Conseguimos aceitar que muitas mulheres ainda serão sacrificadas até que tenhamos alguma vitória?

Por Bruna Martins Costa*.

Esse texto contém spoilers do filme.

Está chovendo homens! Aleluia!
Está chovendo homens! Amém!

Deus abençoe a mãe natureza.
Ela é uma mulher solteira também.

Nos créditos iniciais do filme, Cassandra é apresentada durante esse trecho da música. Seu rosto e suas roupas indicam que ela teve uma noite “daquelas”. Os trabalhadores de uma obra comentam sobre seu desalinho, mas são surpreendidos pela reação de alguém confiante no desfecho da noite passada.

Promissing Young Woman, que na versão brasileira foi traduzido para Bela Vingança [título que a meu ver limita e simplifica drasticamente o pano de fundo filme] tem sido apontado com um forte candidato ao recebimento de vários prêmios do cinema, incluindo o de melhor atriz, para Carey Mulligan, e de melhor direção, para Emmerald Fennell.

Deixo de lado a tentação de partir para uma (pseudo)crítica cinematográfica para operar no terreno que me sinto mais útil e capacitada, vociferando sobre a carga exponencial de violência contra as mulheres que marca todo o filme.  

Cassandra, ou Cassie, é bonita, branca, pertence a uma família de classe média-alta, e era uma das melhores alunas do curso de medicina. Foi uma “jovem que poderia ter conquistado tudo o que toda mulher deseja”. Ao invés disso, leva uma vida completamente medíocre, morando com os pais aos 30 anos, trabalhando em um emprego ruim, sem amigos ou namorado, e perambulando, secretamente, nas noites por boates.

Seu objetivo parece ser apenas um: vingar-se de todos os assediadores que cruzam seu caminho. Para isso, finge estar completamente bêbada, de modo a comover homens e ser gentilmente levada para casa em segurança. Vemos a repetição de um padrão bastante conhecido, com homens se aproveitando de uma mulher vulnerabilizada pelos efeitos do excesso de álcool e outras drogas, à beira da inconsciência, para fazer sexo sem consentimento.

É curioso como todos esses homens ficam apavorados ao descobrirem que Cassie forjou a embriaguez e está completamente sóbria. O discurso masculino adotado se repete sequencialmente: é fundado na completa autodesresponsabilização, acompanhada por afirmações que reforçam tratar-se de “bons caras”. O constrangimento e o medo tomam os homens de tal forma que, de imediato, associam o comportamento de Cassie à loucura, à psicopatia. Uma mulher normal não agiria dessa maneira.

Foto: divulgação

Cassie é uma mulher fracassada amorosa e profissionalmente, e satisfaz todos os requisitos para ser psiquiatrizada. A razão dessa anormalidade está na morte de sua amiga de infância, Nina. Ao que tudo indica, Nina se suicidou depois de ser estuprada em uma festa por um colega da faculdade de medicina. E essa violência parece não ser o bastante para justificar a ruptura de Cassie com os “desejos de vida de toda mulher”.

Os personagens masculinos são construídos de modo que satisfazem a todos os estereótipos e gradações do machismo. Há “homens de bem”, que tentam ajudar as mulheres a voltar para suas casas em segurança, “meninos”, que não têm noção da gravidade do que fazem, homens que passam “cantadas” em mulheres nas ruas, homens que chamam mulheres de loucas no trânsito, homens deliberadamente machistas e cafajestes, que não fazem qualquer questão de disfarçar sua misoginia, e até “esquerdomachos”, materializados no namorado compreensivo e no noivo que faz um casamento “místico” e “alternativo” para agradar sua futura esposa.

Não ficaram de fora as mulheres que reproduzem discursos machistas – “uma mulher precisa se dar ao respeito”, “não se pode andar caindo de bêbada e esperar que nada aconteça” – e correspondem aos ideais construídos pelo patriarcado branco – maternidade, beleza, fidelidade, submissão. Tristemente, essas mulheres só parecem rever sua falta de empatia quando colocadas em situações semelhantes ao estupro de Nina. A reflexividade é forçada através de dolorosas punições engendradas por Cassie, e a culpa e o arrependimento são acompanhados por uma completa repulsa a toda a história e à amiga vingativa.

Deparamo-nos com um ciclo que intercala melancolia e satisfação. Se a estética do filme já sinaliza esse caminho – um filme denso, violento, um thriller, com uma fotografia clara, cores vivas, e elementos emblemáticos e caricatos da cultura pop -, penso que em dois momentos tudo isso se funde consistentemente.

