Em entrevista ao “Cuidar do Futuro”, segunda temporada do podcast “Narrando Utopias”, Fernanda Vicari fala sobre suas vivências enquanto mulher negra com deficiência

Durante o mês de março, o Portal Catarinas em parceria com o Prosa, grupo de pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), entrevistou quatro mulheres com deficiência para o podcast “Narrando Utopias”, com o objetivo de refletir sobre a organização do cuidado e pensar em possibilidades para transformação das desigualdades que perpassam a temática.

A organização do cuidado tem sido compreendida pelas mulheres feministas com deficiência como questão central para construção da autonomia das pessoas com deficiência. Inspiradas na ética do cuidado, essas mulheres têm intersecionado gênero e deficiência para pensar um futuro no qual a organização do cuidado não esteja centrada na mulher, mas seja uma responsabilidade coletiva.

Confira o primeiro episódio do podcast:

Para começar, vamos conhecer Fernanda Vicari, mulher negra com deficiência, de 40 anos. Ela é assistente social, ativista pelos direitos das mulheres com deficiência, presidenta da Associação Gaúcha de Distrofia Muscular (AGADIM) e fundadora do Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência. 

Portadora de distrofia muscular, em entrevista ao Catarinas, Fernanda narra que passou por um processo de agravamento da doença que fez com que a deficiência apagasse a identidade de mulher negra socialmente. “(…) as pessoas se sentem autorizadas porque a deficiência é um marcador que se sobressai sobre muitos outros. Sobre raça, sobre identidade de gênero. E tu tem que estar reforçando isso o tempo inteiro. É desgastante. É muito errado, na verdade. Desnecessário a gente precisar de mais isso”, afirma. 

Além disso, ela também fala sobre as dificuldades que encontrou no mercado de trabalho, o engajamento na militância, além de refletir sobre comportamentos nocivos direcionados a pessoas com deficiência e a necessidade de uma política pública que garanta ampla autonomia a essa população. 

CONFIRA A ENTREVISTA: 

Catarinas: Quando você descobriu a distrofia muscular?

Fernanda Vicari: Ela é uma doença genética que pode ser descoberta em diversos estágios da vida, dependendo do tipo de distrofia que tu tem. Quem observou primeiro alguma coisa, que havia algo diferente, digamos assim, foi na pré-escola. As professoras começaram a contar para a minha mãe que tinha alguma coisa de diferente. Eu caía muito. Eu caminhava na ponta do pé e eu não sorria. Então, elas começaram a apontar isso. Aí a minha mãe, desde essa idade, foi atrás de médico. E eu só tive o diagnóstico com 21 anos de idade. E isso é muito simbólico, né. Embora seja uma doença que não tem remédio, não tem cura, ela tem a possibilidade de tu ter uma maior qualidade de vida, através de algumas terapias conjuntas. Quando tem um diagnóstico tardio, tu fica na mão de pessoas que não sabem como lidar com o que tu tem, como fazer… Eu estive na mão de péssimos profissionais que fizeram péssimos tratamentos que, com certeza, incidiram para que a doença progredisse com mais rapidez.

Como você chegou à sua militância, enquanto mulher negra com deficiência? 

Eu fazia fisioterapia num espaço e uma pessoa que trabalhava lá fazia visita às pessoas que frequentavam essa associação. Como ele participava do conselho de direitos das pessoas com deficiência aqui de Canoas, ele me convidou pra ir. Na época, eu passei a utilizar a cadeira de rodas motorizada, o que também foi um divisor de águas. Passar de ambulante para passar a usar a cadeira de rodas. A forma como as pessoas me olhavam era muito perversa, sabe? Eu tive que lidar com aquilo. Ou eu usava cadeira de rodas ou ia viver trancada na minha casa pelo resto da minha vida. E quando eu comecei a participar do controle social, eu me apaixonei. Comecei a ir direto, a participar de atividades ativamente. Quando a gente tinha alguma ação de fiscalização, eu também ia. Então, assim a minha vida ficou muito imbuída naquilo ali e eu encontrei um novo sentido a partir daquele espaço. Isso foi em 2012. E aí, na sequência, em agosto desse ano, uma colega de faculdade que sabia que precisavam de uma assistente social com deficiência me indicou e eu estou nesse emprego até hoje, sabe? Esse ano faz dez anos. Em 2015 ou 2014, a gente fez um seminário de políticas públicas para mulheres com deficiência e, a partir dele, foi pensado num grupo que pudesse ser um grupo de mulheres com deficiência e eu participei da construção desse grupo. Então, a minha atuação política se dá muito nesse sentido, alimentada no controle social, que eu permaneço até hoje.

