“Ô abre alas que as mulheres vão passar: sou feminista não posso negar”. Foi assim com o corpo a avançar em marcha que cerca de cinco mil manifestantes ocuparam as avenidas da capital catarinense, fechando o trânsito, no fim de tarde e início da noite dessa segunda-feira (9). Pela primeira vez, não houve presença da Polícia Militar na organização do fluxo de veículos, o que tornou ainda mais desafiadora e simbólica a ocupação dos territórios centrais pelas manifestantes do 8M Greve Internacional de Mulheres. É o terceiro ano de marcha desde 2017, quando mulheres combativas do Brasil e de vários países aderiram ao movimento. 

Depois de quase seis horas de programação, envolvendo oficinas, rodas de conversa, apresentações político-culturais, tendas temáticas e exposições, a Batucada Feminista da Marcha Mundial de Mulheres (MMM) aqueceu os tambores da concentração para a marcha, por volta das 18h. Toda a instalação do 8M ocorreu no Miramar, monumento que mantém os pilares de um restaurante que ficava sobre o mar, antes do aterro da baía. 

Logo na saída da marcha, as integrantes do Bloco Cores Aidê nos aguardavam no caminho com seus tambores e dança a contagiar as marchantes. A alguns metros nos esperava também o bloco Africatarina com o enredo deste carnaval que traz no refrão o sonoro “Ele não” ao abordar a ocupação dos espaços da cidade pela população de rua, e o repúdio ao fascismo policial e governamental.

Foto: Alice Sima

Na linha de frente da marcha, manifestantes com deficiência, mulheres negras, trans, travestis, lésbicas, bissexuais, moradoras de rua, mães, gordas, e tantas outras identidades que marcam a pluralidade do 8M Greve Internacional de Mulheres. “Estamos aqui representando também. Nós buscamos o direito de ir e vir, direito ao nosso corpo, à reprodução, direito à liberdade, queremos ocupar todos os espaços que as mulheres têm direito”, afirmou Ingrid Medina, mulher com deficiência visual que seguia a marcha acompanhada de uma integrante da Comissão de Acessibilidade do 8M. 

Foto: Alice Sima

Com uma tatuagem do movimento “Não é não!” aplicada na testa, Aline Salles do Movimento Nacional da População de Rua Santa Catarina (MNPR-SC), nos contou que a violência sexual é frequente contra as mulheres que vivem nas ruas. Ela também denunciou a abordagem truculenta das forças policiais. “Nossa luta é por políticas públicas, pela garantia dos nossos espaços. A violência policial é o que mais acontece nas ruas, não há guarda municipal feminina, apanhamos dos homens. Queremos nossos direitos, somos mulheres também”, afirmou.

Na vanguarda da marcha, as manifestantes traziam a faixa “Viver com dignidade e liberdade: corpo, trabalho e território”, tema do 8M Florianópolis deste ano que condensa os pontos de convergência entre as lutas das mulheres, apontando para as relações entre violência econômica e feminicida na hierarquização dos corpos considerados inferiores por uma sociedade desigual, machista e racista. 

“O tema é potente porque é simples, abraça as demandas das diversas formas de ser mulher que existem. Neste ano, vejo que o 8M aprofundou mais o debate sobre essas diversas formas de ser e estar no mundo como mulher. E, em sua simplicidade e amplitude, o tema aborda isso”, explicou Carolina Dionísio da Comissão de Comunicação do 8M. 

Pelo segundo ano, Clair Castilhos, a primeira vereadora mulher de Florianópolis, também ocupou o seu espaço junto às manifestantes do 8M, conduzida pelas filhas numa cadeira de rodas à frente da faixa. “É mais um dia entre muitos que virão até que se concretize o ‘fora Bolsonaro’, até que acabe o machismo e o feminicídio, até que se consiga a legalização do aborto, até que se consiga a completa libertação dos corpos das mulheres, tanto no trabalho quanto na vida sexual e reprodutiva”, afirmou Clair em entrevista durante a transmissão que fizemos.

