Pai da Maria Clara e do Francisco, de 11 e 7 anos. É assim que Rafael Stein,45, escolhe abrir sua apresentação para a entrevista de Paternidades Plurais, quarta temporada do podcast Narrando Utopias. Para ele, hoje nada é mais importante do que os filhos e todas as outras funções que desempenha são para sustentar o exercício da paternidade.

Rafael perdeu a esposa há quatro anos, após um câncer bastante agressivo. Desde então, precisou reconfigurar a própria vida para assumir totalmente o cuidado dos filhos. Nesse processo, sentiu a necessidade de rever sua masculinidade para que conseguisse dar conta de lidar com o luto, com a rotina das crianças, a falta de repertório para exercer o cuidado e poder alcançar a paternidade efetiva que buscava. E encontrou na escrita, caminhos para a cura e mais uma forma de cuidar de si e dos outros.

Confira a entrevista.

Você começou a sua apresentação dizendo que a paternidade solo é o que te define hoje. E é muito interessante ouvir isso de um homem porque geralmente isso é o que a gente vê com as mulheres, especialmente aqui no Brasil em que muitas famílias são compostas por mães solo. Então, o que é ser um pai solo para você?

Para mim ter sido um processo de me educar o tempo todo. Em algum momento, eu vendo a minha falta de repertório, o sofrimento que causava neles, isso me faz querer melhorar o tempo todo. Ser pai solo das crianças é um processo, uma jornada de aprendizado, sendo educado por eles. Não preciso entrar no mérito da carga mental, não vou dizer que é igual a da mulher, mas eu tenho uma ideia do que as mulheres vivenciam. Desde o cuidado da casa, cuidado com as crianças, a preocupação… O primeiro dia que eu fui cozinhar para as crianças, foi logo depois que a minha esposa faleceu. Eu só cozinhava em dias especiais, então, fui cozinhar no dia a dia. Fiz um monte de coisas e eles não comeram nada. Eu lembro de ter chorado, ter falado: Eu não vou nem conseguir nem alimentar meus filhos. E a alimentação é muito significativa porque eu levei muito tempo para me sentir capaz ali de cuidar dos meus filhos. E não é só fazer comida, é planejar. Tem todo um planejamento anterior que, por mais que eu soubesse dele, eu não vivenciava. Tem sido cansativo, mas tem sido muito bonito me reconhecer nesse lugar e encontrar amor nesse dia a dia, nessas coisas pequenas. 

Foto de Rafael Stein acompanhado dos filhos, Francisco e Maria Clara
Rafael Stein, acompanhado dos filhos Francisco e Maria Clara. Foto: Arquivo pessoal

Me chamou bastante a atenção a sua fala sobre falta de repertório e paternidade efetiva, porque antes você já era pai, né? Mas parece que essa fatalidade que aconteceu e reconfigurou a tua família fez com que você se tornasse um outro pai. Você, inclusive, coloca a palavra efetiva.  Como você enxerga esse Rafael pai de antes e esse Rafael de agora? 

São completamente diferentes. Eu acho que o diagnóstico separa uma paternidade que antes era exercida a três “P”: procriar, proteger e prover. Isso era a definição do “se eu faço isso eu me reconheço como homem, me reconhecem como homem”. Para mim, ali tinha um conflito muito grande: “Eu vou cuidar deles, eu preciso cuidar dela, só que como eu cuido? Eu não sei cuidar”.  No primeiro momento, eu começo com coisas simples, como acordar mais cedo para preparar o café para ela e chegar mais cedo do trabalho para estar na rotina das crianças. Só que quando você se coloca nessa posição de cuidado algo mágico acontece. Eu falo que a gente se apaixona. É uma troca. Você dá amor e você recebe amor. E nessa troca eu me apaixonei pelos meus filhos, pela minha esposa. Os dois anos de tratamento foram os dois melhores anos de casado. Eu não tinha consciência quando estava vivendo isso, mas hoje eu vejo o quanto eu estava perdendo uma parte importante da minha vida por estar preocupado em prover, em cuidar da casa nesse sentido de trabalhar muito para poder dar o que eu achava que era melhor para minha família. E a gente vai fazendo isso no automático porque era isso o que era esperado de mim como homem, pelo menos é o que a sociedade entende. Se eu faço isso eu tô cumprindo meu papel. 