Mulher com deficiência em luta na Marcha 8M.
Fernanda Vicari e Vitória Bernardes (que também foi entrevistada para o podcast) durante Marcha do 8M. Foto: Arquivo pessoal. Descrição da imagem: Foto mostra Fernanda na cadeira de rodas ao lado de Vitória também cadeirante. Elas estão rodeadas de outras pessoas com faixas e cartazes. Fernanda veste uma blusa branca e saia azul. Vitória, ao lado, é uma mulher branca de cabelos lisos, pretos e soltos. Veste camisa azul, cachecol quadriculado azul e calça jeans. Ambas tem o símbolo do feminismo desenhado nas bochechas.

Fernanda, você se apresenta como uma mulher negra com deficiência. Quais as especificidades de ser uma mulher negra, com distrofia muscular, dentro dessa sociedade que a gente vive hoje? Sabendo que o cuidado não está organizado… 

Eu sinto que as pessoas tendem a me tirar muito isso. Elas se autorizam a me tirar uma identidade que faz tão parte de mim e que reflete tanto no que é a minha vida hoje sendo uma mulher negra, filha de um homem negro. Então, eu sempre conto que antes de eu ter a deficiência tão presente, sem ter passabilidade… Até porque eu não tenho passabilidade nenhuma. As pessoas vão me ver e vão perceber que eu tenho uma deficiência. Antes disso, eu percebia que eu era muito mais lida como uma mulher negra do que hoje.

Acho que é uma coisa muito importante o que você está falando, da intersecção desses marcadores… Você traz isso que o agravamento da doença foi como se desse uma autorização pras pessoas apagarem uma identidade que te constitui desde o momento zero, certo? 

Eu vim de uma família inter-racial, mas a gente sempre conviveu muito mais com a família da minha mãe que é uma mulher branca. Na família da minha mãe, que era predominantemente branca, eu e o meu pai sempre fomos os pretos da família, entende? Então, isso pra mim sempre foi muito óbvio. Como eu era chamada dentro da família? Eu era chamada “a neguinha”. Meu pai era chamado como? “O negão”. Isso marcou toda a minha vida. No colégio, tinha sempre só amigas negras e poucas. Porque aqui no colégio eu lembro que tinha muito poucas gurias que eram negras, gurias e guris.  Meu círculo sempre foi esse. Isso sempre existiu pra mim. Era uma realidade dada, constituída e, de repente, começam a me negar isso. Me questionarem. Isso é muito violento. Porque ninguém passou pelo que eu passei até hoje e não tem noção do quanto isso incidiu na minha vida.

Mas as pessoas se sentem autorizadas, porque a deficiência é um marcador que se sobressai sobre muitos outros. Sobre raça, sobre identidade de gênero.

E tu tem que estar reforçando isso o tempo inteiro. É desgastante. É muito errado, na verdade. Desnecessário a gente precisar de mais isso

Você acredita que ter uma estrutura familiar te permitiu chegar nos postos onde você chegou? Com a militância, com o posto profissional? 

