O Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu, nessa terça-feira (14), que o médico não pode denunciar pacientes por aborto. A corte anulou provas de um processo pelo crime de aborto, enviadas pelo médico que prestou atendimento, que também foi quem denunciou a mulher. O STJ concluiu que o sigilo profissional entre a paciente e o médico deveria ter sido mantido entre eles, apenas confirmando o que o Código de Ética da categoria já diz.
O caso é de uma mulher que, grávida de 16 semanas, procurou atendimento médico após passar mal. O médico que prestou atendimento suspeitou que a mulher havia tomado pílula abortiva e denunciou a paciente à polícia. O profissional também enviou o prontuário da paciente e foi testemunha no processo. Com base na acusação, o Ministério Público denunciou a mulher pelo crime de provocar aborto em si mesma ao tribunal do júri, que pode ter uma pena de até três anos.
Ao julgar um recurso da defesa, os ministros do STJ entenderam que a participação do médico na acusação invalidou as provas. Por isso, compreendeu que a ação penal deve ser trancada.
Para os ministros, a legislação penal e o Código de Ética Médica impedem os profissionais de revelarem detalhes sobre a saúde de seus pacientes. Em entrevista ao Catarinas em 2021, o ex-presidente e atual secretário-geral do Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (CRM-SC), Daniel Knabben Ortellado, destacou que o sigilo médico é um dos pilares da medicina.
“Desde a época de Hipócrates, o sigilo é muito importante. Tanto que no Código de Ética Médica, que é um Código que diz o que o médico pode fazer e o que o médico não pode fazer, tem um capítulo exclusivo, o 9, com sete artigos que falam exclusivamente sobre o sigilo profissional. Isso demonstra a importância do sigilo na atividade médica”, explicou Ortellado.
Apesar disso, de acordo com Ana Rita Souza Prata, defensora pública de São Paulo, a maior parte das ações penais contra mulheres acusadas de provocarem um autoaborto, analisadas pela Defensoria Pública, entre 2017 e 2021, foram abertas após denúncias dos ou com contribuição dos serviços de saúde.
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Também em entrevista ao Catarinas em 2021, a advogada, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), Mariana Prandini, apontou que ao denunciar uma pessoa pelo crime de abortamento, o médico não está cumprindo o seu papel como profissional, mas está se colocando na posição de quem julga, violentando e maltratando em função da possível causa do aborto.
“Ao fazer a denúncia, é o próprio profissional quem está violando o dever e, em última instância, cometendo um crime. Existe no próprio Código Penal o crime de violação de sigilo profissional”, argumentou Prandini.
Em 2018, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) tomou uma decisão semelhante ao STJ. O TJ-SP aceitou o argumento da Defensoria Pública de São Paulo de que provas utilizadas para incriminar uma jovem de 21 anos, além de insuficientes, eram ilícitas, porque foram obtidas por meio de denúncia de uma médica que a atendeu, violando o sigilo profissional. O pedido da Defensoria integrou um conjunto de 30 habeas corpus requisitados em favor de mulheres acusadas do mesmo crime.
“Médico não é polícia. Médico é um cuidador que testemunha a palavra ao cuidar das dores. Médico não pode denunciar uma mulher à polícia”, resumiu a antropóloga Debora Diniz nas redes sociais após decisão do STJ.
Dentro deste julgamento, o STJ não analisou a constitucionalidade do crime de aborto. Essa questão está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), após uma ação do PSOL que pede a liberação do aborto até 12 semanas de gestação. Ainda não há data para o julgamento, mas a relatora do caso, Rosa Weber, disse que pretende apresentar o voto e pautar a ação antes da aposentadoria em outubro.