Quando era mais nova, sempre assistia Big Brother Brasil (BBB). Depois de um tempo, passei a ser a pessoa que julgava quem assistia BBB. Ok, é um reality que um monte de gente estranha é colocada numa casa pra ganhar um prêmio. Cada um tem seu jeito, sua história, suas origens, seus valores. Este ano, depois de muito tempo, eu acompanhei o BBB. De verdade. Assisti às edições payperview, li sobre o que andava acontecendo na casa diariamente. E é uma sensação estranha. É, na verdade, como se fosse uma casa de boneca cheia de personagens. Só que ao invés de você comandar o que cada um fala ou faz, você apenas assiste. Você realmente está “cuidando da vida dos outros”.

No meio de todas essas pessoas diferentes, teve uma que me chamou atenção: Gleici. Ela é negra, mora na periferia de Rio Branco, no Acre, estuda Psicologia em uma universidade particular porque tem bolsa, trabalha desde os 12 anos, viu o pai ser assassinado em sua frente quando era mais jovem, precisou segurar as pontas quando a mãe teve câncer e precisou fazer o tratamento. Mesmo com as dificuldades, a Gleici sempre participou de ações, manifestações e grupos de apoio aos direitos humanos e as mulheres. A Gleici é como milhares de brasileiros espalhados por essas cinco regiões. E talvez a gente não tenha a menor noção de que existem pessoas com essas histórias porque a gente quase vive numa bolha. Parece difícil sair dela. A maioria vive dentro de uma determinada classe, e o que acontece pra baixo, ou pra cima, a gente nem faz ideia.

Durante o programa tiveram diversas pessoas que acharam que podiam passar por cima da Gleici. Talvez por, no início, ela ser uma pessoa quieta. Talvez por ser mulher. Talvez por ser jovem. Talvez por ser negra. Talvez por ela ser mulher, jovem e negra. Ou por ser parecer pequena e frágil. Duvidaram da capacidade de um cara bonito realmente se interessar por ela. Apostaram que ela não tinha o intelecto que outros tinham ali. Quiseram dar um soco na cara dela porque ela simplesmente revidou ataques. Achavam que tinham o direito de passar por cima dela, dar de dedo na cara dela. Questionaram a forma o jeito dela por não ser “de berço”. A Gleici nunca passou por cima dos seus valores e dos seus ideais dentro do BBB. Em uma casa que, desde sempre, reúne pessoas rasas, de plástico, a Gleici era absolutamente de verdade.

Durante o programa, a Gleici falou esporadicamente sobre o que passou na infância e a dificuldade financeira da sua família. Ela não queria se mostrar fraca, nem que ninguém tivesse pena. Um outro participante da casa, o Kaysar, refugiado sírio, também era um dos fortes candidatos a ganhar o programa. O objetivo dele: tirar a família da guerra. Isso causou uma comoção enorme em quase todo mundo que assistiu ao programa. Cada um entra ali pra vencer com um objetivo. Gleici e Kaysar entraram com os mesmos objetivos: ajudar e dar uma condição melhor pra suas famílias. Kaysar usou isso como argumento em basicamente todos os momentos. A Gleici mal comentou sobre isso. Enquanto o primeiro fazia questão de mostrar, sempre, e até gerar um sentimento de pena nas pessoas, a Gleici queria justamente o contrário, que ninguém sentisse pena dela. E por isso mal comentava sobre o assunto, principalmente no ao vivo.

Só que os comentários que vi por aí eram sempre em favor do Kaysar, e não da Gleici. As pessoas abraçavam o Kaysar, que quer tirar a família da guerra. Mas e a guerra que é morar na periferia de uma das capitais mais violentas do Brasil? Por que o sentimento de compaixão existia para o Kaysar, e o que a Gleici viveu/vive é mimimi? Passado o programa, as eliminações, as alianças, a convivência, hoje teve a final. Ambos estavam na disputa real pelo 1,5 milhões de reais.

A Gleici ganhou! E foi um alívio e uma satisfação tão grande pra mim ver isso, e ter ajudado nisso (sim, eu votei pra ela ganhar. muito!). Porque hoje quem ganha não é só a Gleici. É o Acre. O Brasil. A mulher. O negro. O índio. O pobre. Hoje, quem ganha, é a brasileira que nunca é vista. A brasileira que é esquecida. Que fica nos cantos. Que não tem voz, muito menos oportunidade. Hoje ganha quem, apesar de tudo, não deixa de sonhar. O Brasil tem muitas gleicis por aí: pessoas, mulheres, que querem mudar a sua vida, e a vida da sua família. E, no meio de tanta coisa ruim acontecendo, falta esperança. Hoje a Gleici é a esperança de um Brasil que muita gente não faz ideia que existe. Vai ter representatividade sim!

*Recém jornalista. Talvez escritora. Futura designer. Coleciona incertezas, cadernetas e vontade de mudar o mundo. Pensa mais do que escuta e escuta menos do que lê. Seu bloco de notas é quase uma extensão do seu corpo e está sempre problematizando por aí.

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