Meu nome é Sonia Guimarães, sou professora de física experimental no Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o ITA, em São José dos Campos (SP).

Sempre gostei muito de estudar, especialmente de matemática, um de meus presentes de natal quando eu tinha uns dez anos foi um jogo de química. Comecei a gostar de física no cursinho para o vestibular. Sempre fui a segunda melhor da classe, pelo menos até entrar na universidade. Da graduação fui direto para o mestrado, e fui fazer doutorado na Inglaterra, onde o doutorado se chama PhDPhilosophiæ Doctor, sendo que sou a primeira doutora negra em física do Brasil, e fui a primeira mulher negra a dar aula na física do ITA, e eles nunca me perdoaram por isto.

A minha vida inteira tive alguém para me dizer: “você nunca vai entender física” – minha professora de física do Fundamental II; “você nunca vai usar física para nada” – professora responsável pelas bolsas de iniciação científica da Universidade Federal de São Carlos, onde fiz meu curso. Nem preciso dizer que meu pedido deste tipo de bolsa foi negado.

Pois bem, fiz o concurso para ser professora no ITA e passei em 2º lugar, mas o 1º não pode assumir, entrei eu, primeira mulher a assumir este cargo, isto em 1993. No meu 3º ano, um colega entrou na minha sala com a avaliação dos alunos, onde eles diziam que eu era a pior professora do ITA, e que minha roupa chamava muita atenção para o meu corpo, por isto, me disse meu colega, eu estava sendo transferida para o Instituto de Aeronáutica e Espaço, o IAE.

Em outras palavras, fui excluída de meu cargo de professora, concursada, para ir ser pesquisadora em um outro instituto. Tentei falar com meus colegas, reitor que não me recebeu. O vice-reitor disse: que não podia fazer nada, pois eu estava sendo perseguida e o melhor que eu tinha a fazer era ir embora. Tentei falar com o diretor do Centro Técnico da Aeronáutica, o CTA, como era o nome do campus onde fica o ITA, e este não me recebeu. Tinha um advogado do ITA, que parecia que estava me ajudando, mas não estava. Um meu colega, que fez concurso comigo me disse que era melhor eu ir para o IAE, e eu fui.

Isto constitui uma violência pois esta exclusão destruiu minha carreira, pois depois de 26 anos de ITA ainda sou “professor adjunto III”.

Nos mais de dez anos que permaneci no IAE publiquei em diversos periódicos nacionais e internacionais, tenho até um pedido de patente, mas todos estes anos se caracterizaram somente como a promoção de Adjunto I para II. Nestes mais de dez anos, o ITA cortou meu salário para a metade pois não estava dando aula. Quando reclamei, afinal não estava dando aulas pois eles estavam me impedindo de fazê-lo, ninguém me recebeu, e daí entrei com um processo na justiça, e voltei a receber meu salário, mas sem as promoções que deveria ter direito.

Como foi minha vida no IAE? Novamente a única negra. Para os congressos no Brasil, não tive problema, pude ir a todos. Mas aí tive um artigo aceito para ser apresentado em Portugal. Neste mesmo período a Agência Espacial Brasileira, a AEB, precisava de uma assessoria para julgar pedidos de auxílio em pesquisa, trabalho que não tem recurso extra, ou seja, você não ganha para isto, não valia para promoções, enfim, ninguém queria fazer, quem eles mandaram? Eu. Pois bem,  quando meu trabalho foi aceito e eu precisava de recursos para ir para Portugal, perguntei à AEB, se eles poderiam me ajudar, que o fizeram prontamente, com passagem, diárias, tudo. Quando meu chefe ficou sabendo, ficou muito zangado, e ligou para a AEB, pedindo explicações porque só eu poderia ir. O que a AEB respondeu: só a Sonia aceitou ser nossa assessora.

Sonia durante aula no colégio da Embraer/Foto: arquivo pessoal

No ano seguinte, meu artigo foi aceito para um dos congressos mais importante na área que trabalhávamos, em Boston nos Estados Unidos. Pedi recursos para a aeronáutica. Quando o gerente do meu projeto viu que talvez eu viajasse, teve uma crise, saiu pelos corredores do departamento ameaçando: que se eu fosse para Boston, ele não seria mais gerente do projeto.

Pois bem, não fui para Boston, ele deixou de ser gerente, tentou fechar o projeto, não conseguiu, eu me tornei gerente, no ano seguinte fui para Paris, caracterizar a superfície dos dispositivos do meu projeto, e no ano seguinte fui a Utah, nos Estados Unidos, apresentar nossas pesquisas num dos principais congressos de aeronáutica do mundo. O artigo que apresentei ali foi o trabalho de maior fator de impacto da Universidade Estadual de São Paulo – Campus Guaratinguetá. Fator de impacto me quão importante é um artigo científico.

Vocês percebem a violência de fazer de tudo para que eu, uma mulher negra, cientista, doutora, que trabalha muuuito para conseguir as coisas, viaje para o exterior? Ou tenha sucesso e prestígio com seu trabalho?

Meu projeto no IAE acabou, voltei a dar aula no Departamento de Eletrônica do ITA, mas só por seis meses, os outros seis eles não precisavam de mim, daí pedi para ir fazer pós-doutoramento com uma bolsa Sem Fronteiras, pedido que eles nem se deram ao trabalho de recusar, nunca nem me responderam. Daí a pessoa que não me queria na física se aposentou, e voltei a dar aula lá em 2010.

