O discurso após a saída do Ministro da Justiça apesar de parecer sem sentido foi certeiro para o seu público mais ferrenho
Após o pedido público de demissão de Sérgio Moro, Bolsonaro realizou um pronunciamento, na tarde do mesmo dia (24 de abril), em resposta às graves acusações feitas pelo ex-ministro. Na companhia da maioria dos seus ministros, em ato formal, fez um discurso de quase 45 minutos, um tempo inusual para as falas do presidente. Rapidamente, as redes sociais se encheram de memes e comentários jocosos sobre o teor e formato do pronunciamento. Fragmentado e aparentemente sem nexo, o discurso de Bolsonaro utilizou-se de eventos e polêmicas anteriores de seu até então curto, porém intenso, mandato, além de conversas de bastidores, expressões de sentimentos até então não compartilhados com o público e uma série de narrativas de conversas anteriores com o então ministro.
Acompanho diversas redes bolsonaristas há certo tempo (de grupos de whatsapps a sites, canais de youtube, jornais online entre outros) e sei que, apesar de ter sido recebido com tom risível para a maioria, seu pronunciamento estava recheado de gatilhos para a sua base mais ferrenha. Faz referências diretas a valores da sua base e a discussões das últimas semanas que circularam nos grupos bolsonaristas.
Houve o sempre presente enaltecimento de valores familiares, do quais, lógico, há uma predisposição a perdoar qualquer possível ‘deslize’, como a falsificação de documentos da sogra, ou o período da prisão da avó de sua esposa, Michelle.
Também faz menção às sempre afirmadas honestidade, humildade, fidelidade e, claro, a resistência aos supostos constantes ataques sofridos pela imprensa. Mas, além destes, destaco aqui alguns exemplos de referências que podem talvez ter parecido aleatórias, mas que dialogam diretamente com seus apoiadores chamados “raiz” ou núcleo duro.
A) O primeiro encontro na lanchonete: essa cena, evocada logo no início do discurso, menciona o primeiro encontro entre o então “humilde deputado Bolsonaro” (em suas próprias palavras) e o “herói nacional, Juiz Moro”. Embora, à primeira vista, pareça apenas uma história pessoal, em que o presidente se emociona muito, dialoga diretamente com a ideia dos rejeitados que um dia serão exaltados. Vários grupos bolsonaristas, em especial os Incels (diminutivo da expressão “involuntary celibates”, ou celibatários involuntários) se identificam com esse lugar, de injustamente menosprezados. E coloca o Moro como esse injusto rejeitador, direcionando a raiva da rejeição a ele, a mesma que alguns homens sentem em relação às mulheres.
Nas redes, muitos que não estão na bolha bolsonarista questionaram e ridicularizam o tom queixoso de Bolsonaro nesse e em outros trechos do discurso. Mas essa é uma ótima estratégia de reposicionar Moro nessa história, do lugar de herói para o de ingrato, oportunista e traidor, que será a tônica do ataque a partir de agora. Para entender a “carta de amor desesperada” que Bolsonaro fez para Moro temos que pensar que uma grande base bolsonarista raiz é de rejeitados/ressentidos que sonham com o dia em que serão exaltados, tal como o próprio presidente foi (um deputado tantas vezes ridicularizado e sem importância que chegou a ser o mandatário mais importante do país e casou com “uma bela e correta mulher/troféu”).
Essa base tem grande apelo entre os Incels, que, como mencionado acima, direcionam a raiva às mulheres pela sua rejeição, mas também entre aqueles que, por motivos diversos, foram excluídos das instituições e dos lugares de prestígio, embora creiam que são merecedores das glórias todas (“o mundo me deve um reconhecimento que não está me dando”). Aqueles que acreditam que as universidades os reconheceriam se não fossem antros comunistas (como Weintraub, que não por acaso foi citado nominalmente ontem), que teriam status e dinheiro se não fosse a corrupção, que seriam os chefes se não estivéssemos tomados pelos valores errados, que creditam seu fracasso à ascensão de minorias, entre outros.
Esses injustiçados veem na figura do Bolsonaro uma certa redenção e um espelhismo. Quando Moro rejeita Bolsonaro na lanchonete, se alinha a todos aqueles e aquelas e a todas as instituições que malvada e injustamente não sabem reconhecer o tesouro que está à sua frente e que, portanto, merece agora sua ira.
E, Bolsonaro, ao se colocar no lugar de rejeitado, consegue a empatia de todos aqueles que também se sentem injustamente à margem de uma “sociedade adoecida que não sabe reconhecer seu valor”.
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B) A menção ao aborto: Bolsonaro relembra uma antiga indicação de Ilona Szabó a um conselho, a pedido de Moro, e afirma que, entre outros textos, ela publicou um ensaio defendendo o aborto. Parece aleatório, mas esse foi o grande tema da semana nos grupos conservadores: a votação do supremo sobre a inclusão da epidemia de Zika no rol de motivos para abortos legalizados no Brasil. Uma grande parte da base bolsonarista se assenta sobre as pautas morais e, é claro, é contra tal medida e estava em plena campanha nos seus grupos e canais nesse momento. Foi muito oportuno trazer o assunto à tona para atiçar seu público cativo.
