Andar carregando instrumentos musicais característicos do samba poderia levar à prisão por vadiagem em meados dos anos 1920 no Brasil. Um pouco antes da virada deste século, foi a vez do funk ser alvo de um processo de criminalização que segue até hoje. A história mostra que a perseguição a esses movimentos está relacionada ao perfil de artistas e público que mobiliza tais espaços: predominantemente negras/os e pobres. Não por coincidência, foi somente quando o samba caiu no gosto da branquitude que o gênero passou a ser aceito socialmente. É com base nesse contexto histórico de repressão aos movimentos culturais afro-brasileiros, que a Batalha das Mina, integrada por mulheres rappers, principalmente negras, denuncia a ação da Polícia Militar de Santa Catarina, na primeira sexta-feira deste mês (6), enquanto se apresentavam no centro de Florianópolis.  

Passava das 21h quando o encontro de rappers foi interrompido por policiais que alegaram terem sido acionados por moradores. Coerentes ao movimento de resistência o qual representam, as rappers e o público não aceitaram a determinação. Em resposta, a polícia lançou gás de pimenta, disparou uma bala de borracha e usou cassetete contra duas integrantes. Mesmo que as mina e o público tenham tentado impedir a apreensão, a caixa de som foi levada como prova do crime de perturbação do sossego.

As integrantes afirmam terem sofrido discriminação racial pela PM, já que outras caixas de som de bares da avenida continuaram em funcionamento, mesmo após a repressão. “O que eles fizeram foi racismo porque tinha som (caixa de som) em outros lugares, e alegaram que a nossa caixa, a nossa atividade, é que estava perturbando o sossego alheio. Pedi para que se apresentassem, porque trabalham para o Estado, em nenhum momento se identificaram ou apresentaram o B.O. Quando começamos a incitar a plateia para permanecer no local, eles ficaram nervosos e jogaram spray de pimenta na gente, bateram com o cassetete numa colega e atiraram contra outra, que levou um tiro (de borracha) de raspão nas costas. Um menino tentou segurar a caixa, o policial segurou do outro lado, eles mediram forças e jogaram a caixa no meio da rua. Em nenhum momento a gente respondeu à violência que eles estavam fazendo”, afirmou a MC Berra.

Foto: Karol Braga

“É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, garante o IX parágrafo do artigo 5º da Constituição Federal. Recorrendo à garantia expressa na carta magna que as mina da Batalha questionaram a ação da PM. 

A reivindicação foi recebida com chacota pela polícia, como nos contou a MC Ribeiro. “Tivemos alterações de tom de voz, em nenhum momento foi ofensa, a gente usou o artigo 5º da Constituição para dar legitimidade ao que estávamos fazendo, e se amparando no Estatuto de Igualdade Racial que garante que atividades de livre expressão afro-brasileiras aconteçam em vias públicas. Eles não tinham argumentos e na maior parte das vezes ficavam zombando por falarmos da inconstitucionalidade da ação deles”, relata a MC.

Por outro lado, o comandante do 4º Batalhão da Polícia Militar, major André Serafim, afirma que os policiais usaram gás de pimenta e bala de borracha frente à resistência do grupo em interromper a atividade. Segundo ele, a ação específica se deve à falta de autorização legal do movimento para realizar a atividade. “Existe sindicância em andamento, os policiais estavam portando câmeras, nas imagens aparece perfeitamente a prática do crime de desobediência, não bastasse a perturbação do sossego. A tropa estava sob comando de um policial, o tenente Gustavo, o qual se desloca até elas e pede para que desliguem o volume do som, haja vista que já passava das 23h, era uma via pública, onde nas proximidades moram mais ou menos 400 pessoas”.

Quem participou da Batalha na semana seguinte à ação, na sexta-feira (13), pôde perceber que o som das mina era o mais baixo entre os que movimentavam a avenida. Viaturas rondavam o local e paravam em alguns pontos, porém não houve repressão. Questionado sobre o motivo da polícia não ter agido dessa vez, o tenente-coronel do 4º Batalhão de Polícia Militar, Dhiogo Cidral de Lima, informou não ter havido registro de ocorrência de perturbação do sossego.

