Co-autoria de Ana L. López Villegas
“Te fuiste para la escuela
y te encontré en el forense…
Te quieren matar de noche Llorona
y quieren matarte de día …
Te matan los delicuentes Llorona
y te matan los policías.
Que paren los feminicidios Llorona
y empiece a aplicar justicia …
Que paren los feminicidios Llorona
y empiece a aplicar justicia!
(Trecho extraído da versão adaptada da música La Llorona, da Banda Snowapple)
A música popular mexicana La llorona conhecida mundialmente na voz potente da cantora Chavela Vargas ganhou nova versão este ano. A adaptação foi feita pela banda holandesa Snowapple (composta por três mulheres) que trocou os versos de dor e luto de uma mãe que perdeu os filhos para versos de insegurança, feminicídio e justiça. Uma das integrantes da banda, a mexicana Cinthya Martínez, fala de como a canção representa o cenário hostil qual vivemos as mulheres no México hoje: “eu sou mexicana e sofro com o medo cotidiano de ser mulher”[1].
Assim como essa iniciativa, temos visto brotar outras expressões artísticas – culturais e políticas que se somam aos esforços no combate à violência feminicida e à impunidade. Desde distintas vozes e atores sociais têm se pautado a necessidade de erradicar a cultura misógina e sexista que atravessa todos os campos da vida social e que se instala nos nossos corpos de mulheres.
A irrupção feminista: todas as mulheres contra todas as violências
Este ano a sociedade mexicana conviveu com escrachos, marchas, protestos e mobilizações protagonizados por coletivos feministas, ativistas e feministas autônomas e independentes. Logo após as mobilizações e marchas nas cores verdes e lilás do #8M ganhou a cena pública o movimento surgido das redes sociais Metoo México[2].
A primeira hashtag #MetooEscritoresMexicanos contou com denúncias anônimas de escritoras e poetas referidas a abusos cometidos por seus colegas de trabalho contra elas. Em pouco tempo, mais mulheres – profissionais de outras áreas: cinema, teatro, jornalismo, universidade e política – aderiram à campanha no twitter, criando novas contas virtuais relatando as violências sofridas e delatando os agressores/abusadores.
Com esse movimento foi possível dar visibilidade à sociabilidade sexista que encarnam as relações hierárquicas, pois enquanto as mulheres carregam as marcas (emocionais e físicas) das agressões mantidas pelo silencio e muitas delas tendo que conviver com seu agressor, eles continuavam e continuam gozando de privilégios e prestígio no mesmo ramo profissional que elas, e reproduzindo mais abusos.
Cabe situar que as violações cometidas nos ambientes de trabalho ou universitários, tem se examinado a partir da “relação íntima dos envolvidos” – onde sabemos que geralmente se “normalizam” ou se “naturalizam” as desavenças ou brigas entre casais, não sendo problematizadas as relações de poder que o agressor ou abusador retroalimenta e/ou se utiliza para sujeitar e castigar as mulheres na esfera pública, onde se misturam violências simbólicas, físicas e emocionais e/ou patrimoniais (econômicas e financeiras).
O movimento metoo, portanto, foi a possibilidade dar nomes às violências machistas por meio de escrachos e denúncias anônimas – estas que extrapolam o âmbito privado das relações sociais de gênero. Porém, apesar da força coletiva gerada por essa onda de denúncias nas redes sociais, o debate promovido pelos meios de comunicação tradicionais (conservadores e sexistas) cumpriram com a medicação patriarcal de frear as mulheres.
Ao canalizar o debate, o que estes meios fizeram foi confrontar as formas com quais o movimento foi construído: as denúncias. O anonimato das mesmas foi duramente condenado por vozes opositoras ao metoo (homens e mulheres, com visibilidade midiática e com certo prestigio acadêmico). Com isso, o conjunto de violências que vieram à tona foram retiradas do centro do debate e deslegitimadas no processo que durou semanas. A mensagem transmitida às mulheres foi de que as formas de denunciar as violências machistas “não seriam essas”.