C) Piscina aquecida e cartões corporativos: as várias menções a quanto o presidente economiza o dinheiro público é um dos grandes motes bolsonaristas. Ele não seria como um político qualquer, ‘gastão’, mas pelo contrário, se esforça por criar uma estética de homem simples/tosco, que divulga fotos comendo milho diretamente sobre a mesa, sem usar talheres ou guardanapos, e, principalmente, que supostamente fez uma campanha presidencial inteiramente de voluntários, sem gastar nada. É considerado a honestidade e a austeridade em pessoa.
D) Armamentismo e filho galã: essas foram bem diretas: por um lado, lembram à sua base que Moro não era tão bolsonarista assim, sendo um oportunista e não um defensor ‘raiz’. E por outro, reacende o lugar machista de masculinidade que sempre tenta reafirmar para si e seus filhos (armas+masculinidade/comedor) e que tem tanto apelo nos grupos bolsonaristas ‘raíz’.
E) Tacógrafos e taxímetros: houve uma longa menção ao desmonte provocado no Inmetro durante sua gestão. Em suas palavras, o presidente “implodiu” a instituição após as tentativas de um maior controle sobre os equipamentos utilizados nas bombas de abastecimento, nos taxis e caminhões. É importante lembrar que uma grande base de apoio do bolsonarismo se encontra justamente nessas profissões, antes mesmo da sua eleição e essa menção foi quase um lembrete da fidelidade do presidente com a sua base, que se arriscou para evitar maiores gastos e controle sobre essa mão de obra específica.
F) A Santa Ceia: e essa, creio que a mais significativa, deve ter dialogado profundamente com os cristãos. Ele praticamente reconstruiu a imagem da Última Ceia de Cristo, anunciando que seria traído às 11h, junto aos seus apóstolos/ministros.
Ele, o Messias, que deu o sangue (na facada) para nos salvar, acabou por chamar Moro de Judas e se colocou de novo como o salvador Jesus, traído e vilipendiado por um dos seus.
O que me parece mais curioso sobre a cena evocada duas vezes no pronunciamento presidencial do dia 24/04, do café da manhã com os ministros, é que dificilmente ela de fato aconteceu. Ele começa seu discurso com ela e a retoma quase ao final, com detalhes do que disse. A cena é muito poderosa, porque, como dito, faz uma correlação com a Santa Ceia de Cristo, em que ele avisa aos seus discípulos que prevê uma traição.
A imagem, que, mais uma vez, coloca Jair como Jesus, o Messias que se sacrifica para nos salvar (a primeira vez, dando seu sangue na facada e agora enfrentando um judas entre os seus), dialoga com um imaginário muito fomentado pelas bases bolsonaristas. Sacraliza o mito e o reafirma como aquele que deve ser seguido, mesmo que os caminhos pareçam tortuosos. O perseguido, vilipendiado, crucificado, mas altivo e que merece ser defendido.
No entanto, sua narrativa é muito pouco crível e por isso desconfio que tenha sido, se não inteira, quase inteiramente inventada. Oras, o Moro e ele já vinham discutindo sua saída há um tempo e esse fato foi avisado desde o dia anterior aos jornais. O próprio Bolsonaro, em um ato de enfrentamento, exonerou o Valeixo no mesmo dia. Nesse café da manhã com seus ministros/apóstolos, já não incluía o Moro entre os presentes.
Não faria sentido nenhum o presidente dizer que seria traído por alguém, que não diria quem, mas sabia que logo mais viria o golpe (oras, o próprio Moro anunciou o horário da coletiva!). A evocação (por duas vezes) da cena, muito bem construída para o impacto, mas pouco plausível, mostra que sua menção não foi fortuita e nem uma anedota qualquer. Era, a meu ver, um dos gatilhos mais fortes para tratar com as suas bases.
Como pode ser visto pelos exemplos acima, a maioria das frases que parecem soltas eram verdadeiros tiros a questões bem certeiras dos grupos bolsonaristas que, claro, parecem meio obtusas e sem sentido para quem preza pela coerência e pela ética. Mas falam fundo com suas bases. (Aliás, essa tática já é bem conhecida do seu filho Carlos).
As tentativas de reaproximação com suas bases de apoio, mexidas pelas denúncias de Moro, estavam lá e podem dar a tônica de quais serão as campanhas fomentadas nos próximos dias nas bases bolsonaristas. Se elas vão funcionar, bem, aí já é outra história…
*Júlia Costa é professora universitária e mestre e doutora em literatura. Atualmente, pesquisa as relações performáticas entre o dito “real” e o ficcional na literatura, no teatro e na cena política.