As palavras de ordem manifestavam as principais pautas das mulheres: o fim da violência, a ocupação dos espaços públicos, o direito ao livre exercício da sexualidade, o direito ao aborto legal, seguro e gratuito, e o repúdio ao fascismo representado pelo governo Bolsonaro. “Sou feminista e não me calo: eu grito fora, fora, fora Bolsonaro”. O repúdio ao presidente da república esteve presente em quase toda a marcha, mostrando que entre outros pontos, essa é uma pauta de convergência que une as manifestantes de diversas frentes de luta. 

“É muita gente na rua. Apesar do sofrimento e dos retrocessos as mulheres trazem a alegria para a luta. Não tem para o governo Bolsonaro, as mulheres vão derrubá-lo”, bradou a jornalista Raquel Wandelli.


“A pauta que trago às ruas é a busca pelo respeito às mulheres e abaixo o Bolsonaro, esse governo fascista”, afirmou a psicóloga Thaís Furtado.

Já para Maria Torres, estudante de história da Udesc, a marcha é um espaço onde é possível, também, passar valores para a sua filha Agnes, de 5 anos. Enquanto caminhavam, Agnes sendo carregada nos ombros da mãe e das amigas que ajudavam, era visível a empolgação da criança ao repetir as palavras de ordem. que eram entoadas.

Pernaltas, bicicleteiras, rappers, palhaças e capoeiristas organizadas em coletivos de mulheres também marcaram presença no ato/Foto: Alice Sima

Foram mais de duas horas de manifestação durante um trajeto de cerca de dois quilômetros até voltar ao ponto inicial, o Monumento Miramar. “Chegar aqui ao fim da marcha é dizer para as mulheres que nós precisamos continuar na luta, na resistência, é a nossa resistência que vai modificar a nossa condição de vida. Temos que dar fim a esse governo misógino, racista, que incentiva a cada dia que as mulheres sofram violência, machismo, homofobia, lesbofobia e transfobia. É preciso dar um basta, é a marcha contra a morte de muitas por força do machismo, da violência policial, de gênero e da violência social. As que não puderam vir hoje que se solidarizem com a gente, que estejam atentas, venham para a luta, que denunciem, que nos procurem, que não estejam sozinhas, pois sozinhas somos muito vulneráveis, precisamos de ajuda sempre. Estaremos o ano todo em processo de resistência para que não tenhamos nenhuma a menos”, manifestou Vanda Piñedo do Movimento Negro Unificado (MNU). 

Vanda Piñedo ao lado de Izze Madalena (esquerda) e Luciana Freitas/Foto: Alice Sima

Depois da caminhada, o fôlego de parte das manifestantes que continuaram a cantar e dançar junto com o Africatarina demonstrou o entusiasmo gerado pela marcha. “Dá uma esperança, principalmente porque tem muita juventude engajada neste movimento pelo feminismo e contra o fascismo. A nossa esperança é  a juventude junto com a gente fazendo acontecer”, afirmou a historiadora Marlene de Fáveri. 

Mariana Franco, mulher trans, presidenta União Nacional LGBT (UNA) de Santa Catarina e deputada suplente em SC, falou conosco sobre a resposta de apoio da população por onde a marcha passou. “Não tem explicação a realização de um ato como esse esse aqui em Florianópolis. Em todo o trajeto da marcha as pessoas respeitaram a nossa manifestação. Vimos as pessoas nos prédios acenando pra gente, as mulheres cantando nas sacadas das suas casas, então isso é o feminismo, é revolução, é pluralidade. Eu espero que o dia de hoje continue nos próximos anos, principalmente porque é um furor de emancipação das mulheres. Com certeza muitas mulheres que viram a gente nas ruas vão participar dos próximos atos e isso é libertador. Nada mais lindo do que a libertação de um corpo das amarras que a sociedade coloca”, afirmou. 

