Por meio de uma ADPF, organizações expõem como o Sistema de Saúde não cumpre a legislação relacionada ao aborto legal em caso de estupro. Ministro Edson Fachin pede esclarecimentos ao Ministério da Saúde.
Quatro organizações da área da saúde e bioética protocolaram, na última quarta-feira (29), uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo que o documento “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento”, publicado pelo Ministério da Saúde, seja suspenso liminarmente por apresentar pontos que contrariam direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal. São proponentes da ação a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e a Rede Unida.
Com a suspensão liminar do manual, as organizações querem que o STF tome uma decisão emergencial e temporária até que ocorra o julgamento. “Nós entendemos que não dá pra esperar um julgamento final, de um processo que demora, e por isso pedimos que o STF decida liminarmente, porque em poucos dias mulheres estarão em situações agravadas no Brasil”, posiciona-se Elda Bussiguer, presidenta da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB).
A ADPF requer que o STF se manifeste em relação ao descumprimento do direito ao aborto legal às vítimas de violação sexual, pelo Estado Brasileiro, por meio do Ministério da Saúde. Pede ainda que todos os atos dos Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário que restrinjam o acesso ao aborto legal sejam declarados inconstitucionais. A ação cita como exemplo o caso da juíza que induziu uma menina de 10 anos a não acessar seu direito, em Santa Catarina.
“A nossa ADPF não está pedindo nada relacionado à extensão do direito ao aborto. Nós estamos apenas pedindo que o STF se manifeste em relação ao descumprimento dos preceitos fundamentais do aborto legal, que são antigos”, destaca Elda.
Desde 1940, é possível realizar a interrupção da gravidez em casos de violação sexual e risco à vida da mulher. O Código Penal em seu artigo 128 não prevê nenhum limite gestacional que restrinja o aborto legal.
Nesta sexta-feira, dia 1º de julho, o ministro Edson Fachin, relator do documento no STF, deu prazo de cinco dias para que o presidente Jair Bolsonaro e o Ministério da Saúde prestem informações sobre o tema. “O quadro narrado pelas requerentes é bastante grave e parece apontar para um padrão de violação sistemática do direito das mulheres”, declarou o ministro. Um esclarecimento de informações é considerado um procedimento comum em ações como essa.
A presidente da SBB aponta que se sem o manual do Ministério da Saúde a situação do acesso ao aborto legal no Brasil já é preocupante e que isso pode piorar quando a nota técnica entrar em vigor. Segundo Elda, o manual tem como objetivo a criminalização do aborto.
“O documento é todo no sentindo de criminalizar o aborto. As próprias manifestações do Ministro da Saúde e a audiência pública montada, que não segue os preceitos legais e constitucionais, foram feitas em sentindo de validar esse projeto do atual governo, por via do Ministério da Saúde, de criminalização do aborto, incluindo os procedimentos legais”, declara.
Outras organizações podem apoiar a ADPF
Para apoiar a ADPF, outras organizações podem se colocar como amicus curiae, ou amigo da corte. Isso ocorre quando pessoas físicas, jurídicas, órgãos ou entidades especializadas entram como colaboradoras de um processo, para fomentar e dar subsídio ao debate. “Quanto mais instituições reforçam essa ADPF, mais chamaremos a atenção do STF, porque mostraremos a força dessa violação”, destaca Elda.
Na última terça-feira (28), uma audiência pública foi promovida pelo Ministério da Saúde para debater o manual com especialistas e sociedade civil, mas o que aconteceu de fato foi a abertura de um espaço de deslegitimação do direito e ataque aos direitos das pessoas gestantes. Doze dos vinte convidados presentes se posicionaram contrários ao aborto legal, citando argumentos de fundo religioso, sem comprovação cientifica.
Direitos violados
O instrumento da ADPF é apresentado quando há uma violação ou ameaça a um preceito fundamental causada por legislação, normas infralegais ou atos dos Poderes Públicos. Foi por meio de uma ADPF, por exemplo, que o STF despenalizou o aborto por feto anencéfalo em 2012. Já a ADPF 442, apresentada em 2017 e ainda sem julgamento, requer a descriminalização do aborto até as 12 semanas de gestação.
“Nós estamos pedindo que o STF reconheça que a situação do Sistema de Saúde público brasileiro em relação ao aborto legal tem sido ineficiente, não tem tomado as providências necessárias e que isso causa gravíssimas lesões a direitos fundamentais”, explica Elda.
Como preceitos fundamentais, a ADPF coloca que as barreiras ao aborto legal violam a dignidade humana e o direito à saúde, artigos 1º e 6º da Constituição Federal respectivamente. Além disso, o artigo 5º prevê que ao se opor ou dificultar o acesso a um procedimento garantido por lei, está em jogo o próprio respeito à legalidade.
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A ADPF também cita tratados e recomendações internacionais no âmbito de proteção dos direitos humanos que são descumpridas no Brasil. Entre eles, a Convenção Americana de Direitos Humanos, que estabelece a base regional de direitos humanos reconhecidos pelos Estados signatários.