O chamado às/aos movimentos sociais para dar corpo ao encontro do dia 13 pode ter freado a ação policial, pois havia mais público na praça, como acredita uma das MCs.

“Na verdade, eu imaginava que eles não fossem agir de forma truculenta por conta da presença de advogadas que estavam lá. Também acho que as faixas que estavam estendidas da OAB e do 8M também ajudaram a conter”, afirma MC Berra.

Para a advogada Flávia Helena de Lima, ativista do movimento negro, não resta dúvidas de que o muro de institucionalidade e de branquitude tranquilizou a guarnição. “Eles ficaram intimidados, aguardando. Talvez se houvesse uma situação mais problemática, no entendimento deles, eles fizessem alguma intervenção. Mas da maneira como ocorreu não tinha como justificar. Por conta disso preferiram evitar o conflito, porque não se sabe o que vai acontecer daqui pra frente em relação às medidas que estamos tomando”. 

A batalha social e institucional 

Duas reuniões entre integrantes da Batalha e de outros movimentos sociais foram mobilizadas para discutir a repressão; uma na Câmara Municipal, no dia 9 de dezembro, chamada pelo gabinete do vereador Lino Peres (PT), e a outra, em 11, ocorreu na Ordem dos Advogadas (OAB/SC), articulada pela Comissão dos Direitos Humanos, Comissão da Mulher Advogada, Comissão da Igualdade Racial e Comissão do Direito Homoafetivo e Gênero.

Na última quinta-feira (19), em conjunto com integrantes das comissões, o presidente da OAB, Rafael Horn, decidiu que fará um convite ao Comandante Geral da PM e Secretário de Segurança Pública do Estado, Araújo Gomes, e o Secretário de Segurança Pública de Florianópolis, Alceu de Oliveira Pinto, para uma reunião com os movimentos sociais. O encontro só deve ocorrer em janeiro, devido ao período de recesso. 

“A reunião foi altamente positiva, mais uma vez a OAB demonstrou que é guardiã da nossa Constituição Federal. Além desta reunião dos chefes de polícia com o movimento social, intermediada pelas comissões correlatas da OAB, levamos à presidência um projeto da criação de um Observatório de Direitos Fundamentais. O referido possuirá um canal de denúncias, no qual o cidadão apresentará sua queixa ao direito violado, e as comissões temáticas fornecerão as respostas e orientações necessárias para que os fatos sejam apurados”, explicou Margareth Hernandes da Comissão do Direito Homoafetivo e Gênero. 

Foto: Karol Braga
Três anos de batalha pelo direito à voz

As minas estão há três anos marcando presença nas ruas de Florianópolis. São vozes femininas que se encontram semanalmente a denunciar a naturalização das injustiças sociais, do racismo, machismo e LGBTIfobia. Com uma poesia contemporânea, marginal e preta, microfonam o papo reto, dissonantes de quem percebe as desigualdades como parte da paisagem urbana. 

Como já publicado anteriormente, o movimento surgiu depois que cinco minas ouviram um discurso machista em forma de rima na batalha da Alfândega, que também acontece no centro da cidade. Ali, perceberam que já tinha passado da hora de terem um espaço só delas. As batalhas são de conhecimento. Elas abordam temas escolhidos pelo público e as MC’s têm cerca de 30 segundos para desenvolver seus pensamentos em forma de rima. Os temas tratados dizem respeito à realidade feminina – maternidade,  feminismo e representatividade. 

A rapper Berra explica como se organizam: “a Batalha das Mina não tem organização centralizada numa pessoa. É um coletivo, movimento de rua e se organiza organicamente, todas as pessoas que estão presentes são parte da organização”. 

