Eu e muitas outras advogadas, juristas e cientistas jurídicas temos dito o quanto a legislação é voltada para reforçar os privilégios dos homens, principalmente quando pensamos em relações afetivas e familiares.

Quando estamos falando em crimes sexuais, inicialmente eram considerados contra os costumes, contra a honra, e só recentemente o crime de estupro está incluído dentre os crimes da “liberdade sexual”. Mas liberdade sexual de quem? Quem possui liberdade sexual na nossa sociedade.

O crime de estupro, previsto no código penal brasileiro,  trata de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça a ter conjunção carnal”, ou seja, a violência faz parte do tipo penal que não se admite a figura do crime culposo, aquele sem intenção.

Quem comete estupro usa da violência para praticar o ato sexual, pois não há consentimento.

No caso em questão, da influencer Mariana Ferrar , o julgamento foi realizado por quatro homens que não só julgaram a conduta de uma mulher, mas a humilharam e a constrangeram, mais uma vez, outra vez, ainda mais violentamente. Neste caso, as mulheres são duplamente julgadas, quando estão nos lugares públicos, nos quais não existe segurança para as mulheres andarem, circularem ou se divertirem livremente.

Assim, não há “liberdade sexual” para as mulheres no Brasil, e ainda mais em Santa Catarina. Além de um estado extremamente conservador, aqui há lugares reservados para as mulheres: serem submissas ou se adequarem à conduta dos homens que estão no poder.

Um estado liderado neste momento por uma mulher não nos orgulha. Um estado em que uma ex-aluna usa do conhecimento de sua professora para depois voltar-se contra ela, expor sua conduta e seu posicionamento para depois se eleger deputada, não nos orgulha. Não nos orgulha ainda os números de feminicídio em Santa Catarina.

Mas o que nos orgulha é que temos sim um movimento feminista muito ativo e rápido na tomada de suas posições diante de casos como esse que estamos lidando hoje. E a cada dia, a cada semana estamos nos insurgindo e lidando com casos que nos insultam, nos envergonham e nos fazem pedir para parar o mundo que nós queremos descer.

Estou ligada a diferentes grupos feministas, na academia e fora dela, e diante do julgamento ocorrido na capital catarinense que inocentou um estuprador que se utilizou de substância entorpecente para violentar uma mulher em uma balada casa noturna de beach club. Localizado em um bairro da capital em que pessoas de diferentes lugares do Brasil e do mundo vivenciam um mundo da fantasia em que tudo é permitido, o qual foi projetado para pessoas de elite terem segurança e uma boa vida. Mas segurança para quem?

O bairro se transformou em lugar de reiterados crimes dos mais variados formatos e que transforma em vítimas muitas vezes pessoas não abastadas e por outro lado, inocenta as mesmas as pessoas de elite que tem condições de comprar imóveis que ultrapassam a cifra dos milhões, ou tem condições de pagar aluguéis exorbitantes e ainda de comprar garrafas de champanhe que custam quase o ano de trabalho de uma pessoa comum.

Experienciar esse mundo de desigualdades é o que as pessoas buscam na ilha da magia? Eu sinceramente acredito que não, mas infelizmente não sou unanimidade.

O estuprador do julgamento esdrúxulo foi inocentado por “estupro culposo”, figura inexistente como tipo penal. Além de não ter sido penalizado na esfera judicial, também não sofreu o julgamento moral e social que sofreu a vítima. Nesse caso foi a jovem Mariana que sofreu desde o dia do estupro a amargura de ter denunciado uma pessoa rica e influente.

O estuprador, homem branco de elite, utilizou de suas relações pessoais e de seu dinheiro para financiar sua defesa e suas relações foram imprescindíveis para um julgamento em que uma vítima é inocentada, pois os quatro homens consentiram que não houve violência em um crime que a violência é seu próprio cerne.

Não houve intenção em um estupro? Mas um ato sexual não consentido não é um ato sexual e sim um crime. O crime de estupro. Como um crime que subentende a violência pode ocorrer na forma culposa? Até quando iremos presenciar e vivenciar meninas e mulheres sendo julgadas por estarem no espaço público, por usarem as roupas que querem, por viverem e existirem? Morrerem e serem violentadas por não aceitarem o fim de relacionamentos e serem obrigadas a se submeter a relações violentas?

Até quando precisaremos todas as semanas intervir diante de declarações, julgamentos e posições que discriminam e oprimem as mulheres diante do seu ser e estar no mundo?

Acredito que ainda não estamos próximas de vivenciar dias melhores para meninas e mulheres neste estado e nessa cidade, mas acredito que um mundo melhor só será possível se continuarmos atentas, vigilantes e organizadas.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

Palavras-chave:
  • Claudia Regina Nichnig

    Claudia Regina Nichnig é historiadora, advogada e doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarin...

Últimas