PEC 29 não! Pela vida das mulheres. Pelo direito à maternidade livre.

Há algumas semanas foi realizada em Nova Iorque na sede das Nações Unidas a reunião anual da CSW – Comissão da Condição Social e Jurídica da Mulher. Se antes, governos brasileiros investiam nas relações multilaterais e costumavam ter posicionamentos progressistas nestes espaços, hoje é contra o multilateralismo e se organizou numa coalizão informal anti-aborto com os EUA, Malásia, Rússia e Santa Sé. Alegam que a ONU e “proponentes” da revolução sexual tramam um complô internacional para dissolver a família.

Se, antes, os movimentos de mulheres se sentiram parcialmente vitoriosos com o que foi incluído nas Plataformas de Ação das conferências da ONU, hoje são os anti-direitos que se consideram vitoriosos. O documento final da reunião da CSW não faz nenhuma referência ao direito internacional ao aborto.

Aconteceu em Nova Iorque, paralela à CSW, uma reunião com parlamentares, a ministra da família (Brasil) e convidados/as, na qual apresentaram as estratégias legislativas (e do novo governo) para consagrar na constituição o direito à vida desde a concepção. Isto significa, como se sabe, impedir a interrupção da gravidez mesmo nos casos que hoje estão legalizados no país: risco de morte pra mãe, estupro e anencefalia.

O cenário previsto por organizações de assessoria parlamentar era de que primeiro se dedicassem às reformas estruturais e venda de ativos, para depois entrar nas pautas sobre comportamento. Como assistimos nesse 24 de abril, quando foi pautada a votação da PEC 29 na Comissão de Constituição e Justiça, está tudo relacionado, direitos das mulheres podem ser moeda de troca na reforma da previdência. Nada que seja ganho da sociedade, só deles. A banca de negociação está montada.

Quando essas ideias começaram a ser articuladas globalmente com mais visibilidade? Segundo a feminista Glória Steinem, no livro “Minha vida na estrada” (cito e recomendo por ter sido leitura recente), foi com o Governo Bush Filho (EUA) que, entre medidas de desregulamentação da indústria financeira, de aumento do lucro das corporações com guerras em outros países, aumento do encarceramento  de negros e imigrantes, aplicou-se a educação sexual com base apenas na abstinência com financiamento federal, nas escolas públicas. Instituiu-se a regra da mordaça global que privou de apoio norte-americano qualquer organização que oferecesse informação sobre aborto.

Criou-se ainda uma ordem executiva que destinou bilhões de dólares dos impostos a centros de poder político de “direita de base religiosa”. São medidas que levaram a um aumento da taxa de gravidez indesejada no mundo “desenvolvido”, mas não só. Fizeram-se sentir também no sul global. Vejam como as coisas vão se propagando pelo mundo afora.

No Brasil, vivenciamos a partir dos anos 80 um processo de democratização – com contradições, idas e vindas – para o qual a Constituição de 1988 e compromissos internacionais na área dos direitos humanos foram uma referência no planejamento das políticas públicas, começou a se instituir uma cultura de respeito à diversidade e à cidadania.

Hoje, o que estamos presenciando é um processo de desdemocratização, iniciado no golpe de 2016 e aprofundado após a ultima eleição, com o crescimento da ofensiva da direita. Militarização da política; exploração e mercantilização dos bens e recursos naturais com aumento do lucro capitalista; crescimento do conservadorismo contrário às diferentes visões de mundo; acirramento das desigualdades.

Se viemos de um processo – com muitos limites – de implantação da educação sexual nas escolas, dos serviços de aborto legal com normatização do atendimento, de criação de uma política nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres, hoje, a ministra Damares está sentada na cadeira do que foi uma conquista dos movimentos de mulheres e feministas, ecoando as ideias dos anti-direitos e anti-feminismos. Uma mulher orgulhosa por contrariar tudo o que vínhamos enfrentando para se manter, vaidosa, ao lado dos homens de poder. Ela é uma daquelas mulheres que reforça posições porque delas pensa que usufrui.

Se antes este processo de institucionalização dos direitos foi construído a partir da arena pública, em espaços de diálogo entre sociedade civil e governos, hoje assistimos ao total desmonte dos espaços de participação social, à afirmação de um estado policial em que a tendência é o aumento da criminalização da organização política e social, e também ao favorecimento da cultura de ódio e legitimação da violência por parte da própria população contra pessoas identificadas à esquerda, ao feminismo, indígenas, negros/as, sem terra, sem teto, lgbts.

Antes e hoje, uma esquerda que continua a hierarquizar as lutas, mesmo que a consciência de classe não possa mais ser pensada isoladamente de uma consciência de sexo/gênero, de raça/etnia. Antes e hoje, uma direita que constrói seu projeto de exploração e dominação assentado em um modelo patriarcal de família, das instituições e empresas.