Nesses três anos, foi preciso muito gogó não só para o “mic”, mas também para negociar com os policiais, sempre presentes na tentativa de antecipar o final da Batalha. Essa trajetória foi marcada por pelo menos três mudanças de endereço e ajustes no horário para conciliar com a polícia, que argumentava estarem em área residencial, o que inevitavelmente levaria ao crime de perturbação do sossego. Há seis meses o grupo de jovens ocupava a avenida Hercílio Luz durante à noite, quando o confronto ocorreu.

Foto: Karol Braga
Denúncia que motivou a repressão partiu de proprietário de bar 

Conforme explica o major, a denúncia partiu de um proprietário de bar para se preservar legalmente diante do Termo de Ajuste de Conduta (TAC) que determina o horário de funcionamento de bares, firmado entre estabelecimentos das ruas centrais, Prefeitura, Polícia Militar e Ministério Público de SC. “Houve um telefonema, inclusive de proprietário dos bares, informando que o som estava alto naquele local, não era proveniente dos bares até para se salvaguardar de alguma ação judicial futura em razão do TAC. A caixa de som estava extremamente alta, para ter caixa de som nesse horário precisa ter alvará, e elas não tinham nada’”.

Tanto a polícia quanto as integrantes do movimento social afirmam terem registrado em vídeo fatos que comprovam suas versões.

“O hip hop é um movimento que preza por liberdade de expressão e paz. Eles falarem que os recebemos com garrafadas é uma difamação, ninguém tá ali para violentar ninguém. Em nenhum momento ninguém jogou nada na direção deles”, defende a MC Berra.

Segundo o comandante, mesmo que as mina tivessem alvará e autorizações legais, ainda assim poderiam ser implicadas na prática de contravenção penal de perturbação do sossego. “A regra da perturbação do sossego é clara: não existe horário para caracterizar perturbação. Nesse horário é permitido 55 decibéis, a partir das 10h da noite são 44 decibéis. Existe o aparelho decibelímetro que faz a medição. Essa é a primeira verdade a ser dita: pode ter todas as autorizações e ainda assim ser implicado na prática de cometimento de contravenção penal de perturbação do sossego”. 

Se a regra é clara, as rappers querem escurecê-la*: por que somente a caixa de som deste movimento foi retirada? “O que estava acontecendo era uma atividade poética, então uma pessoa no microfone falando poesia não pode ser o barulho da reclamação de perturbação do sossego sendo que estavam fazendo uma festa de aniversário do outro lado”, relatou a MC Berra. 

A artista defende a legitimidade política da Batalha das Minas. “Como somos movimento de rua, a gente não se ampara em alvará legal, a gente é uma manifestação cultural que não precisa de alvará para acontecer. Ela simplesmente tem permissividade legal para acontecer por ser manifestação cultural, está no Estatuto de Igualdade Racial, e no artigo 5º da Constituição”. 

Foto: Karol Braga
A batalha microfonada

“O tenente Gustavo, que diga-se de passagem é um cavalheiro, quando ele começou a falar já foi hostilizado ‘seu machista’, e iniciaram diversas ofensas, palavras em desconexão com a realidade, como ‘por que não têm policiais negros aqui, por que só agem contra os negros?’ Isso é uma vitimização de uma situação que é pontual, a perturbação do sossego, que gerou aquela ocorrência”, argumentou o policial Serafim. 

A crítica à estrutura masculinista e racista da instituição é parte dos temas abordados na Batalha. O protesto à essa relação de poder foi potencializado neste dia e o confronto levado ao microfone. “Disseram ‘ou vocês diminuem o som da caixa ou desligam’. A MC que estava apresentando a batalha na hora começou a dialogar com o mic para que as pessoas entendessem o diálogo que estava acontecendo. Nesse momento, subiram no nosso tapete, […] isso era 10h30. […] era a nossa voz contra a bala de borracha e gás de spray de pimenta”, relatou Berra. 