Ah, com certeza. Muito. Eu tenho muita certeza. E sou muito grata por ter esse apoio. Porque, de certa forma, condições financeiras pra ter estudado, eu não tinha. Eu tinha poucos recursos. (…) Eu sempre pude ir pra onde eu quis e sou muito grata de não ter tido uma família que me sufocasse. Eu acho que não seria a Fernanda que sou hoje se eu tivesse tido isso. Tenho o amor da minha família, tenho o cuidado, mas eu sempre tive também o “Vai lá, Fernanda! Tu quer ir? Vai lá. Pode meter a cara. Se quebrar a cara, depois a gente está aqui também”. Eu trabalho há dez anos no espaço, eu atendo pessoas com deficiência e eu escuto muitas histórias contrárias a isso. De muita superproteção, de muita tutela por parte das famílias sobre essas pessoas e o quanto se inviabiliza com que eles tenham uma vida com mais possibilidades, o quanto eu percebo eles sendo tolhidos das suas vontades, dos seus desejos.

Me parece que tem muita relação com ter autonomia. Como você enxerga a autonomia?

A autonomia tem relação com podermos fazer as nossas escolhas. A autonomia que eu tive foi exatamente do dia que eu decidi fazer a faculdade. Minha mãe foi lá comigo, fez a inscrição e eu estudava numa faculdade longe daqui. Eu pegava três conduções, dois ônibus e um trem. A única coisa que ela falou pra mim foi: “Tem certeza?”. E eu disse: “Tenho”. “Então tá”. Eu chegava em casa, às vezes, com dois graus de noite. Mas eu ia estudar. Eu tinha a autonomia de saber que eu ia chegar em casa e ela estava me esperando. Eu ia descer do ônibus, ela estava ali, não importava a hora que fosse. Isso fala muito sobre o conceito de autonomia que as pessoas têm, que é de não depender, de não precisar de ninguém. Eu não conseguiria sair de casa se eu não tivesse a minha mãe que lavava a minha roupa. A autonomia da gente também perpassa por outras questões. A gente fala muito sobre isso. Quem são as mulheres que precisam estar em casa pra que tu possa estar na rua? Quando as pessoas conseguirem, de alguma forma, se dar conta que precisam de ajuda, de apoio… E acho que naturalizar a necessidade de apoio, a necessidade de ajuda é urgente na nossa sociedade. As coisas ficariam muito mais leves pra todo mundo. Ficaria mais leve pra mim, que vou precisar. Ficaria leve pra ti, que poderia me ajudar. E está tudo bem uma pessoa precisar da outra.

Até porque se a gente for falar na questão da autonomia, ela está ligada à interdependência: o quanto nós, seres humanos, dependemos de outro, sabe? Naturalizar o cuidado é urgente para a autonomia. 

Como você chegou no local atual de gerenciamento do próprio cuidado? 

Eu acho que eu fui criando estratégias. Como eu sempre gostei muito de estar com pessoas, comecei a pensar: “Bom, Fernanda, o que que tu faz agora?”. É uma questão também bastante interna, sabe? Mas hoje já consigo racionalizar ela a partir dessa ótica do cuidado, de como também tem relações de interdependência. Mas, no começo, eu tive que fazer escolhas. Ou eu ia só trabalhar e ficava nessa vida ou eu podia ter uma vida além disso. Eu posso viajar. Eu só preciso me organizar. Tenho que pensar: vou ficar em hotel tal, tem acessibilidade? Eu vou nisso, vou naquilo… Então, assim, eu fui, porque aquilo começou a se tornar tão bom, tão maravilhoso, que eu fui abrindo concessões. E não quer dizer que não tenha sido sofrido para mim.

Pode contar um pouco mais sobre esse processo? 

A primeira vez que eu tive que pedir para alguém me ajudar no banheiro eu quase morri. Vontade de me rasgar por dentro de ter que pedir uma coisa que eu sempre fiz de forma natural. Eu uso o [exemplo do] banheiro porque eu acho que é muito emblemático, mas outras pessoas podem falar de outras coisas. Aquilo que tu faz na primeira vez te dói. Aí tu faz a segunda vez, te dói um pouquinho menos. Na terceira, menos. Quando tu vê, tu naturalizou aquilo. Realmente, o benefício é muito maior do que aqueles dois segundos de vergonha, de receio. Então, vou para os benefícios, porque eu também tenho que viver a minha vida. Mas não é uma coisa fácil de forma alguma. É muito difícil. Eu tenho várias amigas que não conseguem ultrapassar isso. 

