Por Fernanda Ely Borba*

Dedico este ensaio a todas as Marianas que já passaram por uma audiência judicial, com o desejo utópico de que a Mariana Ferrer seja a última mulher a sofrer violência institucional.

As inspirações vindas por meio das reflexões da Patricia Hill Collins em torno da expressão “outsider within” (“estrangeira de dentro”)[1], os meus doze anos como servidora do poder judiciário de Santa Catarina, a minha participação no movimento feminista e os desdobramentos do caso Mariana Ferrer instigaram-me a tecer algumas considerações sistematizadas por meio desse ensaio.

Penso que uma questão nevrálgica suscitada no caso Mariana Ferrer diz respeito à catalização de uma crescente inquietação, por parte da sociedade, acerca das práticas de preconceito e misoginia que insistem em se perpetuar nas instituições incumbidas de intervir perante as questões de gênero, e em especial de violência de gênero. À medida que a Lei Maria da Penha vem cumprindo o seu papel de transformar a cultura brasileira no sentido de erradicar os valores que sustentam a reiteração dos preconceitos, das discriminações, da misoginia e da violência de gênero, reduz-se a tolerância social face a tais atitudes, dentre elas as protagonizadas no âmbito das instituições.

Nesse panorama, pertinente salientar que independente do grau de escolarização das mulheres que vivenciam a experiência de um processo judicial que envolva questões de gênero, ou mesmo o fato de possuírem outra graduação que não Direito, elas têm condições de fazer a leitura das respostas institucionais que lhes afetam.

Ou seja, a intensa repercussão ocasionada pelo desenrolar dos acontecimentos envolvendo Mariana Ferrer revelou-se um divisor de águas, dado que expressa, de forma categórica, a reprovação social frente à reiteração de determinadas práticas desempenhadas pelos atores institucionais responsáveis por intervir perante situações de violência de gênero, e cobra a qualidade das respostas institucionais ante o fenômeno.

Embora não seja minha pretensão discutir sobre as implicações da expressão “estupro culposo”, considero imprescindível refletir sobre o significado da rápida popularização da terminologia pelos quatro cantos do Brasil como sintomática da necessidade de transformação nas práticas que envolvem o gênero, pelas instituições que compõem a esfera judicial.

Aparentemente, a disseminação da nomenclatura parece trazer à tona a responsabilidade que todos(as)(es) temos na construção de uma sociabilidade livre de violências, especialmente de gênero.

Muito particularmente, essa mobilização interpela a responsabilidade das “figuras de autoridade”[2] neste tocante. Afinal de contas, qual é a responsabilidade que cabe a um(a) juiz(a) de direito, promotor(a) de justiça, advogado(a) ou defensor(a) público(a) quando intervém em uma situação envolvendo questões de gênero, ou mesmo de violência de gênero? Aliado a isso, qual é a responsabilidade que poderes como o judiciário, o ministério público, a advocacia ou defensoria pública têm nesta seara?

Mais precisamente, é possível garantir o direito de defesa de uma pessoa acusada de violência sexual, e demais atos processuais, sem incidir em violência institucional contra a vítima? Qual o limite da defesa? Qual é o limite da instrução processual frente ao direito de preservação da integridade da vítima? Parece-me que são estas as questões que a sociedade tem clamado por respostas.

Faço um parêntese aqui para elucidar que não estou transcrevendo tais questões como forma de insubordinação, posto que sou uma servidora pública e sei qual é o meu lugar na hierarquia judicial, até porque estas indagações não são minhas, mas provenientes de uma leitura daquilo que é vocalizado pela sociedade. Há uma demanda crescente por parte da sociedade de democratização desse debate. Ainda, ao indagar a responsabilidade das “figuras de autoridade”, não me furto de estendê-la a outras figuras (perdoe-me a redundância, mas ela é proposital) que participam das intervenções em questões de gênero, dentre elas profissionais do Serviço Social, afinal de contas sou uma assistente social. Porém, parece-me que a interpelação da sociedade é destinada de forma mais incisiva às autoridades.