No meu primeiro ano de retorno tivemos três artigos aceitos em três congressos muito importantes, mas logicamente não tinha recursos para eu ir apresentá-los. Detalhe: um deles era a uns 80 km de São José dos Campos. No entanto, tinha recursos para ir buscar professor estrangeiro no aeroporto, que tinha mais ou menos a mesma distância. E a razão principal para isto é que se eu não apresentar um artigo aceito ele não é publicado, e sem publicação não tenho direito à promoção.

Neste meio tempo um professor branco, do gênero masculino, ex-aluno do ITA, que se formou em primeiro lugar no ano dele, teve a mesma avaliação que a minha dos alunos. Este professor foi excluído? Foi não, ele foi fazer pós-doutoramento na Alemanha.

Registro após palestra na Universidade Federal de São João Del Rei/Foto: arquivo pessoal

Como se não bastassem as violências, o ex-coordenador do curso que estou dando este semestre, está boicotando meu curso. Eu poderia ter me aposentado em agosto, mas só dou aulas para o 1º ano, no 2º semestre, e este é o 1º ano de cotas raciais do ITA, e eu queria dar aulas para os negros que entraram. Pois bem, pedi para os meninos fazerem uma certa tarefa, o coordenador falou para eles não fazerem não. Uma turma fez um ótimo trabalho eu dei nota boa, a outra turma fez uma porcaria, dei nota baixa, o coordenador me proibiu de avaliar os que tinha feito porcaria.

Daí tive uma discussão com ele, que pediu demissão do cargo de coordenador, quando se tornou ex-coordenador. Daí me candidatei para o cargo, adivinhem, eu não posso ser coordenadora. Até o técnico do laboratório, que presenciou toda minha discussão com o coordenador, se recusa a montar as experiências dos meus estudantes nos meus dias de aulas. Depois que o denunciei à chefia do departamento ele amansou, mas aos gritos me disse que não tinha nenhuma obrigação em me atender.

E meu colega que é o dono do site do curso, se recusa a colocar minha aulas, e disponibilizá-las para meus alunos. Isto tudo este ano, em 2019. Depois quando vou ao programa Conversa com o Bial, e este me pergunta como é dar aula em uma instituição racista e machista, eu respondo: ELES ME ODEIAM.

Vai o pessoal nos comentários do G1 da Globo dizer que estou mentindo. Uma aluna minha, que começa o comentário se autodeclarando negra, afirma que o problema que eles têm comigo não é minha cor ou por eu ser mulher, e sim porque “Eu sou a pior professora que esta minha ex-aluna já teve na vida. Depois de minhas aulas esta menina tem depressão e não consegue dormir à noite”. Detalhe, no primeiro ano dela, o artigo que o grupo dela escreveu, foi enviado por mim a um congresso e só não foi aceito, porque faltou uma melhor descrição de uma ferramenta computacional, que eles usaram, uma vez corrigido isto poderia ser aceito.

Depois que foi lançado o filme Estrelas além do tempo, que conta a história de computadores humanos que eram mulheres matemáticas negras, começou uma procura danada sobre mulheres negras pioneiras, e meu nome apareceu, e daí fiquei famosa, e tenho dado palestras pelo Brasil, Norte, Nordeste, Sudeste, entre outros. Pois bem, em março de 2020 vai acontecer no ITA o encontro de mulheres nas exatas, e ninguém pensou em me convidar para fazer parte da comissão organizadora, quem dirá para dar uma palestra. Em todo caso me convidaram para apresentar um artigo que foi aceito para apresentação oral.

Visita de alunos do colégio Uirapuru ao ITA/Foto: arquivo pessoal

Vai ter um encontro semelhante, mas só para mulheres negras em Salvador, em julho de 2020, e já fui convidada para uma mesa redonda. Vai ter outro encontro, também em março, em Manaus, para o qual já estou convidada desde agosto deste ano. No ITA fui chamada para mandar um resumo estendido, para isso preciso esperar aceite, pagar inscrição, enfim com uma pessoa desconhecida, externa.

Vocês acham que isto é violência contra uma mulher negra, excluída, tratada como alguém de 2ª classe?

Ah! E tem mais, devido a este tratamento que tenho, nunca, mas nunca mesmo vou a nenhuma atividade social, pois me parece estúpido ir onde não me querem bem. Nesta semana ocorreu um café da tarde de confraternização, que como de costume não respondi. Aí veio uma das professoras pedir que eu fosse, pois com os últimos concursos entrou um montão de mulheres, não na física, mas na matemática, química e elas estão se sentindo chateadas por eu nem responder aos convites. Daí eu perguntei, se elas me querem por perto, por que não me convidaram para a comissão de organização do encontro de mulheres das exatas? Resposta: “visto que elas são novas no ITA, e não sabem o que me aconteceu, eu não deveria fazer este tipo de pergunta.”

Estas meninas novas estão preocupadas comigo?

Isto não seria um tipo de violência sutil, na qual eu teria que me enturmar só porque elas querem?

*Sonia é professora adjunta III da Divisão de Ciências Fundamentais Física – IEFF, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), do Departamento do Comando-Geral de Tecnologia Aeroespacial (DCTA). Professora de Física Experimental do 1º e 2º ano das engenharias: elétrica, computação, estruturas de aeroportos, mecânica de aviões, aeronáutica e aeroespacial. PhD em Física da Matéria Condensada, pela The University of Manchester Institute of Science and Technology, Inglaterra, Licenciatura Plena em Física pela Universidade Federal de São Carlos. Conselheira Fundadora da ONG afrobras, mantenedora da Universidade Zumbi dos Palmares, professora de inglês na ONG Integra Brasil, Conselheira do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial da Cidade de São José dos Campos, membro do Grupo de Trabalho de Minorias na Física da Sociedade Brasileira de Física – SBF e da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros – ABPN.

 

 

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