As distopias têm a estranha propriedade de falar mais do nosso presente do que do nosso futuro, alguém já deve ter escrito ou pensado sobre isso. É porque elas projetam o futuro interpretando o presente, mas andam de costas para o amanhã e de frente para o passado, como os índios Aimorés, que trazem o futuro nas costas. Desde o último sábado, ao sair do Cine Paradigma, em Florianópolis, estou calada com a secreta confiança no futuro que Bacurau acordou em mim. Ainda tenho a língua quieta no sorriso clandestino que o acerto de contas entre o Brasil costureira dos malditos e o Brasil invadido pelos nazi-alienígenas me desenhou neste rosto antes deserto de otimismo. A sensação orgânica de acreditar que mais cedo ou mais tarde haverá uma insurgência contra a catástrofe do presente é revigorante. Faz o espectador mais desesperançado ficar para o gozo da justa vingança coletiva que promete pôr fim à lenta agonia destes dias.
Catarses artísticas costumam anestesiar as revoltas com a ilusão de tê-las resolvido ou aplacado. Bacurau não é assim. Em sua porção realista e fantástica, planta a segurança no revide, mobilizando-nos para a construção da revolta. Como distopia, prospecta até onde pode nos levar este estado pré-nazista. Como utopia, mostra de onde virá a rebelião necessária para freá-lo. Virá por essa ira sagrada dos humilhados, furor da sobrevivência que impele, ou melhor, obriga os povos a reagirem em nome das crianças, dos velhos, das águas, das florestas, dos bichos. Virá com o dever de coragem. A coragem para defender o direito à vida de um povo minoritário que anima as verdadeiras rebeliões.
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Bacurau faz referência ao nome de um pássaro que, como a coruja de Hegel, só levanta voo à noite. Faz também referência ao apelido do último expresso dos subúrbios para Recife. O lugarejo imaginário serve de emblema a esse “busão” da diversidade, ou a esse trem da vida, onde estão embarcados diferentes exemplares da espécie humana, como numa arca da sobrevivência.
Atacados por jagunços high techs estrangeiros e um casal de motoqueiros sulistas que têm a missão de varrê-los do território cobiçado, os habitantes do município começam a morrer feito moscas. Caem na mira de metralhadoras, bazucas e revólveres dos mais diversos modelos testados por esses pistoleiros pós-modernos. São adoradores de armas que parecem ter recém-saído de um clube de caça e tiro, excitados com a chacina encomendada. Não poupam mulheres, nem idosos de sua frenesi assassina.
Quando a primeira criança cai abatida, a reação ganha corpo. Nesse momento, um dos anti-heróis do povoado retorna com a ajuda da gangue de rapazes que se auto-exila numa espécie de fortaleza armada. É ali que o aparente conflito entre contraventores e comunidade se desfaz em nome de uma luta pelo bem maior do povoado. E a mensagem é muito clara: o inimigo só tem um rosto.
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Para travar essa guerra contra o extermínio, os habitantes vão precisar da pílula alucinógena, farinha multimistura “psicotrópica” contra a desnutrição política, semelhante à poção mágica que os druidas gauleses davam aos seus guerreiros nas invasões romanas. A reação à matança ganha então a força da Revolta do Cangaço, dos Canudos, da Cabanada. Dos sertanejos contra os jagunços na Guerra do Contestado, na guerra dos pelados que brotam da tela como uma alucinação antropofágica.
A violência revolucionária no que ela tem de alegórico e de real só assusta quem dorme com a paz dos opressores. Bacurau é o Brasil insurgente e grávido de futuros, na certeza de que quanto mais cruel forem os tiranos, pior será o seu destino. Tributo a Guevara, Zapata, Lampião e Maria Bonita. E também a Zumbi dos Palmares, à Dandara e Marielle Franco.
No substrato da violência, palpita uma comunidade solidária que costura os malditos. Nela convivem em pé de igualdade o velho, o curandeiro, o artista, a mulher, o professor, o homossexual, o michê, o louco, o traficante autoproscrito, a prostituta, a transgênero, a estudante universitária, a médica alcoólatra que adotou o povoado. Todos os que perderam a legitimidade de sua existência ou do seu papel na sociedade bolsonáurica desfrutam de poder simbólico nesses confins de Pernambuco.
Banho de sangue ético e estético, Bacurau esbanja técnica, fotografia, sonografia, interpretação, criatividade. Consegue ser original recorrendo à colagem de referências a gêneros diversos. Está crivado de citações a Clint Eastwood e a outros clássicos do Faroeste; a mestres da violência urbana como Quentin Tarantino; ao cinema-revista tropicalista de Rogério Sganzerla e ao cinema novo de Glauber Rocha. Este último toma o espírito da obra de forma tão intensa que é como se Bacurau fosse o filme que Glauber teria dirigido em 2019. Kleber Mendonça e Juliano Dornelles construíram um épico que anuncia o futuro, falando do presente e revisitando a história.
Guerra entre a tecnologia social de Steve Bannon e a tecnologia da sobrevivência dos nordestinos, o povo eleito para protagonizar a grande revolta mítica que acorda os ecos da revolução russa, mexicana, bolivariana, cubana. Saúde da resistência toda vez que uma raça doente pela dominação se ergue querendo esmagar as outras. Querendo eliminar um povo do mapa para implantar uma barragem, uma mineradora, um centro turístico, um deserto. Toda vez que um dirigente político assina a traição de um povo entregando suas riquezas ao mercenário yankee.
Quem ainda não viu desconhece o poder dessa catarse e dessa overdose de coragem coletiva. Ainda que os chefes da perversidade sejam enterrados vivos ou largados nus pelo sertão nas costas de um jumento, sob a promessa de voltarem a nos atormentar no próximo giro da velha roda da história, são pelo menos duas décadas de alívio.
É gozo trans-histórico maior do que a cusparada de Jean Wyllys no boçal torturador. É o povo cubano comemorando a fuga de Fulgêncio Batista; Panteras Negras festejando a liberdade de Ângela Davis das grades racistas. Eleição de Lula, de Hugo Chávez e de El Obrador elevadas à enésima potência! É a vitória de Brizola para o governo carioca pós-ditadura e das parlamentares negras nas últimas eleições brasileiras. Bacurau é baile de favela, Queda da Bastilha com o povo ainda no poder, Mundurucus expulsando madeireiros das terras amazônicas enquanto o exército não vem. É Brasil em transe!