Luiza Batista Pereira, presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), escreveu este artigo para o Catarinas

A morte do menino Miguel de cinco anos ganhou o mundo. Nos Estados Unidos, onde manifestações antirracistas têm tomado as ruas, nos encarregamos de informar trabalhadoras brasileiras que lá residem por meio de artigos sobre o caso e entrevistas concedidas por nós. O caso envolve tudo que se possa imaginar em termos de injustiça e impunidade, além da carga do racismo.

Assim que a pandemia começou, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) lançou a campanha “Cuide de quem te cuida”, para que os empregadores deixassem suas trabalhadoras em casa, garantindo a remuneração. Houve pouca adesão, foram mínimas comparadas à quantidade de trabalhadoras domésticas que temos no país – quase sete milhões. Mas a Fenatrad não desistiu e essa campanha continua nas redes sociais para conscientizar os empregadores e arrecadar cestas básicas.

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Vamos à situação do Miguel, aliás à situação da mãe do Miguel e de milhões de trabalhadoras do país. Sabemos da importância do trabalho doméstico na organização da sociedade, mas neste período de pandemia em que estamos vivendo, não somos essenciais. Precisamos diferenciar serviços essenciais de atividades que têm sua importância, como é o caso do trabalho doméstico.

Acontece que a casa grande, leia-se a classe média alta, os milionários deste país, não querem se dar ao trabalho de dispensar trabalhadoras para ficar em casa. Querem uma pessoa que prepare o alimento, lave a louça, lave e passe a roupa, limpe a casa, o banheiro, porque não nasceram e não foram criados para isso. Na cabeça dessas pessoas o nosso trabalho é de menor valor, tanto que as pessoas negras, pobres, periféricas que não tiveram oportunidades estão incluídas nesta categoria.

Com a mãe do Miguel não foi diferente. A patroa, Sari Corte Real, e o patrão, Sérgio Hacker, já tinham contraído a Covid-19. A mãe e a avó de Miguel contrariam a doença da família do patrão e nem assim foram dispensadas do trabalho. O menino Miguel também teria sido contaminado, mas não teve sintomas.

Sérgio Hacker é prefeito de Tamandaré (PE). A mulher é advogada e tem grau de parentesco com família tradicional pernambucana, do ramo da construção civil, ou seja, é parte da elite. Na cabeça dessas pessoas que a empregavam, Mirtes tinha que estar em serviço, não poderia ficar em casa e receber o salário. Tanto ela quanto a mãe trabalhavam na casa do prefeito de Tamandaré, só que não eram registradas como trabalhadoras domésticas e, sim, em cargos comissionados na prefeitura. Ou seja, além de todos os privilégios que o cargo mantém, ainda tinha uma trabalhadora doméstica com o salário pago pela prefeitura.

Acho que isso fez com que o casal pensasse o seguinte, eu não posso enquadrá-la na Medida Provisória 936/2020, que permite a redução de salários e da jornada de trabalho ou a suspensão do contrato trabalhista, e como estão recebendo terão que trabalhar. No momento do crime, a patroa, Sari Corte Real, estava com outra trabalhadora na casa dela para fazer as unhas. São muitas camadas de opressão envolvidas.

Quando Mirtes voltou do passeio com o cachorro, ficou sabendo que alguém tinha caído do prédio. Ela pergunta sobre o filho, ao que a patroa responde “ele estava aqui agorinha, cadê ele?”, mesmo sabendo que o menino não estava. Quando Mirtes desce, era o filho dela que estava lá, jogado, caído, caiu de uma altura de 35 metros, do nono andar.

Detida, quando Sari chega à delegacia pede perdão à Mirtes. Na cabeça da Mirtes o menino tinha driblado a patroa que estava fazendo as unhas e saído sem que ela tivesse visto. As imagens do menino divulgadas pela polícia dizem o contrário: foi a patroa quem apertou o botão do elevador. Se o menino tivesse ido pelo elevador social, ele não teria caído porque o elevador de serviço fica numa área isolada.