“Esse fato de sermos mulheres questionando a autoridade deles enquanto homens da lei, eles ficaram enfurecidos e jogaram spray de pimenta em geral. Não tinha porque dispararem bala de borracha e agredir com cassetete, foi completamente desmedida a agressão deles”, completou a MC.

O contexto de discriminação

Para a advogada Flávia Helena, a ação tem conotação racial e não está descolada de um contexto de intervenções contra essa população. “Essa situação é recorrente em vários contextos, não só dessa atividade cultural de rua, mas também em relação aos terreiros, ou seja, temos repressão policial em terreiros de religião de matriz africana com esse argumento de perturbação do sossego, coisa que não ocorre nas outras igrejas. Estamos precisando de uma mudança de entendimento do que de fato são as manifestações culturais afro-brasileiras, porque não estão respeitadas como as outras”, colocou. 

O major Serafim, por sua vez, afirma não haver qualquer caráter discriminatório na intervenção policial. Segundo explica, eventos frequentados por pessoas majoritariamente brancas e de classe média, como o anual Folianópolis, realizado durante três dias, na Passarela Nego Quirido, e beach clubs, em Jurerê Internacional, também são alvos de ação da polícia. “Neste ano já fui quatro a cinco vezes ao P12, em shows que gosto muito, e no P12 chova ou faça sol, 10 horas da noite é desligado o som e não tem mais som nenhum, mesmo porque existe ajuste de conduta com o MP e uma multa que foi aplicada pela PM contra o P12”. 

De acordo com o entrevistado, ocorrem em média 30 ocorrências de perturbação do sossego no fim de semana, em Florianópolis. “Nós não desejamos confronto de situações como essa, entretanto não podemos nos omitir, ao ser acionado vamos agir. Essas meninas têm que escolher o melhor local, horário e ter autorizações”. 

Foto: Karol Braga
Artigo 5º

Segundo explica Gissely Mendes, coordenadora executiva do Intervozes, organização que trabalha pela efetivação do direito humano à comunicação no Brasil, a alegação de falta de alvará não deveria se sobrepor à garantia constitucional da livre expressão artística e cultural. Apesar da liberdade de expressão não ser um direito absoluto, as restrições previstas em lei, incluindo tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, não se enquadram neste caso da Batalha.

Conforme Mendes, a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, por exemplo, estabelece que o exercício do direito à liberdade de expressão “não pode estar sujeito à censura prévia” e deve assegurar o respeito aos direitos e reputação de outras pessoas e também a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.

“Nesse caso nenhuma dessas restrições poderia ser aplicada. Ainda mais se pensarmos que esse é um movimento articulado por jovens mulheres que já tiveram muitos dos seus direitos negados […] No cenário de graves violações dos direitos humanos e censura que temos vivido no Brasil, se torna cada vez mais importante garantir a liberdade de expressão, pela saúde da nossa democracia”, argumenta a representante do Intervozes.

Foto: Karol Braga
Exclusão de grupos marginalizados

A repressão à ocupação noturna nas ruas Victor Meirelles e avenida Hercílio Luz, no centro de Florianópolis, cresceu no último ano, em resposta à abertura de bares e ampliação do público. Um dos últimos embates ocorreu em 24 de agosto, quando foram disparadas balas de borracha para dispersar a multidão que participava do Baile do Madalena, festa funk que vinha acontecendo há algum tempo na rua Victor Meirelles. 

A ação policial foi resultado de reclamações de moradores e comerciantes da região, que vinham demonstrando incômodo pelo aumento de pessoas circulando na rua, o barulho e o lixo no local. Para tentar conciliar os interesses dos vizinhos da rua, o Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC) lançou uma medida provisória, válida por 30 dias, que determinava aos estabelecimentos da Victor Meirelles o funcionamento das 18h à 0h. 