Com o triste suicídio do músico Armando Vega Gil, a mobilização ganhou um enorme refluxo, pois o baixista da banda de rock mexicano Botellita de Jerez (auge na década de 80) apareceu na lista de denúncias. Ele foi acusado de ter cometido abuso sexual de uma jovem de 13 anos quando supostamente ele tinha 50 anos.
Horas antes do corpo do músico ter sido encontrado em sua casa, ele divulgou na sua conta twitter, uma carta declarando-se inocente da acusação e de que a decisão (do suicídio) estava baseada numa vontade livre e pessoal, desvinculando-a com a denúncia. A partir disso, os escrachos e as denúncias foram esvaziados de conteúdo político.
Essa experiência sinalizou limites no uso das redes sociais para intervenções na realidade concreta. No entanto, a avaliação do metoo resultou positiva, uma vez que muitas mulheres puderam romper com os silêncios. Desde nossas dores, nossos silêncios, nossas feridas, nossas vidas foi possível converter o espaço virtual em espaços de diálogos, reflexões e experiências. Espaços que a cada dia são mais coletivos e que nos tem nutrido de força e luta. Já não nos podem frear!
As manifestações realizadas em agosto deste mesmo ano na Cidade do México, foi um claro exemplo da potência feminista no México hoje. Os protestos #NoMeCuidanMeViolan teve origem no caso de uma jovem de 17 anos, que foi estuprada por quatro policiais próximo a sua casa, abordada na vizinhança quando voltava de noite pelos policias. O caso foi levado ao Ministério Público e os policias não sofreram sanções e nem afastamento, apesar das câmeras de segurança das ruas registrarem os acontecimentos.
Um mês antes do episódio, uma outra mulher já tinha registrado estupro por dois policias em outro bairro da cidade, como no caso anterior os autores das violações permaneceram impunes. Os abusos sexuais cometidos pelos policiais na Cidade do México são provas de que hoje vivemos na mais completa insegurança.
A raiva e indignação das mulheres foram canalizadas para as ruas. A radicalidade das ações foi a forma encontrada por elas para confrontar o espiral de violências que hoje estamos imersas. No dia 12 de agosto que ficou conhecido como Brilhantina Rosa. Logo após o vídeo da entrevista do secretário de segurança pública Jesús Orta ter viralizado nas redes sociais. Pois, Orta no momento dos protestos, saiu da procuradoria para falar dos procedimentos adotados no caso do estupro coletivo cometido a estudante pelos policiais e foi nesse momento que manifestantes cobriram o secretário com pintura rosa.
Após os feitos do dia, a prefeita Claudia Sheinbaum, recém eleita pelo partido Morena, emitiu uma declaração pública desaprovando as ações coletivas e taxando-as de provocações. No mesmo comunicado chegou a dizer que seriam abertos processos judiciais a danos causados aos patrimônios (pinturas e danos em edifícios públicos e privados) e que não haveria impunidade às responsáveis.
Poucos dias depois, como resposta a prefeita, as feministas voltaram a ocupar as ruas e com maior força: as pinturas, pichações e purpurinas rosas e verdes se multiplicaram pelas cidades, havendo confrontação direta com policias. As multicores e as frases colocadas no monumento El Ángel de la Independencia, um dos mais importantes do México, situado no centro da cidade, na avenida Reforma converteu-se no símbolo da Brilhantina Rosa. No centro do monumento detrás do leão, as feministas deixaram um aviso: México Feminicida.
As mulheres citadinas[3] divulgaram um comunicado as autoridades: “que não se desvirtue os objetivos dos protestos que estão centrados no combate a violência de gênero”. A criminalização das manifestações foi lida como um tiro no pé – pois com menos de um ano de governo – mais uma vez a agenda de gênero não faz parte das prioridades do governo. Além disso, a postura da prefeita reforça os estigmas e estereótipos das feministas como feminazis, corroborando para novos e mais ataques à população feminina, já que de acordo com as feministas organizadoras das marchas houve um aumento significativo de cyber ataques as militantes que fazem parte de coletivas e redes feministas, após os atos.
