Batalha das mina existe há um ano e tem provocado transformações no cenário do rap da capital

 

“Batalha das mina, o que significa? Representatividade feminina!”. Esse grito marca o início de mais um encontro de mulheres que fazem rap no antigo terminal de ônibus de Florianópolis. Instalar o som, chamar o pessoal para fechar a roda, incentivar o público a dar sugestões de temas para serem rimados: esse é o ritual há pouco mais de um ano, quando iniciou a batalha das mina na capital. O movimento surgiu depois que cinco minas ouviram um discurso machista em forma de rima na batalha da Alfândega, que também acontece no centro da cidade. Ali, perceberam ali que já tinha passado da hora de terem um espaço só delas.

As batalhas são de conhecimento. Elas abordam temas escolhidos pelo público e as MC’s têm cerca de 30 segundos para desenvolver seus pensamentos em forma de rima. Mas mesmo assim, Suzi Oliveira (23), vulgo Clandestina – uma das primeiras mulheres envolvidas na criação da batalha das minas – diz que muitas pessoas reclamam dos temas tratados, pois estes geralmente dizem respeito à realidade feminina – maternidade,  feminismo, representatividade. “Eles não entendem que a gente fala muito sobre isso porque este é o único lugar em que a gente pode falar”, reclama. Apesar dos temas, em sua maioria, serem relacionados às mulheres, elas também falam sobre racismo, mídia, demarcação de terras indígenas, pobreza e muitos outros assuntos.

Uma mudança já pode ser notada no rap em Florianópolis: as mulheres estão participando mais das batalhas, inclusive nas mistas – aquelas que envolvem homens e mulheres. “O que eu escutava das pessoas é que rap não é lugar pra mulher, que elas só estão ali procurando namorado ou querendo aparecer, mas desde 2014 eu percebo que está mudando”, diz Clandestina. Ela conta que, no início, muitos homens viam a batalha das minas como segregação, mas passaram a entender quando, depois de um ano, a participação delas nas mistas aumentou.

Apesar da apresentação de rimas ser exclusiva das mulheres, a participação de homens no evento não é proibida. Como diz a descrição na página do Facebook, “a batalha é um espaço aberto pras manas, monas, manos e mines construírem e fortalecerem a cultura da ilha, o hip hop e a representatividade de todos, o poder de ocupar as ruas é nosso!”. Clandestina ressalta que o movimento da rua só acontece porque várias pessoas diferentes estão lá filmando, conversando, dançando. Com o objetivo de atrair para a batalha mais pessoas que não rimam, a organização realiza rodas de conversa sobre temas relacionados às mulheres cis e trans, além de oficinas de dança, circo, grafite e bambolê, que acontecem esporadicamente. A batalha é pensada para ser um evento cultural e um lugar de fala e não ‘um simples rolê’.

Ao som das rimas feitas pelas mulheres, outras pessoas dançam break nos arredores | Foto: Jaine Araújo

O grupo tem conexão com mulheres de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Devido à quantidade de mulheres ativas na frente nacional de mulheres do hip hop, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina são considerados um único grupo. Clandestina não vê isso com bons olhos. Acha que os grupos das cidades acabam sendo generalizados como uma única coisa.

A batalha das mina em Florianópolis reúne mulheres de várias faixas etárias com uma opinião em comum: o rap no Brasil ainda dificulta o protagonismo feminino. Vozes de mulheres geralmente aparecem só nos refrões das letras, como se elas não fossem capazes de rimar. Entre as minas, mulheres como Versa, Inseta e Bruja se sentiram à vontade para mostrar sua arte.

 

Mulheres transformando o rap

“Graças à internet, à articulação e à união que as mulheres têm entre si, nós estamos conseguindo um espaço maior. A presença feminina muda o ambiente em uma batalha de rap. Quando tem mulher na batalha os caras não falam certas coisas porque eles sabem que a gente vai rebater, porque a gente tem argumento e eles sabem que o que eles fazem não é certo. A batalha das mina significa muito quando se trata de representatividade feminina. É algo que serve pras pessoas conhecerem a cultura hip hop, pararem de ter aquele senso comum que é coisa de vagabundo, de drogado ou bandido. Além disso, contribui para a causa das minas.”

VERSA, 19 anos, estudante de Serviço Social

Música e consciência

Rap pra mim é libertação, empoderamento, compreensão. Nele, as vozes silenciadas dão a sua versão dos fatos, falando por si mesmas. É uma enciclopédia da vida. Tem de tudo, basta estar disposto a escutar. É colocar em jogo as diferenças sem apelar pra preconceitos ou piadas. O rap também traz consciência de classe, de espaço, de recorte social. E ele tá aí pra trazer consciência sobre várias paradas. Os caras falam que agora é o momento, que as mulheres se empoderaram pra falar, mas na verdade a gente sempre falou, sempre tivemos voz. O que não tinha eram ouvidos dispostos a escutar.”

