alerta sobre as violações ao acesso ao aborto legal no país, incluindo os casos mais recentes de meninas estupradas que tiverem seus direitos negados ou retardados. 

Reformar a lei sobre aborto para garantir direitos

Para a advogada Beatriz Galli do Ipas, as recomendações vão ao encontro do que vem sendo pautado por essas organizações da sociedade civil, de que a criminalização da prática, prevista no Código Penal, não é adequada e por isso precisa ser modificada.

“Essas recomendações são muito importantes, vamos trabalhar para que o governo cumpra. Principalmente, neste ano em que esperamos uma decisão favorável do Supremo Tribunal Federal na ADPF 442 pela descriminalização do aborto até a décima segunda semana de gravidez. Quando o Comitê recomenda ao Brasil revogar as leis que impõem punições criminais às mulheres e meninas que se submetem a abortos, e aos médicos que as assistem, é nesse sentido de que essa lei atual de 1940 deve ser revogada”, afirma a advogada.

Mariana Prandini, do Coletivo Margarida Alves, avalia que a recomendação ao Estado brasileiro, embora limitada, representa um avanço, pois sugere a reforma da legislação no sentido de garantir o direito à interrupção da gravidez em caso de risco à vida e à saúde, ou quando levar a termo a gestação possa causar dor ou sofrimento.

“Ela é, portanto, muito avançada quando comparada à atual regulação brasileira, em que ao aborto está autorizado em situações excepcionalíssimas de risco à vida, estupro e feto anencefálico. A ampliação desse limitado leque de exceções à incidência da lei penal, para incluir também risco à saúde, tanto física quanto mental, sem dúvida contribui para assegurar o aborto legal a um número maior de pessoas, para quem a gestação implique um risco de dano à incolumidade física ou psíquica”, avalia Prandini. 

No entanto, a advogada pondera que a recomendação ainda é muito tímida por não reconhecer o direito autônomo à interrupção voluntária da gravidez. “Ao contrário, seguindo a orientação prevalente no campo do direito internacional dos direitos humanos, a recomendação identifica um direito à interrupção atrelado à violação de outros direitos, especificamente saúde e vida. Assim, não se reconhece a autonomia da pessoa gestante para decidir: ela é protegida apenas naquelas situações em que a gestação coloca o seu direito à vida ou à saúde em risco”, explica a advogada. 

“Em lugar de recomendar a descriminalização do aborto como medida de justiça, o Comitê segue reconhecendo o poder dos Estados Parte de criminalizar o aborto, exceto naqueles casos em que tal criminalização viola o direito à vida ou à saúde da pessoa gestante”, acrescenta. 

Entre os casos apontados pelas organizações como exemplos de negação do acesso aos direitos reprodutivos estão os das meninas de SC e do Piauí, os quais apontam falhas que têm como ponto de partida o não acesso à educação sexual. “A educação em saúde sexual e reprodutiva também é muito importante, por causa do aumento dos casos de violência sexual contra mulheres e meninas, principalmente aquelas que moram nas zonas mais remotas. São as meninas e mulheres negras e indígenas que correm mais risco e podem vir até a morrer de morte materna evitável”, afirmou Beatriz Galli sobre as desigualdades que permeiam as violações.

No relatório, as organizações pedem que o governo brasileiro modifique a sua legislação de acordo com as recomendações do guia da Organização Mundial de Saúde mais recente (2022), de maneira a incorporar as últimas evidências científicas, incluindo a possibilidade de realização do procedimento em qualquer idade gestacional. 

“O guia da OMS incorpora os estandares de direitos humanos dos órgãos de proteção desenvolvidos nas últimas décadas que são bastante avançados, inclusive chegando a recomendar a descriminalização do aborto, para que os Estados modifiquem as suas legislações e passem a não ter mais indicações legais de acordo com os prazos gestacionais. Sabemos que os abortos, às vezes, são necessários mesmo em estágios avançados da gestação, quando as mulheres podem recorrer aos procedimentos inseguros”, destaca a representante do Ipas.

O Comitê é um órgão técnico que supervisiona o cumprimento do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. O Comitê de Direitos Humanos faz parte desta estrutura do cumprimento concreto de direitos humanos. É um o órgão formado por 18 especialistas independentes, eleitos por um período de quatro anos pelos Estados Partes, e tem o papel de monitorar a implementação do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Os Estados Partes, do qual o Brasil faz parte, têm por obrigação apresentar relatórios periódicos ao Comitê sobre como esses direitos estão sendo implantados no país, normalmente a cada quatro anos, ou quando solicitado.

Entramos em contato com o Ministério das Mulheres, dos Direitos Humanos e da Cidadania e da Saúde, que responderam que iriam enviar posicionamentos, mas ainda não o fizeram.

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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