 Iara Miranda, do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Santa Catarina (Sinte), também compartilhou do sentimento de Mariana ao final da marcha. “Foi lindo, foi uma marcha para mostrar à essa cidade que estamos na luta, que não vão nos calar, que a gente quer nossos corpos livres. Não tivemos um policiamento, um acompanhamento, fizemos tudo, fechamos as ruas, acolhemos as pessoas que foram se aproximando, fomos abraçadas pela cidade”, expressou a sindicalista.

Africatarina continuou a a apresentação após a marcha/Foto: Alice Sima

A marcha arrematou uma semana de atividades e mais de dois meses de discussões para a construção do 8M 2020. “A programação não termina hoje, durante a semana teremos ações do projeto Acorda Maria que leva o debate sobre os direitos das mulheres a alunas e alunos do Instituto Federal de Santa Catarina”, informou Íris Gonçalves, integrante do 8M. 

Para além do 8 de março, o movimento 8M segue em construção e com presença em eventos políticos durante todo o ano. 


Uma programação política

A programação que antecedeu a marcha teve início às 13h, formada por oficinas, apresentações musicais e teatrais, tendas temáticas, exposições e rodas de conversa. As organizadoras buscaram criar espaços de discussão (rodas de conversa) com uma ampla diversidade de temas, tentando dar conta da diversidade de pautas e de subjetividades que compõem não só o movimento 8M SC, mas a sociedade catarinense e brasileira como um todo.

A descriminalização e legalização do aborto, a humanização do parto e redes de apoio às mulheres mães, as demandas e resistências das mulheres negras em vários espaços da sociedade, a luta por democracia e por mais mulheres na política, a resistência e as violências que pessoas gordas, não binárias ou trans enfrentam na sociedade, entre outros temas ligados à temática central deste ano, foram colocados em evidência nas diversas falas durante a tarde. 

Mesa redonda, gorda e pesada/Foto: Karol Braga.

A discussão sobre gordofobia trouxe a relação do corpo e território a partir da discussão sobre os espaços onde é possível para as mulheres gordas e trans ocuparem e circularem. “Gordofobia é quando nós não cabemos nas cadeiras das salas de aula, nos bancos de ônibus, nos lugares onde a maioria de vocês senta e pode estar. Gordofobia é ser chamada de desleixada e ser lida como preguiçosa, por ser gorda”, disse uma das ativistas presentes na roda.

“Quando naturalizamos e reproduzimos falas como ‘você é linda’ direcionada às meninas, e ‘você é inteligente’, ‘você é corajoso’, direcionada aos meninos, estamos demonstrando para as crianças o que valorizamos nelas. Isso constrói a ideia de que a valorização das mulheres está ligada à sua beleza física, e isso se torna um imperativo na vida delas, depois de adultas. Precisamos desnaturalizar isso, esse tipo de ‘elogio’ direcionado às mulheres, pois isso nos impõe uma obrigação de seguir determinados padrões de beleza impostos que estão totalmente ligados à gordofobia”, explica Juliana Dreher, arquiteta e ativista do movimento contra a gordofobia.

Roda “Precisamos falar sobre aborto” debateu a luta pelo abortamento legal, seguro e gratuito/Foto: Paula Guimarães

“Não temos resposta. No Brasil, mencionar as opções seguras de interromper uma gestação, isto é, sem correr risco de problemas de saúde, já é crime. As mulheres não têm a quem recorrer, não são amparadas judicialmente e nem socialmente caso não desejem ser mães e acabem engravidando. Por isso, precisamos lutar pela descriminalização e legalização do aborto em todos os casos, por aborto seguro, livre e gratuito a todas. Isso é reconhecer nosso direito à liberdade e à autonomia dos nossos corpos”, respondeu uma das ativistas ao ser perguntada por uma mulher argentina sobre a solução oferecida pelo governo brasileiro à situação do abortamento inseguro. 