INSETA, 24 anos, autônoma

 

“Em resposta à invisibilização, as mulheres estão se armando cada vez mais. Estão saindo daqui pra fazer seu som em outros lugares. O rap entrou na minha vida como um veículo pra eu tirar minha poesia do papel e mostrar pras pessoas. Eu já tinha um livro publicado, mas eu não tinha esse calor. Fui desafiada a rimar como essas mulheres e a soltar aquilo que tava dentro de mim sem filtro, porque o improviso é isso. Teve um dia que rimei com outra irmã sobre maternidade na adolescência e, no fim, a gente nem ouviu a votação, só se abraçou e chorou e isso gera uma empatia, nos leva a pedir perdão quando falamos algo que machuca alguém. Nos ensina a falar e a ouvir.”

BRUJA, 32 anos, escritora

Hip Hop na academia

O hip hop, assim como o funk, se difundiu no Brasil ainda na década de 1970, nos bailes black – encontros de jovens em sua maioria negros e pobres embalados pela black music americana -, uma forma de lazer que até então não existia nas periferias dos grandes centros urbanos brasileiros. Foi nesse ambiente, nos anos 80, que a cientista social Angela Souza teve seu primeiro contato com o hip hop. O interesse pelo assunto veio refletido na tese de mestrado, na década de 90, quando enfrentou resistência da academia quanto à escolha do tema. Já a tese de doutorado, deu corpo ao livro A caminhada é longa e o chão tá liso: O movimento hip hop em Florianópolis e Lisboa.

O rap não é simplesmente um movimento artístico, mas um discurso intelectual, segundo a pesquisadora, já que ele aborda os problemas sociais, como racismo, violência, segregação e, no caso das mulheres, o próprio machismo que é extremamente pesado e recorrente. O que é ainda mais perceptível em uma cidade como Florianópolis, onde o que é mais valorizado são as belezas naturais enquanto s problemas sociais são deixados sob o tapete.

A autora ressalta ainda que a grande renovação do hip hop está justamente no protagonismo feminino, porque a relação de gênero acaba causando mudanças no discurso e na prática. “O que as mulheres fazem é exatamente trazer esse olhar, essa discussão a partir do olhar das mulheres, trazendo debates através da música, que é algo que o movimento feminista não consegue fazer, nem sequer na academia,” explica.

O rap muda quando começa a se espalhar pela cidade, problemáticas novas passam a ser debatidas. Para a cientista social, a batalha das minas é um exemplo disso, pois é um espaço militante e artístico determinante no processo de ocupação de lugares de fala; é uma batalha mesmo, um enfrentamento que se dá no âmbito intelectual. E é por isso que a autora defende:

“a academia precisa aprender com o hip hop, se colocar na humildade que precisa ter. Respeitar esse movimento intelectual que pensa de outras formas: são outros conhecimentos, outras fontes, outras escritas, outras visibilidades que são construídas, e a academia precisa aprender isso ainda hoje.”

Rap à brasileira

O estilo, iniciado no distrito nova-iorquino do Bronx, veio para o Brasil e logo ganhou grande força. Se juntou a outras linguagens artísticas e de expressão das ruas, que juntas formam o hip hop – o grafite, o break e a discotecagem (DJ), mesmo ainda não tendo corpo de movimento musical. O rap reflete sobre a situação de vida de jovens de classes mais baixas e por isso traz reflexões críticas sobre questões sociais, como o racismo, a desigualdade social, a violência policial contra negros, as drogas, o crime, a falta de perspectivas para essa classe.

Veja na breve linha do tempo abaixo os principais momentos do movimento, enquanto musical, no Brasil.

Fonte: Arte, cultura e política na história do rap nacional, Bráulio Roberto de Castro Loureiro | Infográfico: Catarinas

O significado original da sigla é Rhyme and Poetry (Ritmo e Poesia). Já na cena gospel, pode significar Resgate de Almas Perdidas ou, ainda, Rap, Atitude e Protesto. Segundo a pesquisadora Angela Souza, diante de cada contexto em que se insere, o estilo ganha um novo significado, mas não perde sua propriedade intelectual e sua tendência crítica. E não é diferente na batalha das mina em Florianópolis. Nesse movimento feito por mulheres, o rap está se transformando e ajudando a mudar a própria realidade.

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