Em 17 de setembro, em reunião com a participação do MP-SC, Prefeitura de Florianópolis, CDL, empresários e polícias Civil e Militar foi decidido aumentar o horário de fechamento para 1h. Daniel Paladino, promotor que acompanha o caso, afirma que o horário foi revisto pois o clima na região “voltou à normalidade”, uma vez que “o número de ocorrências diminuiu, aqueles bailes funks que estavam sendo realizados não estão mais ocorrendo ali e o problema da sujeira foi corrigido”. 

Em entrevista à CDL, no dia 22 de agosto, Paladino justificou a medida dizendo que “todos estão abdicando de alguma coisa e a medida provisória de fechar antes do horário é justamente para não ter sacrifícios mais duros lá na frente, que podem acarretar no fechamento dos estabelecimentos por falta de movimento de pessoas de bem”.

Questionado pelo Catarinas, ele explicou que a frase estava “mal colocada” e que a sua manifestação foi no sentido de que “nesses bailes que são promovidos, que eram promovidos, não são mais, infelizmente tinham pessoas infiltradas, que faziam a comercialização de drogas, a prática de ilícitos criminais, venda de bebidas para menores de idade”, mas “a maioria das pessoas que frequentam ali, aparentemente são pessoas de bem”.

A “volta à normalidade” da situação da rua Victor Meirelles se deve, principalmente, ao esvaziamento do local, já que uma parte do grupo que participava do Baile migrou para a região da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e, de acordo com Paladino, o policiamento na região já foi reforçado. Com relação aos bailes funks, o promotor acredita que a “força policial que foi montada, junto com a Prefeitura, não vai ser desmobilizada”, continuará a atuar nos finais de semana e, assim, desmotiva os eventos de voltarem a acontecer na região central da cidade.

O que na superfície é apresentado como um tensionamento entre a reivindicação de moradores e a demanda social por lazer e novas formas de ocupar o centro da capital envolve questões mais estruturais da sociedade. Marina Toneli Siqueira, professora no Departamento de Arquitetura de Urbanismo da UFSC, explica que Florianópolis tem um histórico de divisão territorial e de repressão a movimentos que se ocupam do espaço público.

A região do centro, por diversas vezes, passou por ações de higienização social e gentrificação, que é a exclusão de grupos sociais marginalizados. O que se vê acontecendo é uma repetição da exclusão desses grupos e um território novamente em disputa. Ela afirma que “a violência não aparece em Jurerê Internacional, a violência aparece aqui no centro porque isso é uma estratégia, é uma ação violenta, é uma estratégia a longo prazo de higienização social”. 

Foto: Karol Braga

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Siqueira salienta que tratar a ocupação do espaço público como caso de polícia significa excluir a população que deveria fazer parte dos debates e que auxiliaria na construção de um espaço efetivamente democrático. Ela acredita que essas vozes estão sendo excluídas deliberadamente do diálogo. “Você não dá educação, não dá espaço de lazer, não dá condição e perspectiva de vida. Você só joga a polícia em cima em qualquer lugar que ela [a população de jovens da periferia] vá, seja nas comunidades ou quando ela entra no centro de Florianópolis”, critica.

A análise de Siqueira é corroborada por Luiz Henrique Cudo, sócio do bar Tralharia, localizado no centro histórico de Florianópolis, e integrante do ERRO grupo, grupo de teatro de rua, que utiliza espaços públicos para atuação.“A gente vive em uma cidade, que por mais que seja uma capital, que por mais aberta possa parecer, ainda é muito provinciana e conservadora. Pouca gente mantém controle da cidade há muito tempo, vai comandando como se fosse seu quintal e a gente vai ficando à mercê disso.”

Para Cudo, os “cidadãos normatizadores”, como ele chama, se sentem donos da cidade e usam o discurso de que o espaço é público para fazer valer as leis que acham que devem ser aplicadas. “Ele [o cidadão normatizador] provoca uma censura e um veto a qualquer atividade na rua, seja artística ou não. No final das contas, a polícia e a guarda municipal, como órgãos de repressão que são, só legitimam ainda mais esse discurso”, afirma.