Retomando, talvez a concentração de esforços no pedido de retificação da expressão acima mencionada, aliada aos pleitos de indenização, possam desviar o foco para a oportunidade de uma necessária reparação face aos preconceitos, discriminações e mesmo violências que são reproduzidas ao largo das instituições. A esse respeito, importante ponderar que, talvez, as práticas que assistimos na audiência da Mariana Ferrer não possam ser pessoalizadas, mas vistas como fruto de um histórico despreparo que se perpetua nessas instituições (posso estar equivocada e sou receptiva a críticas). Isso significa que esse é um importante mecanismo de reprodução de tais atos, posto que Mariana Ferrer não é a primeira, e possivelmente não será a última a se deparar com tal situação.

Uma das memórias mais dolorosas que tenho nos meus doze anos de trabalho no judiciário refere-se a uma ocasião em que acompanhei uma vítima de violência sexual numa audiência judicial, e naquele momento experimentei a sensação de um “estupro do Estado”.

Perdoem-me o peso da expressão, mas foi exatamente ela que veio a minha mente, naquele momento, para traduzir da maneira mais fidedigna possível a sensação experimentada. Recordo-me ainda de ter experimentado um enorme sentimento de impotência, porque não há espaço para a contribuição, para a mudança. Depois dessa, testemunhei outras experiências semelhantes, que me remeteram à mesma sensação. Por outro lado, pondero que também conheci e acompanhei experiências bastante qualificadas, e que tiveram respostas bastante satisfatórias para as vítimas.

Envolvimento e formação

Uma equação bastante simples pode catalisar as transformações que levem a um processo de reparação mais profunda, e convergem na sinergia de duas categorias mobilizadoras: envolvimento e formação. Envolvimento no sentido de incluir-se como sujeito ativo no processo de transformação, respondendo cotidianamente à questão anteriormente evocada, ou seja, “qual é a responsabilidade que cabe a mim quando intervenho perante uma situação envolvendo questões de gênero, ou mesmo de violência de gênero?”. Essa categoria remete ao sentido ético que é mobilizado em toda e qualquer relação humana, e que compõe os códigos de ética profissional de modo geral. Ainda, essa categoria dialoga com o sentido de afeto, de afetação, de afetar-se com o(a) outro(a). O envolvimento como categoria ética precisa ser incorporado de forma transversal pelas instituições que perfazem a esfera judicial (e todas as outras). Objetivamente, precisa ser vivenciado desde o(a) profissional que está na recepção da instituição até a mais alta autoridade que julgará o processo judicial.

Para ser concretizado, o envolvimento como categoria ética prescinde da formação. Categoria não menos importante que a primeira, antes de tratarmos dela, é preciso esclarecer que já existe uma política de formação continuada nos diversos órgãos que compõem a esfera judicial. Todavia, ao menos no que diz respeito à temática do gênero, precisa ser aperfeiçoada.

A primeira prerrogativa para proporcionar um processo de formação de gênero com qualidade refere-se à incorporação da temática na política institucional de formação já existente, para viabilizar as condições necessárias para que esta formação se efetive, e alcance a todos os públicos-alvo que precisa destinar-se. A formação precisa atingir, indistintamente, a todas as figuras que vão intervir nas questões de gênero, desde quem recepciona a pessoa até a figura de autoridade do mais alto grau de escalão. Outra ressalva que se coloca aqui diz respeito à necessidade de a política de formação abranger outras varas, promotorias, comissões, núcleos, entre outros, para além dos diretamente envolvidos na temática de gênero. Ou seja, questões de gênero vão surgir em processos judiciais de competência cível ou fiscal, por exemplo. 

Da mesma forma que precisa ser oferecida a todos os públicos, estes, por sua vez, também precisam engajar-se nos processos de formação. Aqui também cabe perguntar-se “qual é a responsabilidade que cabe a mim quando intervenho perante uma situação envolvendo questões de gênero, ou mesmo de violência de gênero?”, cuja resposta é “engajar-se no processo de formação”. Caso nenhum dos argumentos ora exposto o(a) convença a engajar-se no processo de formação, pense que a questão de gênero atravessa a vida de todos os seres humanos, inclusive você, haja vista que você nasceu de uma mulher e relaciona-se com mulheres na sua família ou fora dela. Aliado a isso, instigue a curiosidade intelectual, pois aprender mais sempre é enriquecedor.