Pelo comportamento omissivo ou comissivo que restringe o acesso ao aborto legal, entre os pontos da Convenção violados pelo Estado brasileiro estão o artigo 5º, do respeito à integridade física, psíquica e moral do ser humano; artigo 8º, de garantias judiciais para que o indivíduo seja ouvido por um juiz ou tribunal dentro de um prazo razoável; artigo 11, de respeito à honra e reconhecimento de dignidade, sendo que ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida pessoal; artigo 24, da igualdade perante a lei, sem distinções; e artigo 16, na qual os Estados-partes estão comprometidos para plena efetividade dos direitos.
A decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso Senhora Beatriz vs. El Salvador em 2013, sobre o direito à saúde da mulher na realização de aborto legal, também é lembrada. A Comissão entendeu que El Salvador não adotou políticas para salvaguardar os direitos de Beatriz e declarou que “os protocolos ou normas técnicas necessários devem ser adotados para garantir a real disponibilidade e acessibilidade aos serviços de interrupção da gravidez de acordo com as normas interamericanas aplicáveis”.
“Ainda que tenha natureza liminar, trata-se de uma decisão da Corte Interamericana no sentindo de que há um expresso dever do Estado para que se tutele o direito de mulheres terem acesso ao aborto seguro”, coloca a ADPF.
Também são apontadas violações à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra Mulher, mais conhecida como Convenção de Belém do Pará, em vigor desde 1995. O documento define, no artigo 1, por violência contra mulher “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.
“A discussão da proteção insuficiente dos direitos da mulher e meninas à realização do aborto legal é, essencialmente, uma discussão que está baseada no gênero e na atuação precária do Estado na prevenção de violência a tal gênero”, descreve a ADPF.
Como a conduta do Estado brasileiro relacionada ao aborto legal causa “morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico”, é uma violação à Convenção de Belém do Pará.
Barreiras institucionais
Conforme colocado pelo documento, o próprio Estado brasileiro estabelece barreiras para o acesso ao aborto legal e seguro, seja “pela desinformação, pela burocracia, pela necessidade de deslocamento e custeio da logística”, além do limite ao tempo gestacional delimitado pelo manual.
“O Estado Brasileiro, o Ministério da Saúde e a União não têm cumprido com o que está estabelecido na lei, que é oportunizar para que mulheres vítimas de estupro tenham um atendimento e prazo adequados, além do acolhimento necessário”, ressalta a presidenta do SBB.
A ADPF traz um contexto preocupante em relação ao acesso ao aborto legal por meninas no Brasil. A legislação do país deixa evidenteque toda relação sexual com menor de 14 anos é considerada estupro de vuneravel. Ou seja, essas meninas têm direito ao aborto, considerado mais seguro do que levar a gestação adiante e realizar o parto, por questões físicas e emocionais.
Porém, a cada 20 minutos uma menina é mãe no Brasil. Além disso, em 2021, para cada procedimento de interrupção voluntária de gestação de meninas com menos de 14 anos, 11 outros procedimentos de urgência relacionados ao abortamento caseiro ou espontâneo foram realizados pelo SUS.
“Se o governo brasileiro tivesse um trabalho educativo no sentindo de que as mulheres soubessem que elas têm direito, nós não teríamos esse quantitativo de tantas meninas que tiveram que provocar o aborto para não dar prosseguimento à gravidez. Se o Estado e os serviços fossem acolhedores, as pessoas iriam procurar o serviço. Quem não quer fazer um serviço seguro, gratuito e legal?”, questiona a presidenta da SBB.
Um dos pontos da nova edição do Manual do Aborto do Ministério da Saúde é limitar a interrupção da gravidez até 22 semanas e/ou até que o feto tenha 500 gramas. Isso não está na legislação brasileira e é interpretado como inconstitucional pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Segundo o órgão internacional, os limites gestacionais para abortamento não são baseados em evidências e afetam principalmente mulheres com deficiências cognitivas, adolescentes, jovens, mulheres com menor escolaridade, das classes mais baixas e desempregadas.
A OMS lembra que o limite gestacional impacta também as mulheres que moram afastadas das clínicas e que precisam viajar para abortar. No Brasil, apenas 114 hospitais estão habilitados para realizar o procedimento, segundo a lista oficial do Ministério da Saúde, e apenas 16% deles têm a condição de realizar a interrupção, como expôs o Mapa do Aborto Legal elaborado pela Artigo 19. Por isso, não é incomum que mulheres precisem viajar para realizar o procedimento legal, o que impacta em qual momento da gestação chegam aos hospitais.
Para a OMS, a continuação indesejada da gravidez por conta da idade gestacional “pode ser vista como incompatível com a exigência do direito internacional dos Direitos Humanos de disponibilizar o aborto quando a gravidez causa dor ou sofrimento substancial à mulher, independentemente da viabilidade da gravidez”.