Esse é o primeiro artigo da série “Maternidade em tempos de pandemia”

Queria começar essa série de textos falando sobre os desafios e as minhas percepções sobre vivenciar a maternidade em tempos de pandemia, pela minha experiência como mãe de Maya, cinco anos, e de experiências compartilhadas com amigas de todo o Brasil. Mas começo escrevendo sobre essa triste história que me impacta de muitas maneiras. A tragédia que é a morte de Miguel de cinco aos, em Recife, é um caso cheio de simbolismos de um país marcado pelo colonialismo e a exploração.

Trata-se de uma mãe negra, trabalhadora doméstica, que para sobreviver permanece trabalhando na casa da patroa mesmo em tempos de pandemia. A patroa não tem escola para deixar seus dois filhos, então é a empregada que faz o papel do cuidado.

Por outro lado, a trabalhadora negra precisa levar seu filho para o trabalho, pois neste momento, mas também fora da pandemia, há uma ausência de políticas públicas de cuidado. Não há creche para todas as crianças e este é um problema há muito tempo denunciado pelos movimentos feministas brasileiros.

Assim, seu filho precisou ser cuidado por ela mesma, durante o horário de trabalho, na casa da patroa. E para cumprir ordens a mãe deixou seu filho com a patroa e foi passear com o cachorro da família. Como disse a mãe: mesmo diante de tanta dor e sofrimento “ela não teve paciência para cuidar do meu filho”, e após ter ficado por poucos minutos cuidando dos seus e do filho da empregada, leva o pequeno Miguel para o elevador. Deixou-o sozinho.

O fato de deixar uma criança sozinha de cinco anos em um elevador é problemático por muitas questões: primeiro porque é proibido crianças andarem sozinhas em elevadores e essa atitude demonstra o entendimento da empregadora de que essa criança não tinha merecimento ao mesmo cuidado que outras, que seus próprios filhos.

O fim trágico de Miguel nos leva à conclusão de que as desigualdades raciais e sociais do nosso país aumentam os fossos existentes entre patroas e empregadas, ricas e pobres, brancas e negras. Como uma pessoa branca e professora, penso que precisamos continuar na luta por políticas públicas de cuidado, creches e escolas públicas para todas as mulheres, independente de classe e raça. Todas temos o direito de trabalhar e o Estado tem o dever de dar uma educação pública e de qualidade desde a educação infantil, já que a educação é um direito social previsto na Constituição Federal.

Precisamos buscar a mudança, por mais humanidade, para que as pessoas (sejam mulheres e homens) olhem para as crianças de outras pessoas, marcadamente pobres e negras, como seres que merecem cuidado e proteção, assim como desejam para os seus próprios filhos.

A patroa de sobrenome “Corte Real” pagou uma fiança de R$ 20.000 e segue em liberdade. Esse é o custo da vida de uma criança? Miguel me parece uma criança feliz e assim foi descrito por sua mãe. Tinha completado cinco anos assim como minha filha.

Muito revoltante a ausência de cuidado e de humanidade de outra mulher (a patroa), que não se importou com a criança de outra mãe, induzindo ao perigo e infelizmente para a morte.  A pergunta que corre nas redes sociais “E se fosse o filho da patroa?” diz muito sobre as camadas de desigualdade e injustiça racial no Brasil.

*Claudia Regina Nichnig é historiadora, advogada e doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, na área de Estudos de Gênero, e pós-doutora em História e Antropologia Social.

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