Mas quando eu me coloco nesse lugar de cuidado e penso no que pai que eu quero ser, eu também passo a questionar que homem que eu sou. Porque antes de ser pai eu sou homem e o homem que eu aprendi a ser não dava conta de viver aquilo. Não dava conta de vivenciar o luto que eu estava vivendo, não dava conta de cuidar das crianças. Eu tive que aprender mesmo. 

Depois que você tem esse contato com esse amor assim, e aqui eu não tô querendo romantizar não porque o dia a dia é muito difícil, eu acordo todo dia às 4h30 para dar conta da rotina das crianças. Durmo cedo também. Então, é uma rotina bastante puxada. De maneira alguma eu quero romantizar isso. Mas você passa a dar valor nessas pequenas coisas. Existe uma diferença muito grande de antes e depois. 

Essa fala que você fez agora, “o homem que eu era não dava conta de viver aquilo”,  me lembra que tem uma estatística no Brasil que aponta que a maioria dos homens abandonam as esposas quando elas ficam doentes, abandonam as mulheres no puerpério. Então, tem uma masculinidade que não dá conta de viver o cuidado da economia doméstica, né? O que fez você querer rever essa masculinidade?

Esse amor que eu citei. É claro que isso não é consciente. Quando eu passo a cuidar, aí eu descubro um amor que eu nem sabia que existia. Meu relacionamento com a minha esposa chegou num nível que eu nem sabia que podia entre homem e mulher. A minha relação com as crianças mudou completamente, eu estava descobrindo algo ali que era novo para mim. Claro que a gente tem uma idealização do que é o amor, mas aquele dia a dia, o toque, o vínculo, a gente cria nessas pequenas coisas. É como se fosse uma montanha que você olha, sobe e vê do outro lado. E eu falei eu não vou voltar mais não. Agora, como eu faço isso? Então, eu acho que o que impulsiona essa busca é esse amor que eu acabei descobrindo. No dia a dia você não entende. Como eu disse é puxado. Não estou falando puxado para mulheres porque vocês sabem isso de cor, mas com um certo distanciamento eu vejo o reflexo desse amor na conversa que eu tenho com meus filhos. 

Quais valores você teve que rever e quais valores você aprendeu nessa nova jornada? 

Muita coisa. A questão do machismo, do preconceito, principalmente. Não me ver capaz de cuidar. Aquele mito da incapacidade paterna de que o homem não sabe cuidar. Tem muitas coisas. Existe um conceito chamado “caixa dos homens” de que a gente tem que ocupar certos papéis para ser reconhecido como homem. Eu levei um tempo para entender que eu poderia exercer minha masculinidade sendo quem eu sou. Masculinidade se lê no plural, né? Então, eu poderia ser homem sendo sensível, sendo carinhoso. Tem uns estereótipos de comportamento tão enraizados que a gente vai replicando sem refletir.  Mas tem sido um processo. Eu acho que a gente não chega no ponto final. Você começa revendo questões mais macros para entender, por exemplo, a questão do preconceito, do racismo, e aí você vai refinando o comportamento no dia a dia. É contínuo. Não tem fim.

Você também falou que começou a rever a tua presença. O que você considera hoje uma presença de qualidade enquanto pai? Tem alguma situação ou diálogo com teus filhos que exemplifique essa presença de qualidade? 