A patroa foi detida, ouvida, pagou fiança de mais de R$ 20 mil e está no aconchego do lar. Mirtes, mulher negra e trabalhadora doméstica, perdeu o único filho e está em estado de choque. Fica a pergunta: e se fosse o contrário, se a trabalhadora tivesse se descuidado e o filho da patroa tivesse caído do nono andar? Se a Mirtes tivesse sido responsável pela morte do filho da patroa, ela não poderia nem mesmo pagar a fiança e certamente seria indiciada por homicídio doloso, aquele com intenção de matar. Com certeza ainda estaria presa, passando por todo tipo de violência.

Infelizmente as leis brasileiras são parciais, elas têm cor, classe, poder aquisitivo, tudo que se possa imaginar. Aplicada em pessoas ricas, abastadas ou classe média, de pele clara e cabelo liso, a lei tem um peso e é bem leve. Se for direcionada a uma pessoa pobre, periférica, negra, a mão da lei é muito pesada. Quando acontece alguma situação em que a trabalhadora doméstica protagoniza violência contra uma pessoa idosa ou criança, o rosto dela é divulgado incessantemente. Mas a Sari Corte Real, por ter nome pesado de família e grana, por ser branca, ter cabelo liso e morar num prédio de luxo, no centro de Recife, está em casa, foi indiciada por homicídio culposo. E já é um avanço ter sido indiciada, porque esse pessoal com o poderio econômico que tem geralmente consegue se livrar da justiça criminal.

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Sabemos que esta situação não se trata de homicídio culposo. Conversei com dois advogados que me explicaram que houve dolo (intenção), o chamado dolo eventual. Em primeiro lugar, o menino só tinha cinco anos e, conforme o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), uma situação dessas configura abandono de incapaz. Em segunda lugar, a Legislação Municipal não permite que uma criança com menos de dez anos utilize o elevador desacompanhada. A patroa é advogada e deve ter conhecimento disso. Em terceiro lugar está o propósito dela de colocar o menino sozinho no elevador, assumindo o risco de que a criança poderia vir a sofrer um acidente. É a mesma interpretação utilizada nos casos em que uma pessoa dirige embriagada e provoca um acidente que resulta em morte. Com que finalidade se coloca uma criança em um elevador e aperta-se o botão do último andar?

A situação das trabalhadoras domésticas no momento é esta: trabalham porque precisam, muitas são praticamente obrigadas a ficar no local de trabalho sob pena de não receber o pagamento. Elas ficam imaginando “se ficar em casa, vou comer o quê?”, “vou pagar minhas contas e aluguel de que jeito?”. Estão entre ficar sem salário, desempregadas, ou se submeter à tirania dos empregadores.

Essa postura com as trabalhadoras é de gente tirana, pois sabem que estamos vivendo uma quarentena e que o trabalho doméstico não é essencial, mas para não abrir mão da servidão mantém a trabalhadora doméstica dentro de casa.

Há uma nota técnica do Ministério Público do Trabalho, emitida em março, determinando que neste período de pandemia as trabalhadoras devem ficar em casa com remuneração garantida. Sari Corte Real ignorou porque não poderia abrir mão de ter uma trabalhadora doméstica à sua disposição. E não era só a Mirtes, mãe do Miguel, a vó dele também estava a serviço dela, paga com recursos públicos da prefeitura. E isso é mais um agravante porque é fraude.

Não sabemos onde isso vai dar, porque a justiça, simbolizada por uma mulher com os olhos vendados e uma balança nas mãos, em referência à imparcialidade, não somente enxerga a classe e a raça como também a discrimina. Somos a maior categoria profissional do país, formada majoritariamente por mulheres e mulheres negras. Esse crime diz muito sobre a desumanização de cidadãs e cidadãos específicos: mulheres negras e de suas famílias. Esse crime diz muito sobre vidas que importam, neste país que estabeleceu o maior período de escravidão da história recente. Ao contrário de enfrentar seu passado, este país o reproduz cotidianamente de forma velada e naturalizada, nem por isso menos violenta, abatendo sobre nós o peso do açoite escravagista.

*Luiza Batista Pereira é presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad).

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