O primeiro deles é quando Cassie finalmente se permite gostar de Ryan e viver bons momentos com o novo namorado. Esse lapso de satisfação é estraçalhado quando, ao assistir o vídeo caseiro do estupro de Nina – que é revelado apenas sete anos depois do ocorrido -, descobre que seu perfeito namorado, e ex-colega de faculdade, testemunhou toda a agressão.

O segundo momento é marcado pela ida de Cassie à despedida de solteiro de Al, o estuprador de Nina. Tudo se encaminha para que Cassie coloque um fim ao ciclo de violências que atingiu sua amiga e a si própria. Mais uma vez, temos o rompimento da satisfação: ela é vítima de um feminicídio cometido por Al.

A parceria, a aliança, a irmandade, a “broderagem” masculina é reforçada a todo momento. Os homens estão o tempo todo se suportando [palavra aqui usada de forma propositalmente dúbia, tanto no sentido de dar suporte a como de tolerar], mesmo quando parece não existir grandes laços afetivos entre si. Eles avaliam, respaldam, reforçam uns aos outros, ao mesmo tempo em que jugam, condenam, questionam as mulheres a partir de seus referenciais.

Foto: divulgação

A lógica interrelacional masculina não pode ser replicada para as mulheres. A rivalidade, a desconfiança, a descrença marcam muitas das relações retratadas no filme. A preocupação com os homens, bem como a tolerância, a empatia, a paciência em relação aos seus comportamentos displicentes, abusivos e violentos (quase) sempre se sobrepõe a qualquer solidariedade ou identificação femininas.

Uma das maiores dores reveladas pelo filme é a ligada à impotência. Somos constantemente expostas ao descaso, ao esquecimento do estupro, por parte da maioria dos personagens. Ainda que todos tenham direta ou indiretamente acompanhado os desdobramentos do caso, quase nenhum parece ter dimensão dos impactos e reverberações da violência cometida. Preservou-se a carreira de um homem em detrimento da reparação às mulheres afetadas pelo estupro.

O único homem que parece se arrepender é o ex-advogado de Al. Após anos sendo assombrado pelo suicídio de Nina, Cassie consegue que ele seja um aliado na sua busca por vingança [ou seria, talvez, reparação?].

Como último ato, após a sequência de violências que marca todo o filme – assédios, importunações, invasões ao corpo e intimidade, estupro, feminicídio – as pessoas envolvidas com o estupro de Nina e a morte de Cassie são presas e punidas [parece óbvio, mas essa pretensa punição significa muito pouca reparação]. Cassie se antecipa a violência fatal que lhe atinge, articulando a publicização póstuma do vídeo que carrega a única prova existente do estupro.

Volto-me, novamente, para o título em português, Bela Vingança. Não há beleza nesse desfecho. Se, por um lado, ele provoca algum gozo, alguma satisfação, uma vez que vemos homens, que livremente violentaram mulheres, serem alvo de alguma dor, por outro, essa dor não traz qualquer reparação e conforto em relação à angustia, ao desespero, ao nojo, ao medo que nós mulheres experimentamos todos os dias. É um prazer momentâneo, fruto de uma violenta descarga de sei lá o que, seguido dos miseráveis sentimento de tristeza e impotência.

A primeira versão desse texto veio como um vômito, repleta da mistura de elementos desconexos, mal digeridos, mas que não possuíam meios de serem mantidos dentro do corpo. A versão que publico é uma segunda, marcada pela ruminação e digestão daquilo que não foi expelido com urgência.

Escrevo esse texto para dar alguma forma, mesmo que frágil, a todos os sentimentos e sensações antagônicos, paradoxais, incômodos, que foram arrebatadoramente provocados por esse filme. Nada do que ele retrata é novidade para as mulheres. Mas nos ver expostas a tantas violências simultâneas, em um curtíssimo intervalo de tempo, provou que só toleramos tanto sofrimento porque somos homeopaticamente submetidas a essas agressões em nosso cotidiano.

É como um conta-gotas que pinga seu conteúdo lentamente em um copo. Não tão secretamente, e sinceramente, desejo que transborde para mais – para todas! – mulheres. Que todo esse líquido viscoso e podre, que nos corrói por dentro e por fora, possa em breve, extravasar completamente com toda sua potência.


*Bruna Martins Costa é advogada e pesquisadora sobre temas ligados à violência, encarceramento, saúde mental e gênero. Feminista e escritora [sempre em formação].

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