Pensar sobre a formação de redes para garantir um cuidado coletivo às crianças foi uma das temáticas abordadas pelas doulas que compõem a Frente de Doulas de SC, que falaram sobre humanização do parto e maternidade. “É preciso que a gente pense e também aja, nessa sociedade, para que as mães possam estar nos espaços. Uma vez por semana, por exemplo, cada pessoa que não é mãe pode se responsabilizar pelo filho ou filha de uma amiga, para que essa mãe possa sair, estudar, fazer algo que ela gosta. Isso também é ação feminista”, disse uma das ativistas.

Roda de Conversa sobre parto humanizado e maternidade com a Frente de Doulas de SC/Foto: Morgani Guzzo

A elaboração de políticas públicas para mulheres passa pela mudança da nossa representatividade na política institucional, como abordou a roda “violência de gênero na política”. Conforme apontou Elenira Vilela do Sinasefe (Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação), o Brasil tem menos mulheres na política que o Afeganistão, o que representa um grave obstáculo à democracia de gênero. “Precisamos garantir o espaço político para a população negra, indígena e para as mulheres. Mas quais mulheres? Nem todas lutam pelas nossas pautas, precisamos de mulheres que discutam nossas pautas e façam um debate interseccional na elaboração dos projetos. Esses espaços políticos são entendidos como não nossos, queremos ocupar para uma construção ousada e radicalizada de democracia”, afirmou Fanny Spina, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).

Roda de conversa: Violência política de gênero/Foto: Morgani Guzzo.

A ação feminista se faz com escuta ativa e, mais que isso, com ação atenta. Isso foi o que as mulheres negras reivindicaram na roda sobre a questão racial. Ao enfocarem os diversos espaços onde elas são resistência, como únicas mulheres negras em cargos de gestão, nas pós-graduações, entre outros, e, ainda, as profissões e tipos de trabalho onde elas continuam sendo maioria, especialmente em trabalhos que não são valorizados socialmente, elas demonstraram que a sua luta nem sempre consegue ser englobada pelo feminismo branco, hegemônico. “Quando as mulheres lutaram para poderem trabalhar fora, por exemplo, quem vocês acham que foram fazer o trabalho em suas casas para que elas saíssem? As mulheres negras!”, questiona uma das componentes da roda. 

Roda de Conversa: Mulheres Negras/Foto: Morgani Guzzo

Nesse sentido, Vanda Piñedo destaca: “É preciso que a gente entenda história, que a gente leia história, que a branquitude saia do seu lugar de privilégio de estar ali, de não ser interrogada, de não ser questionada. Porque nós somos sempre questionadas, por que estamos, o que queremos, como pensamos, por que fazemos. Não precisamos mais, temos legitimidade para estar onde estamos. Por isso, pra mim, o feminismo ainda não nos entende como mulheres negras, de luta, de resistência, de axé, de terreiro, batuqueiras, parteiras, rezadeira, benzedeiras, ainda não nos contempla, ele ainda é muito pequeno pra nós. É um processo que precisa ser recuperado, é um processo que precisa ser, por esse espaço, entendido, a nossa dimensão, a nossa grandeza e a nossa resistência”. 

A tarde de programação integrou oficinas de marcenaria para mulheres, de criação poética e pintura corporal, de bonecas abayomis e turbantes, e acessibilidade pré-marcha. As participantes puderam acessar ainda o brechó anticapitalista, no qual as mulheres poderiam levar roupas para fazer trocas, a tenda para aplicação do stencil com a identidade do 8M nas camisetas, o espaço recreativo para crianças e as tendas de movimentos sociais.

Além das apresentações já mencionadas, passaram pelo palco cultural do 8M os grupos político-artísticos Orquidália, Samba das Yabas, Madalenas na luta e Apocalypse Cùier. Merece destaque a exposição “Extraordinárias: mulheres que revolucionaram o Brasil”, de Duda Porto de Souza e Aryane Cararo, sob curadoria de Guilhermina Cunha, realizada pelo Sindprevs/SC (Sindicato dos Trabalhadores em Saúde e Previdência do Serviço Público Federal em Santa Catarina) e Marcha Mundial de Mulheres (MMM).

Atualizada às 9h39 de 11 de março.

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