Tem uma frase que diz que “Não importa o tempo, o que importa é a qualidade”. Eu não sei. Eu acho que importa o tempo sim. Temos uma questão de ter mais tempo, mais tempo presente no presente. Porque muitas vezes a gente está junto e tá com a cabeça em outros lugares, mas acho que o vínculo com as crianças, especificamente, se dá no cuidado, nas pequenas coisas do dia a dia. Talvez a gente idealize uma paternidade no futuro. Quando meu filho tiver tantos anos, vamos fazer isso, ou algo grandioso no final de semana, e na verdade para as crianças são as pequenas coisas que importam. Levanto cedo, preparo o café deles, deixo prontinho para eles, mas quando eu vou fazer isso é um exercício. Eu procuro estar presente ali. Quando eu consigo ficar nesse estado, eu me sinto cuidando deles, sabe? No começo da paternidade solo com as crianças, a primeira coisa que eu pensava ao acordar era “hoje a minha esperança é conseguir chegar em tal horário, dar banho neles, preparar a janta e eles comerem”. É isso. Coisas simples. E aí quando chega no final do dia e eu dei banho, consegui fazer uma jantinha que eles comeram saudável que eu planejei no final de semana, eu me torno a esperança que eu planejei. E eu me torno pai deles nessa hora. 

Como é esse planejamento do seu dia a dia? Você trabalha? Tem rede de apoio? Como é isso para o seu cotidiano?

Isso passa por fazer um planejamento mesmo. Ter um controle maior sobre o que a gente tem para executar. Para mim, foi um exercício de começar a planejar toda a minha rotina. Horário para dormir, hora do almoço, horários de deslocamento, etc. Eu vou construindo essa agenda. Vou dar o exemplo da alimentação. Para que eu consiga ter aquele horário de almoço, para que seja produtivo, eu tenho que cozinhar no sábado. Então, eu me antecipo. No sábado, eu cozinho, faço as marmitinhas. Se eu tiver que cozinhar no dia isso me toma um tempo muito grande e inviabiliza que eu consiga trabalhar e fazer outras coisas. Quando eu tenho essa visão macro do que tenho que fazer, eu vou buscando como que eu coloco coisa na minha rotina para que eu antecipe esses momentos. É um pouco mais complexo do que isso. Cada uma das crianças tem uma agenda. Faço no papel, depois tem uma agenda eletrônica. Mas o interessante de rever sua agenda é entender os papéis que você ocupa. Trabalho, familiar, social, de estudo, etc. E aí, quando você desenha você consegue ter uma dimensão em que papel você tá mais ativo, que papel você está menos ativo e isso passa por um processo de autoconhecimento também. 

Muito legal e bem prático esse modelo de organização de olhar a agenda e pensar onde você quer colocar tempo. Podemos colocar estado de presença na agenda. Ela é um instrumento de autoconhecimento. Achei fantástico o que você disse!

Foi um processo para mim. Eu tenho uma pessoa que me ajuda, minha tia Sandra, e ela me ajudou muito nisso. Primeiro, é preciso ter clareza do que você tem que fazer. Eu divido em pilares e cada tarefa ou questão está dentro de um pilar desses. Assim eu consigo dimensionar o tempo, quando eu faço as avaliações, saber em que pilar estou mais ativo ou menos ativo. Esse ano, por exemplo, estou acompanhando mais o Francisco porque por conta da pandemia ele ficou um ano e meio fora da escola, então isso teve impacto na vida dele, assim como na vida de muitas crianças. Uma dedicação eu não precisei ter com a Maria. Ele tem dois dias de aula particular e para eu estar com ele na aula particular, levá-lo, eu tenho um deslocamento. Nesse dia eu vou produzir menos. E aí como que eu faço para atender as demandas de trabalho, da casa? Ver isso com antecedência me faz prever. Eu tenho que planejar esse tempo. Esse estado de presença. Só de você fazer essa agenda ou pensar nisso, você já põe uma intenção. Eu estou colocando aqui esse tempo de leitura porque eu quero ajudar ele nesse processo de educação, etc. No início, eu ainda tinha um resquício de performance, de colocar muita coisa para entregar e tal. Hoje eu já coloco espaços em que eu não tenho nada para fazer porque sempre tem imprevisto. Não dá para programar tudo certinho. Você tem que ter esses espaços para conseguir se organizar então isso também fui aprendendo com o tempo. 

Foto de Rafael Stein
Rafael Stein. Imagem: Arquivo pessoal.

Teve alguma experiência inusitada nesse tempo de paternidade solo? Algo que você não teria vivido se não estivesse nessa condição atual?