Contudo, mais uma vez – nós mulheres – ouvimos dos veículos de comunicação e de uma parcela da sociedade: “que essas não são as formas”. Mas quais seriam as formas para gestionar tanta dor, fúria, perdas, medo e impunidade? Hoje a luta de todas as mulheres contra todas as violências no México se ampliou: somos muitas, somos jovens, adultas, meninas e plurais. Viemos de contextos e histórias de vida diversas que não queremos contá-las com mais violências. VivasNosQueremos!
Ni perdón! Ni olvido!
As palavras nem o perdão e nem o esquecimento (tradução do espanhol) tem sido o grito e a força que une os familiares das vítimas na busca por: verdade, justiça e reparação. Conforme vimos no episódio anterior, a impunidade tem provocado desconfiança e repúdio as instituições públicas estatais. Em diversas ocasiões nos diálogos promovidos por ativistas e feministas, a justiça que conhecemos hoje tem sido nomeada por muitas como justiça patriarcal. Pois as experiências e relatos das vítimas e familiares nas procuradorias e ministérios públicos tem sido desastrosos, além de desgastante.
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Numa iniciativa recente do novo governo promovida no mês de agosto deste ano, o 1º Fórum Pela Pacificação e Reconciliação Nacional teve como foco a violência estrutural do contexto atual. O presidente Andrés Manuel Lopez Obrador reafirmou seu compromisso com as vítimas (como o fez em campanha eleitoral), no entanto, fez um apelo ao conjunto de atores sociais: sim ao perdão e não ao esquecimento dos crimes cometidos. No entanto, este tipo de discurso do presidente transfere às vítimas (diretas e indiretas) uma carga simbólica e emocional de difícil conciliação, pois são elas que sofrem a cada busca, a cada violência institucional, a cada ausência de resposta, a cada ano sem castigo ao(s) feminicida(s).
A mãe da jovem universitária assassinada pelo namorado na Universidade Nacional Autônoma de México, em maio de 2016, teve que enfrentar-se ao longo caminho à justiça e à verdade. Pois apesar das marcas de agressão no corpo da jovem e do enforcamento com o fio do telefone de uma cabine telefônica, as autoridades negaram as circunstâncias de feminicídio para abertura de protocolo diferenciado por razões de gênero, além disso, declararam publicamente que o caso tratou-se de suicídio, chegaram a vazar informações sigilosas de uso de drogas ilícitas da jovem.
Rapidamente as opiniões publicas se voltaram à difamação da vítimas, tecendo assim, através das instituições uma trama perversa, onde foram feitas manobras de resguardar a imagem da universidade, no lugar da vítima de assassinato.
No entanto, a verdade, bem a justiça vieram a tona em outubro deste ano. Após o julgamento, o namorado da vítima foi condenado pelo feminicídio e terá que cumprir 45 anos de prisão. Logo após o resultado do julgamento, a mãe da vítima saiu às ruas unindo-se ao contingente de ativistas que acompanhavam do lado de fora da procuradoria e declarou: Niperdón!Niolvido!NiUnaMás!
Na última semana de novembro, com as manifestações do #25N mais uma vez as mulheres (ativista, feministas, familiares das vítimas) saíram as ruas. Uma mãe desabafa e nos comunica a indignação e o mal-estar vivido com perda de sua filha e a impunidade do caso: “nesta cidade (Cidade do México) assassinam nossas filhas dentro e fora das escolas. E se nos veem com raiva – como chingados[4] – não vamos estar com raiva. Eu quero queimar tudo, pois mataram a minha filha!” – na sua fala acusa um professor universitário de assassinar a sua filha com ajuda de alunos. E faz um apelo as feministas:
“Necessito-as companheiras, porque sozinha eu não consigo, necessito-as companheiras”.
As ruas e as noites também são nossas: a autodefesa feminista
A artista e feminista Itzel Sánchez Martínez, militante do coletivo Ação Direta Autogestiva (ADA), na entrevista ao Portal Catarinas nos compartilha sua experiência junto às mulheres (meninas, jovens e adultas) nas oficinas de autodefesa realizadas por ela.