Além de naturalizar, como transformar a questão do cuidado em uma questão de saúde pública?

Se a gente for pensar no acesso ao trabalho, no acesso à universidade – menos de 1% das pessoas com deficiência estão nas universidades – isso vai totalmente ao encontro de a gente ter uma política do cuidado. Muitas dessas pessoas não estão nesses espaços que também são os espaços políticos, espaços do controle social, exatamente por essa questão. Uma vez que o cuidado é direcionado para a família, a família também tem seus limites. (…) Uma vez que a gente tiver uma política pública de cuidado, pensada de forma equânime, com critérios bem estabelecidos, isso perpassa por muitos degraus políticos. Que não fosse uma moeda de troca. Que não fosse  uma política assistencialista, mas que realmente contemplasse a manutenção da vida daquele indivíduo.

Fernanda Vicari. Foto: Arquivo pessoal. Descrição da imagem: Foto na vertical mostra Fernanda de corpo inteiro, na cadeira de rodas. Ela está com as pernas cruzadas e usa um vestido verde estampado, sem mangas, e um colar.

E como ela deveria ser exatamente? 

Que ela não desse só conta da manutenção da vida. Mas disso e do que mais te faz feliz, o que mais te move. Porque o que move alguém pode ser totalmente diferente do que me move. Que estipulasse critérios bem pensados, longe do capacitismo. Para além dessa sociedade capacitista que vai entender como política do cuidado levar ao médico, para a terapia ou para cuidar dentro de casa. A gente quer fazer muito mais do que isso. Pessoas querem fazer mais do que isso. Quando a gente fala na política do cuidado ela vai incidir diretamente pelo número de mulheres que vivem em situação de violência. Isso é muito urgente. Isso é muito necessário. 

O quão distantes estamos de ter políticas públicas mais efetivas para pessoas com deficiência?

Uma coisa que a gente sempre discute é que o Brasil tem uma ampla legislação quando se trata de pessoas com deficiência. Legislação não falta. O que falta na legislação é que ela seja realmente efetivada. E isso, com certeza, passa pela construção de políticas públicas. Se pensa naquela construção política, na construção daquela lei, mas às vezes é deixado muito de lado como efetivar ela. Se a gente for pegar um retrospecto dos últimos anos, desde o golpe até agora, a gente só teve retrocesso em relação às políticas para pessoas com deficiência.

Quando a gente fala de autonomia para pessoas com deficiência e organização do cuidado… Qual o futuro que você sonha para você e todas as outras pessoas com deficiência?

De uma forma meio utópica, que a gente não precisasse dormir pensando: “Se amanhã acontecer alguma coisa com o meu principal cuidador, o que que vai acontecer comigo?”. Isso é muito dolorido. É muito cruel viver isso. Às vezes tu tenta não pensar muito sobre, mas também se faz necessário pensar sobre. Eu fico muito angustiada porque minha mãe já é idosa e a gente não tem muitos recursos. Eu não teria como pagar um cuidador. E tu fica no limbo. E esse limbo que eu vivo é o limbo de muitas outras mulheres. E isso é muito cruel. Eu percebo que embora a gente possa pensar na questão da interdependência, do cuidado como algo inerente a todos, de forma comunitária, a gente precisa de políticas públicas que deem conta disso. Que deem conta de a gente poder viver, trabalhar, estudar, pra gente poder vivenciar as coisas que a gente deseja. Políticas públicas para que não sobrecarregue ainda mais as mulheres e, novamente, a família com a organização do cuidado, ou seja, o Estado sendo responsabilizado por isso.

Este projeto faz parte de Narremos a Utopia, uma iniciativa do Inspiratorio.org para imaginar futuros feministas, interseccionais e inspiradores.

Confira a audiodescrição do primeiro episódio do nosso podcast:

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