Outro ponto a ser considerado na discussão sobre a ocupação do centro por determinados grupos está relacionado às transformações, restaurações de prédios históricos e investimentos do Centro Sapiens, em parceria com a Prefeitura, UFSC e outras entidades, nessa região da cidade. De acordo com Marina Toneli Siqueira, esses investimentos vendem a imagem de Florianópolis como uma cidade criativa, com boa qualidade de vida, como as capitais europeias ou da América do Norte.

A desigualdade estrutural da sociedade brasileira, porém, não condiz com a realidade desses locais e há uma tentativa, por parte da Prefeitura, de tentar manter as aparências. “Ao longo da história, Florianópolis teve muitos problemas em reconhecer seus problemas sociais. A Prefeitura nunca estimulou muito uma preocupação com esse aspecto mais social”, conclui.

Integrante do Movimento Negro Unificado de Santa Catarina, Luciana Freitas, destaca que é importante perceber o perfil racial de quem está nesses espaços do centro, já que a maior parte dos frequentadores dos bailes é formada por jovens negros e periféricos. “Sabemos que quando a polícia chegar para acabar com a festa vai sobrar para alguns”, enfatiza. 

Ela lembra que o centro da cidade, durante a década de 1990, era um ponto de encontro para os jovens da periferia. Lugares como o Mercado Público tocavam samba e pagode, fazendo com que muitos dos frequentadores fossem jovens da periferia. Quando esses estabelecimentos mudaram o perfil do público que atendiam, passando a atender turistas, essas pessoas deixaram de frequentar esses locais. “Para a juventude preta e periférica hoje, aqui em Florianópolis, está difícil de encontrar um lugar ‘seu’. Agora encontraram outros locais no centro, e isso incomoda a burguesia”, afirma Freitas.

“É histórico aqui, toda vez que os jovens e as populações marginalizadas se reúnem em algum lugar, a gente sofre uma repressão tremenda”, diz a MC Versa, da Batalha das Minas. Para ela, isso é uma forma de “maquiar os problemas”. “A gente escuta que Floripa não tem favela, que não tem violência, mas isso é uma política de higienização da cidade, de limpar a cidade para os turistas, para ficar mais agradável à vista”, reforça.

Foto: Karol Braga

“Todas essas pequenas ações, no sentido de acesso e direito à cidade, vão deixando a gente mais distante dessa ideia de espaço público”, conclui Luiz Henrique Cudo. Desesperançoso, não vê à curto prazo uma nova ocupação orgânica desses espaços públicos, pois esse uso da força excessiva, que causa medo e pânico, faz parte da estratégia de esvaziamento da rua e “ninguém quer correr o risco de tomar bala de borracha só porque está querendo se divertir. Junta também o fato que com o apoio do presidente e o governador em exercício, todas essas posturas de controle ficam muito mais legitimadas”, protesta.

Desde as eleições de 2018 ocorreram dois casos de violência policial em que testemunhas relataram terem ouvido policiais gritando “aqui é Bolsonaro”. O primeiro, em novembro, aconteceu na UFSC, durante o Geosamba, roda de samba que acontecia no Centro de Filosofia e Humanas (CFH). Os policiais entraram no campus disparando balas de borracha e borrifando spray de pimenta a fim de dispersar o público. Em fevereiro, na rua Victor Meirelles, após o show da banda Francisco El Hombre, policiais atiraram balas de borracha contra algumas pessoas que permaneciam em frente a um dos bares, que tinha sido fechado menos de uma hora antes pela polícia. Nessa ocasião, algumas pessoas foram atingidas pelos projéteis e ficaram feridas.

*Crítica à normatização dos sistemas de valores entre raças expressa na linguagem.

O material apresentado no subtítulo “Exclusão de grupos marginalizados” contou com entrevistas e produção de Luísa Michels, estagiária de Jornalismo da UFSC. 

Editado por Chris Mayer e Morgani Guzzo.

 

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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