A autodefesa feminista pode ser entendida por um conjunto de expressões estéticas, simbólicas, físicas e mentais, que contribuem para o autocuidado e para integralidade das mulheres. De acordo com Itzel, a busca da autodefesa feminista tem sido cada vez maior pelas mulheres mais jovens, devido a insegurança e o crescente medo no contexto que nos rodeia (seja nas ruas, seja nas escolas, seja nas universidades).
Na proposta defendida e multiplicada por Itzel, a autodefesa feminista não é somente a defesa ou reação diante de um ataque ou abuso que podemos enfrentar caminhando pelas ruas (pelo fato de sermos mulheres), “a autodefesa é uma estratégia que tem atravessado os diferentes feminismos. É uma estratégia, um plano, uma forma de ação que tem sustentado mecanismos próprios de autodefesa das mulheres”. Para ela, o vínculo entre autodefesa e feminismos tem permitido “a sistematização da experiência e permitido visualizar quais estratégias têm sido usadas historicamente e isso tem sido muito importante para nós”.
A autodefesa feminista também se vincula ao cuidado, “pois aprendemos a cuidar de nós individualmente, mas sobretudo coletivamente, construindo espaços. Envolve um processo de cura, pois o patriarcado tem nos golpeado profundamente e temos feridas. A cura não é o perdão, é cura. É viver feliz, porque as cicatrizes estão aí e a autodefesa pode curá-las”.
“Quando estamos na oficina de autodefesa, furiosas e com raiva, a estratégia tem sido sobreviver a esse mundo, pois é uma maneira de reagir, pois nós temos que construir bem-estar” – afirma Itzel. A autodefesa feminista pode ser lida como “o início de uma apropriação: do seu corpo e da sua vida” – o que ela chamou de autodeterminação das mulheres.
As técnicas utilizadas, são misturadas com a luta, a arte, teatro e com educação popular. Para ela, a potência da autodefesa feminista tem sido mostrar para as mulheres que existem mais opções, nesse sentido, “é muito mais que reagir a um golpe ou atacar, passa por transformar nossos medos em diversão, a partir do lúdico e dos cuidados e autocuidados”. Nas oficinas Iztel busca habilitar reflexões sobre alguns temas: amor romântico, violências, amizades através do diálogo e trocas de experiências entre as participantes.
A artista reivindica a autodefesa feminista como um lugar de vida, de bem-estar e de encontros. “Vimos que muitas mães que estão buscando suas/seus filhas/os desaparecidas/os começam a fazer performance e a performance é o que menos importa, pois começam a relacionar-se com a vida de outra maneira, porque é uma forma de sobrevivência que surge quando nos levaram tudo”.
As formas de criação de estratégias articuladas entre mulheres, sem dúvida, tem sido nossa defesa e ao mesmo tempo um desafio constante de superação do lugar que ocupamos hoje nessa sociedade. A luta de mulheres tem crescido nos distintos campos ligando trajetórias e feminismos e tem sido a aposta de erradicar a violência feminicida no país.
[1] Fala resgatada na entrevista concedida a mexico.com.
[2] Originalmente #Metoo (eu também tradução do inglês) ficou conhecido em 2017, como a campanha que retratou a sujeição de atrizes por meio de agressões e assédios (verbais e sexuais) em Hollywood, onde o produtor de cinema Harvey Weinstein encabeçou as denúncias.
[3] Citadinas faz referência as mulheres moradoras e procedentes de cidades urbanas, neste caso nos referimos as moradoras da Cidade do México, capital do país.
[4] Expressão popular que pode variar o sentido, neste caso foi usado como alívio ou catarse em uma situação frustrante.
*Ana é socióloga, nascida em Edomex, um dos estados mais violentos do México. Mestranda em sociologia no Instituto de Ciências Sociais e Humanidades (ICSyH/BUAP), desenvolve a pesquisa sobre feminicídio e trabalho, incorporando a perspectiva de gênero e feminista ao debate acadêmico.
**Nicole é mestre em Serviço Social, feminista, latinoamericanista, doutoranda em Sociologia no Instituto de Ciências Sociais e Humanidades (ICSyH/BUAP). Atualmente desenvolve produção acadêmica com temas vinculados: gênero, feminismos e espacialidades
Esse é o último capítulo da série Violência feminicida no México.
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