Ah sim. Desde questões como, por exemplo, ir num local com as crianças ou com a minha filha e não ter um banheiro em que eu pudesse entrar com ela. Alguns estabelecimentos já começaram a se organizar para isso, mas a maioria não. Também a experiência do balé com a minha filha. Quando comecei a levá-la nas aulas de balé quinze dias depois da minha esposa falecer só tinha eu de homem. Uma escola tradicional, aquele monte de bailarina aí você entra você é o ser estranho do lugar. Às vezes eu entrava com o Francisco, bebê ainda, mas eu sentava no cantinho e ficava escrevendo, abaixava a cabeça, porque era um incômodo para as pessoas. Eu era o homem ali e o homem é o agente da agressão. Eu tinha muito cuidado e preocupação, mas com o tempo elas foram se acostumando com a presença. Uns quatro meses depois, a minha filha fez uma apresentação que teve um significado muito especial para mim porque a minha esposa era bailarina. Então, eu escrevi o texto “Não era só ballet”. Tinha todo um contexto ali. Nunca foi só balé para a minha esposa. Tinha todo um cuidado. Esse texto vazou, a escola viu e a minha convivência ali foi melhorando. Outra situação que aconteceu foi quando estávamos numa segunda apresentação, eu estava conversando com três ou quatro mães quando elas perguntaram “Ah, como você prendeu tal coisa a fantasia?”, eu falei “As argolinhas? Eu costurei no enfeite da cabeça e usei grampo”. Aí uma mãe falou assim “Ah, agora acho que o Rafael pode participar do grupo de mães do WhatsApp do Balé”, então tem essa situação. 

Você entrou no grupo de Mães do WhatsApp?

Sim. Do grupo da escola também eu era o único homem, do balé também. E aí no começo tem um estranhamento. Tem muita mensagem, né? Nossa senhora, tem muita coisa. Então, eu só participava quando tinha algum assunto, mas vira uma roda de conversa e tal e é muita coisa. Mas também é importante porque tinha muita coisa que acontecia na escola que eu não ficaria sabendo do dia a dia das crianças, das relações, entender melhor as famílias. Acho que é importante, mas eu não consegui encontrar um equilíbrio ainda porque é muita coisa. Mas participei do grupo de balé, do grupo da escola, das reuniões. Geralmente as reuniões tinham eu como homem e mais dois três, o resto dos pais não participavam. Ali tem um reflexo grande mesmo. Dá para entender como a sociedade funciona.

Tem alguma outra situação que você acha que não vivenciaria com seus filhos se não fosse pai solo?

Ter que conversar com a minha filha sobre menstruação. Para mim foi um momento muito importante porque eu comecei a escrever depois de ouvir uma frase da enfermeira. Estávamos numa consulta.

A minha esposa estava na quimioterapia, quando a médica me chamou para falar que o medicamento não estava funcionando. Não estava tendo progressão e a enfermeira falou assim: “Olha, chegou a hora de pedir para Micaela escrever cartas para Maria porque ela vai virar mocinha e a mãe não vai estar aqui”. Ali eu falei “Eu vou perder minha esposa”. É claro que a gente sabia da gravidade, só que a gente tinha esperança até o último dia dela. Eu não sou contra milagres. Então, se acontecesse algo extraordinário… Mas essa frase ficou marcada para mim. Foi aí que comecei a escrever.

A prima e a madrinha queriam falar (com a Maria), mas eu disse que tinha que ser eu. O momento não aconteceu ainda, mas eu me preparei, comecei a ler, ver documentário na Netflix sobre como era lá na África. O que as mulheres passam. Ver questões biológicas que eu como homem, já com 40 anos, não sabia. Isso me fez olhar para mulheres diferente. Eu comprei um livro para dar para ela e para usar como desculpa para entrar no assunto. Também assisti a um filme chamado Red que faz um paralelo com esse período. Quando eu fui conversar com ela, eu falei “Olha, essa é uma conversa que a mamãe teria com você. Mas eu tô muito feliz de poder falar isso com você”. E na escola já tinham tocado no assunto. Enfim, a gente se emocionou. Eu me emocionei. Perguntei para ela “Você está envergonhada?”. Ela respondeu “Tô”. “Eu também tô”. E ainda não tô à vontade com ela sobre isso, mas eu posso afirmar que foi um momento dessa minha recente trajetória que eu mais me senti pai. Homem, sabe? E é um negócio que, por mais que eu fale, vai aparecer frase feita, mas é algo que eu não consigo explicar. É um sentimento assim de… Por mais difícil, constrangedor, é um sentimento de “eu sou capaz de estar aqui” e isso não tem preço.