Logicamente, para este processo de formação em gênero efetivar-se, ele precisa ser sistemático, transversal ao longo da instituição, e promover o diálogo interinstitucional, afinal de contas as instituições da esfera judicial trabalham em conjunto. É recomendável incorporar e dialogar com outros segmentos que trabalham com a questão de gênero, desde as universidades, os movimentos sociais, outras políticas públicas, dentre outros. Acima de tudo, dentro do possível, é fundamental criar um canal de diálogo com as mulheres que são atendidas.

Para além das questões operacionais da política de formação em gênero, aponto duas questões como cruciais para planejar e implementar processos e metodologias de formação em gênero: a interdisciplinaridade e a interseccionalidade. As questões de gênero, de modo geral, e em particular as violências, são complexas, multifacetadas e discutidas por várias áreas do conhecimento. Isso significa que a formação em gênero precisa, indiscutivelmente, ser abordada de forma interdisciplinar[3]. Dialogar com as diversas áreas de conhecimento qualifica o aprendizado e as respostas que podem ser apresentadas perante as situações que envolvem o gênero. Relacionada à primeira, a interseccionalidade[4] implica na abordagem das questões de gênero articuladas às dimensões de classe social, raça, etnia, nacionalidade, território, religião, dentre outros marcadores, posto que as questões de gênero não são descoladas das demais dimensões da vida social e, além disso, especialmente as violências e desigualdades atingem de forma desigual os diversos segmentos sociais.

Em se tratando da sinergia entre o envolvimento e a formação para contribuir na qualificação das respostas institucionais em processos judiciais afetos a questões de gênero, considero que é preciso questionar a lógica da celeridade processual. Em matéria de questões complexas e multidimensionais como o gênero, a celeridade quantitativa – a exemplo do cumprimento de metas – pode ser perigosa, dado que os mesmos equívocos podem ser repetidos inúmeras vezes ao longo de uma lógica de tramitação processual nos moldes da produção em série. Nessa temática requer-se um conceito de celeridade qualitativa. Ou seja, a apresentação de respostas institucionais ancoradas num processo que articule a realização do trabalho à formação sistemática e à reavaliação de práticas, metodologias e procedimentos, voltadas a um processo contínuo de melhoria dessas respostas, privilegiando-se a perspectiva da população usuária.

Nesse sentido, o processo de trabalho pautado na celeridade qualitativa articula o desenvolvimento do trabalho em si à formação continuada e à pesquisa como ferramenta indispensável para propor alterações pertinentes, qualificar práticas, procedimentos e respostas, e agilizar a sistematização e a circulação de conhecimentos, saberes e de boas práticas em torno das questões de gênero. Até o momento, embora existam algumas iniciativas que incorporem a pesquisa em algumas instituições da esfera judicial, ela ainda é vista como deslocada do processo de desenvolvimento do trabalho, e como mero acessório. Perde-se assim o potencial da pesquisa para qualificar tanto as respostas institucionais quanto as próprias políticas.

Sem a pretensão de esgotar a discussão ora entabulada, pela complexidade que as questões e as respostas institucionais implicadas impõem-se, espero trazer algumas pistas para contribuir na qualificação das respostas institucionais, em se tratando de questões de gênero, por parte das instituições da esfera judicial.

* É feminista. Integra o Valente, coletivo de mulheres do judiciário catarinense. Cursa doutorado no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC, na área de concentração Estudos de Gênero. É assistente social do poder judiciário de Santa Catarina.


[1] COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado. V. 31, n. 1. Brasília: abr.  2016, pp. 99-127. Acesso em 14/12/2020 em [https://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00099.pdf].

[2] Recorro a essa terminologia porque creio abranger de forma sintética as autoridades que participam de atos como uma audiência judicial, por exemplo.

[3] RAYNAUT, Claude. Os desafios contemporâneos da produção do conhecimento: o apelo para interdisciplinaridade. Revista INTERthesis. V.11, N.1. Florianópolis: Jan./Jun. 2014, pp. 1-22. Acesso em 14/12/2020 em [https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/view/1807-1384.2014v11n1p1/26883]

[4] COLLINS, Patricia Hill. Se perdeu da tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Paragrafo, V. 5, n. 1, Janeiro/junho 2017, pp 6-17. Acesso em 14/12/2020 em [http://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/559/506]

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