A minha dissertação de mestrado, que fundamentou o livro que está sendo lançado neste mês de abril, trata justamente do período intermediário entre este antes e depois. Os anos 2003 a 2010, 1º e 2º governos Lula. O que estamos vivendo apenas começava a se anunciar com mais força após a crise e desestabilização política do governo do PT com o escândalo do mensalão, em 2005. Trato de como forças conservadoras arregimentadas em nome da governabilidade impactaram nas discussões, tramitações de leis e politicas de aborto.

A pesquisa é historiográfica. Examinei repertórios da luta pela legalização do aborto no Brasil. Investiguei avanços e retrocessos em relação a essa questão durante os dois mandatos do presidente Lula. A dissertação teve como propósito responder a duas questões básicas: quais as principais estratégias utilizadas pelos movimentos feministas no Brasil para ampliar o diálogo sobre o tema da legalização do aborto a partir da criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e da realização das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres?

Como esses movimentos interpretavam os avanços e retrocessos formais enfrentados nesse processo recente de busca por ampliar os permissivos legais sobre o aborto, a partir desses novos espaços de diálogo com o Executivo? Para isso, além de pesquisa documental entrevistei 22 lideranças dos movimentos feministas, de norte a sul do país, que estavam mais à frente das ações em defesa da legalização do aborto naquele período.

Isso é relevante porque a ação dos movimentos sociais – neste caso os de mulheres e feministas – foi fundamental para os avanços democráticos vivenciados no país no período pós-golpe militar. Esses movimentos investiram com força e organização para transformar as instituições, para que estas abarcassem os direitos de cidadania até então ausentes na forma de se pensar e projetar as políticas públicas.

Se anteriormente houve avanços que apenas se anunciaram possíveis, hoje estamos presenciando apenas retrocessos no campo das instituições democráticas e da cidadania das mulheres, entre outras populações. Temos, no entanto, um movimento que tem frequentemente ocupado as ruas, com a pauta do direito ao aborto, do direito à maternidade,  se somando a outras bandeiras impostas pelo contexto.

Os compromissos políticos-institucionais com esses sujeitos, ausentes dos espaços formais porque são movimentos, parecem ser mais facilmente negociados ou descartados. O processo de democratização da participação aconteceu paralelamente a um processo de desdemocratização, ainda que em gradações distintas. O escândalo do mensalão foi um marco. Não se completou sequer um ciclo entre as demandas aprovadas em Conferências de Políticas para Mulheres e a sua tentativa de tradução em práticas governamentais. Os avanços foram incipientes.

O direito ao aborto, diante dos ataques conservadores, voltou a ser uma questão de polícia, a exemplo do estouro da clínica em Mato Grosso do Sul no final de 2007.  Se confirmada a aprovação da PEC 29, contra o qual temos que nos mobilizar veementemente, tudo o que se refere à reprodução da vida estará relegado radicalmente às mulheres, sem que seja dado a elas qualquer opção de escolha e de compartilhamento, familiar, solidário ou social/público.

Antes e hoje os movimentos de mulheres e feministas estão em ação. Se no processo de redemocratização investiram com peso no diálogo com o Estado, sem deixar de lado a organização dos movimentos, hoje, mais que tudo é ao crescimento das mobilizações sociais que estão desafiados. Fortalecimento coletivo e solidário, aliado ao autocuidado, “ninguém solta a mão de ninguém” é uma das palavras de ordem prioritárias. Entre não soltar a mão e não abrir mão do que é visto como fundamental na pluralidade das lutas, a prioridade também ganha plural, redimensionando as militâncias.

Na luta pela legalização do aborto, estamos organizadas na Frente contra a criminalização das mulheres e pela legalização do aborto. Temos pela frente o Festival pela Vida das Mulheres e Maternidade Livre que deverá acontecer em vários estados no período do 28 de maio – data de luta pela saúde das mulheres e redução da mortalidade materna, mortes em sua grande maioria evitáveis.

Neste ano acontecerá a Marcha das Margaridas, organizada pelas trabalhadoras rurais, e a Marcha das Mulheres Indígenas, horizontes de manifestações públicas. E daqui pra frente, inadiável até que seja derrotada, todas as formas de mobilizações possíveis contra a PEC 29.

Fica aqui o convite, mais que isso, o apelo para que quem ainda não se aproximou, contribua e se some. Nosso tempo é hoje e agora!

 

 

 

 

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  • Carla Gisele Batista

    * Carla Gisele Batista é historiadora, pesquisadora, educadora e feminista desde a década de 1990. Graduou-se em Licenci...

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