Você se deparou com algum tipo de resistência para que você ocupasse esse lugar de cuidado? 

Parte da família esperava que a avó cuidasse ou que eu encontrasse alguém rapidamente para ocupar esse lugar de cuidado. Esses momentos aconteceram. Eu decidi ocupar esse lugar. Existia uma expectativa de uma parte da família de que eu arrumasse alguém, um outro relacionamento para ocupar esse lugar, ou que eu deixasse com a vó. E aí quando eu decido não fazer isso eu tenho uma resistência de alguns pontos familiares e da sociedade, né? Porque a sociedade o tempo todo, os sinais que ela me passa, é que eu não ocupo esse lugar. Não dava para trabalhar do jeito que eu trabalhava. Eu fico o tempo todo com a sensação de estar nadando contra a maré. É muito cansativo. Mas eu entendo, dentro da minha vivência, que é o único caminho. Nesse processo de me redescobrir como pai, me redescobrir como homem, não tem outro caminho, não. 

Interessante isso que você traz porque se você escolhesse deixar as crianças com a vó, você ainda teria legitimidade porque a sociedade não só incentiva como diz que está tudo bem o pai, o homem, não assumir as funções de cuidado. Então, tem essa outra dimensão de que, de certa forma, assumir o papel de cuidado também é resistir ao padrão de masculinidade imposto socialmente, né?

Insistir em ocupar esse lugar. Não tem outra maneira de fazer isso se não os homens irem lá e ocuparem. Assim como as mulheres, no caso inverso, passaram a ocupar lugares que são reconhecidos como lugar de poder. No trabalho, onde se ganha dinheiro, porque o cuidado, onde não tem dinheiro, não é reconhecido como um lugar de poder. E aí a nossa sociedade como um todo entende que o homem não pode ocupar esse lugar do cuidado porque ele não sabe. Então, a gente tem que ir lá e tomar mesmo. Não tem negociação porque a gente vai encontrar resistência inclusive das mulheres.

 O machismo não está só nos homens, ele está na sociedade como um todo. Nossa sociedade não reconhece. E eu não tô falando como vítima não, tá? Porque tudo o que eu vivencio é pior para as mulheres, é mais difícil para as mulheres, mas a gente vive numa sociedade que não reconhece o homem como sendo capaz, só que o cuidado é uma condição humana. 

Quando eu ocupo esse lugar eu tenho uma resistência das mulheres também da família, na sociedade. Se idealiza. “Ah ele passou a cuidar. Que lindo!”, mas no dia a dia aqui é punk.

Rafael Stein acompanhado da esposa, Micaela, e dos filhos Francisco e Maria Clara. Foto: Arquivo pessoal.

E além da resistência, você também é visto como herói? 

Ah, sem dúvida. O pai que ajuda a trocar fralda já é o paizão, né? No começo era ainda mais. Me colocavam num patamar que me incomoda muito, sempre me incomodou. Porque, como eu falei, não tem nada de romântico no que eu faço. Primeiro que eu tô fazendo exatamente o que um monte de mulheres fazem, né? Que exercem uma maternidade solo porque estão sozinhas mesmo ou porque estão no relacionamento, mas não necessariamente tem um pai ali, ou companheiro ou companheira. E no meu caso, por causa da exposição da escrita, isso ganhou outra proporção. Eu sempre tenho que reforçar isso porque eu também tenho um cuidado de não me sentir nesse lugar especial. 

Quais são suas referências quando o assunto é paternidade?

Quando a minha esposa faleceu eu tive muita dificuldade de encontrar grupos de homens enlutados ou grupos de pais homens. Muita dificuldade. Quem me acolheu no começo foram as mulheres. Quem faz parte do meu referencial hoje são as mulheres. Porque, saindo da questão da paternidade, as referências de cuidados são femininas. Mas para mim era muito importante encontrar outros homens ocupando esse lugar porque eu queria me reconhecer, sabe? É importante. É importante que mais homens ocupem esse lugar, que falem, que escrevam, como é o meu caso. Nessa busca, eu passei a acompanhar o Thiago Queiroz, do Paizinho, Vírgula!, o Tiago Koch do projeto Homem Paterno. Lembro de nos encontrarmos num evento em São Paulo em que ele me convidou para falar sobre puerpério junto com a Thaís Vilarinho, do Mãe Fora da Caixa, que é uma amiga e foi uma das mulheres que me ajudou. Eu vou acabar não citando todas as pessoas que são importantes, mas tem também o Marcelo Correia, um amigo que hoje eu tenho um convívio e fazemos muitas coisas juntos. Enfim. São poucos. Não são muitos não. 

E nisso de você estar nos espaços, entender como a sociedade funciona, exercendo essa paternidade solo, ainda tem padrões dessa paternidade hegemônica que você enxerga em si mesmo e percebe a necessidade de mudar? Coisas que você acha que ainda precisa romper enquanto pai?

Sim. O tempo todo. Tem momentos em que eu “Ah, nossa, agora estou confortável, encontrei um lugarzinho aqui”, mas aí no outro dia você se vê falando algumas frases. É um exercício diário. No primeiro momento você começa a se questionar. Aí pára de falar um pouco, só que ainda ouve os seus pares falando e você é conivente, você fica quieto. Aí tem um segundo momento em que eu passo a questionar quem está à minha volta e nesse processo eu perco muitos amigos. Eu tenho três irmãos, meu pai é de outra geração, então muita coisa a gente conversa. Ainda tem aquela piadinha, sabe? Coisas simples, mas é importante não deixar passar. 

A gente não pode cair na armadilha e achar que a gente sai de uma masculinidade, de um modelo, como se tivesse uma outra para chegar. Eu vou exercer a minha masculinidade de um jeito, meu irmão de outro, meu amigo de outro. 

Meu irmão também é pai de menina, em alguns momentos temos opiniões diferentes, mas concordamos que não podemos mais aceitar certos comportamentos da nossa sociedade, dos nossos políticos, dos nossos amigos, porque isso vai influenciar o mundo que as nossas filhas vão viver. Então, eu não posso ficar conivente com determinados valores. Sem impor nada. Isso não funciona. Você chama, conversa, e aí a pessoa reflete de volta e aí você aprende também. E é importante que eu como homem me reconheça com algumas questões para resolver, ainda me reconheça como machista, me reconheça como racista, e reconheça que eu sou parte desse princípio. Como eu citei em algum momento da nossa conversa, eu não me tocava que eu interrompia outras mulheres. E certamente eu fazia isso com a minha filha e com meu filho. É importante reconhecer. Eu sou um homem branco, cis, enfim, eu tô no topo da escala do privilégio. Tem muitas camadas do machismo que eu não consigo chegar, eu não consigo chegar, por exemplo, no ponto do que um homem negro vivencia. Hoje, eu busco entender, mas é um processo diário, não tem jeito. 

Qual o papel da escrita nessa reconstrução tanto da masculinidade quanto da paternidade? 

Primeiro eu escrevo para mim. Eu escrevo para ter uma interlocução sobre aquilo que eu tô escrevendo. Por exemplo, eu estou escrevendo um livro agora e revisitando muitas coisas que aconteceram. Então, esse primeiro relato que eu faço é uma interlocução minha, com o que eu entendo daquilo que vivenciei. Para mim, a escrita vai curando algumas dores e algumas feridas. Aí quando eu me coloco ali de forma crua, o mais vulnerável possível que aquele momento me permitiu, eu acho que as pessoas percebem isso e criam uma conexão genuína. Eu acabei de escrever um texto chamado “De um viúvo para seus amigos”. Que é o que que aconteceu comigo, meus amigos se afastaram quando minha esposa faleceu. Eu entendo todo o processo, mas eu tive momentos de raiva. Então, a primeira vez que eu escrevi, escrevi com muita raiva. Depois eu li e refleti. Qual é a minha intenção? O que eu quero? O texto que vai ser publicado agora é um convite para a gente voltar a conversar. É uma coisa muito mais no amor do que naquele sentimento. A escrita tem um papel fundamental para mim hoje. 

Foto Rafael Stein apresentação
Rafael Stein em apresentação. Foto: Arquivo pessoal.

Quando que a escrita chegou na tua vida? Foi na época do luto? 

Eu comecei a escrever durante o tratamento da minha esposa. O primeiro texto que eu publiquei chama “Enquanto o sinal não bate”, que é o texto que eu escrevo para minha filha enquanto eu estou esperando o sinal bater para ela sair e é a primeira vez que eu escrevo: Estou com medo. Não sei o que eu vou fazer. Não sei se vou ser um bom pai. É a primeira vez que eu admito que eu não estou bem. Isso foi seis, sete meses antes da minha esposa falecer. E aí eu comecei a escrever, publicava, e de alguma maneira essa escrita encontrava uma audiência. Em algum momento, as pessoas se conectavam. Quando eu comecei eu não sabia se eu estava escrevendo um artigo, um conto, essas coisas. Eu não sabia nem o que estava fazendo, estava só escrevendo. Então, fui estudar um pouco e hoje isso faz parte da minha rotina. 

Antes de você começar a se dedicar à escrita, qual era a sua profissão? Percebi que você não colocou na sua bio. 

Eu não coloco de propósito. Normalmente a gente se define com a nossa profissão, né? A gente sempre começa a nossa definição pela pela profissão. Agora eu sempre começo essa definição com “eu sou o pai da Maria Clara e do Francisco”.  Mas eu tinha uma formação em exatas. Eu tinha uma agência de comunicação, onde eu era era sócio fundador e fazia gerência dos projetos e de pessoas. Quando minha esposa faleceu a empresa estava com 13 anos. Eu larguei a empresa, continuei fazendo algumas consultorias, tive experiências assumindo startups, mas não funcionou porque a condição mínima para mim era ter tempo com as crianças. Então, eu tive muita dificuldade de me recolocar. É uma reflexão que eu passei a fazer, sabe? Não é só a profissão que te define. Eu gosto de fotografia. Isso é uma parte importante na minha vida também, eu gosto de escrever, eu gosto de tiramisu como sobremesa, eu gosto do som do mar. É esse conjunto que me faz.. Mas eu acho que é uma reflexão para a gente fazer também. 

O que é ser pai para você hoje?

Ser pai hoje tem sido um processo de descobrir quem eu sou. Saber que pai eu quero ser para eles. O que eu ainda não sou e o que eu idealizo que eu quero ser. É um processo de educação. Eu sinto que ser pai da Maria e do Francisco me faz uma pessoa melhor. Me obriga a ser uma pessoa melhor. Nos últimos anos, eu tenho um sentimento de que eu vou chegar no final da vida melhor. Eu paro para pensar: E se eu não tivesse as crianças? E se tudo tivesse acontecido e eu não tivesse as crianças? É muito desafiador ocupar essa posição que eu ocupo, pai solo, viúvo. É muito difícil o dia a dia, é desafiador. Mas se eu não tivesse as crianças a vida ia ser bem sem graça. O que eu ia fazer da vida? Eu quero ser um melhor pai, melhor irmão, ser melhor. Mas eu acho que quem me obriga a ser isso são as crianças. Que me fazem me colocar nessa posição de pai, não como alguém que vai educar eles, mas como alguém que vai aprender a ser pai com eles, me coloca numa posição de aprendizado, de aluno deles.

Uma jornada de autoconhecimento mesmo. É bem mais complexo sim. É desafiador. A vida não é fácil, mas segue boa, então vamos em frente.

Esta temporada é uma iniciativa do Inspiratorio.org, com produção do Portal Catarinas em parceria com o projeto Homem Paterno.

Confira a audiodescrição do episódio:

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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