A Organização das Nações Unidas (ONU) emitiu um comunicado ao Brasil sobre a perseguição às jornalistas que atuaram no caso da menina de SC e a violação dos direitos sexuais e reprodutivos das meninas no Brasil, citando também o caso do Piauí, em que uma menina de 12 anos teve o aborto legal negado por duas vezes. O comunicado foi enviado em 6 de abril deste ano e tornado público após 60 dias de prazo, sem que houvesse resposta do governo brasileiro. 

Em destaque no documento está a preocupação sobre a “intimidação de três mulheres jornalistas e defensoras de direitos humanos por cobrirem o caso de uma menina vítima de estupro, cujos direitos de saúde sexual e reprodutiva teriam sido violados”. A menção se refere às jornalistas Paula Guimarães, do Portal Catarinas, Bruna de Lara e Tatiana Dias, do The Intercept Brasil, que assinaram a reportagem ‘Suportaria ficar mais um pouquinho?”.

O comunicado destaca que a intimidação é uma violação à liberdade de expressão e aos direitos das profissionais de realizar o trabalho sem retaliação.

“Também estamos preocupados com o profundo efeito amedrontador que a investigação judicial sobre as três mulheres jornalistas que noticiaram o caso pode causar em outros trabalhadores da mídia que reportam sobre questões relacionadas a direitos humanos”, aponta o órgão.

A ONU pede que o governo indique quais medidas foram tomadas para garantir que os jornalistas no Brasil possam reportar sobre supostas violações de direitos humanos sem medo de retaliação, especialmente mulheres jornalistas que cobrem direitos de saúde sexual e reprodutiva.

No documento, que será apresentado ao Conselho de Direitos Humanos, o organismo internacional demanda que o governo indique os desdobramentos da CPI do aborto. E pede que o Brasil informe “se o estado de Santa Catarina ou qualquer outra autoridade competente pretende processar a menina e sua família, profissionais de saúde, advogados, jornalistas e outros defensores de direitos humanos que trabalharam no caso para garantir o acesso ao aborto”.

“Estamos preocupados com o fato de que, ao investigar a vida privada da vítima e as ações da equipe médica, a CPI revitimizou ainda mais a vítima e sua família e pode ter tido um efeito adverso sobre outros profissionais que fornecem acesso a direitos de saúde sexual e reprodutiva e direitos legais serviços de aborto. A CPI também pode intimidar e criminalizar jornalistas que denunciem situações de violação de direitos humanos”, ressalta o comunicado da ONU.

Recentemente, publicamos reportagem sobre o indiciamento das advogadas que atuaram no caso, Daniela Felix e Ariela Melo Rodrigues, suspeitas do crime de violação de sigilo e violação de sigilo de depoimento especial de crianças. O Ministério Público irá decidir sobre a denúncia ou o arquivamento do inquérito. 

O que a ONU pede

O comunicado é assinado pela Presidente-Relatora do Grupo De Trabalho Sobre Discriminação Contra Mulheres e Meninas, pelo Relator Especial Sobre o Direito de Todos ao Gozo do Mais Alto Padrão Possível de Saúde Física e Mental, pela Relatora Especial Para a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, pela Relatora Especial Sobre a Situação dos Defensores de Direitos Humanos, e pelo Relator Especial Sobre Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

Além de manifestar preocupação sobre o caso, apontando os direitos violados sistematicamente, a organização solicita informações do governo brasileiro sobre as ações tomadas e planos para reparação dos direitos da menina e família.

“Enquanto aguardamos uma resposta, instamos que sejam tomadas todas as medidas provisórias necessárias para pôr fim às alegadas violações e evitar que voltem a ocorrer e, no caso de as investigações apoiarem ou sugerirem que as alegações são corretas, garantir a responsabilização de qualquer pessoa responsável pelas alegadas violações”, afirmam.

Demonstrando preocupação com a violação sistemática do direito ao aborto, a ONU questiona se o governo planeja elaborar um plano de ação sobre os direitos sexuais e reprodutivos, e se pretende alterar o Código Penal e protocolos para a interrupção segura da gravidez de acordo com as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Também pede que o governo indique todas as medidas que estão sendo tomadas no Brasil para garantir que os direitos humanos de mulheres e meninas, em particular os direitos sexuais e reprodutivos, o direito à integridade física e mental e o direito à igualdade e não discriminação, sejam resguardados nos sistemas de saúde e de justiça, seguindo as garantias constitucionais e as normas internacionais de direitos humanos.

Ainda não há resposta oficial do governo

O governo brasileiro ainda não respondeu às questões apontadas como graves pelas/os relatoras/es da ONU, no prazo estipulado de 60 dias, que terminou em 6 de junho. Enviamos pedido de posicionamento sobre o comunicado aos ministérios das Relações Exteriores, da Saúde, das Mulheres, dos Direitos Humanos e da Cidadania.

O Ministério da Saúde informou que recebeu três questionamentos do Ministério das Relações Exteriores, responsável por articular as respostas do Brasil à ONU, e encaminhou as respostas relacionadas ao caso em 16 de junho.

Em relação a quais medidas o país está tomando para garantir os direitos sexuais e reprodutivos, a pasta da Saúde apontou que, no caso do combate à mortalidade materna, “diversas ações são desenvolvidas junto a universidades, instituições de pesquisas e organismos internacionais, dentre elas a formação de profissionais de saúde e a divulgação de materiais de boas práticas de assistência às meninas e mulheres”. Sobre prevenção de gravidez na adolescência, disse que trabalha na revisão da Rede Cegonha e na ampliação do acesso a contraceptivos no Sistema Único de Saúde (SUS).

O Ministério também mencionou a criação da lei de Promoção da Dignidade Menstrual e estratégias de planejamento reprodutivo e familiar e para a prevenção e eliminação dos abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde (acesse a resposta completa do Ministério da Saúde aqui).

Sobre a garantia do acesso ao aborto legal, a pasta destacou a revisão das normativas para Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do SUS, feita no início da nova gestão. “O intuito foi garantir a realização dos procedimentos relacionados ao atendimento às vítimas de violência sexual, às mulheres em risco de morte e em casos de anencefalia, conforme previsto em lei, evitando, assim, a revitimização de mulheres”, afirma.

O Ministério da Saúde também foi questionado sobre alterações no Código Penal e protocolos para a interrupção segura de gravidez, conforme recomendações da OMS. Porém, respondeu que essas questões dizem respeito ao poder executivo e que, dentro da pasta, os profissionais trabalham para seguir as recomendações da OMS nos casos de aborto legal.

“A atuação conjunta entre os poderes em todos os níveis para a proposição, formulação, implementação e monitoramento das políticas de Atenção à Saúde da Mulher é necessária para garantir às mulheres o direito à saúde em todos os ciclos de vida”, ressalta o Ministério da Saúde.

Por fim, respondeu sobre o plano de ação de saúde sexual e reprodutiva em planejamento: “o Ministério da Saúde prevê para os anos de 2023 e 2024 a elaboração e implementação de Diretrizes Nacionais para Fortalecimento dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos de Adolescentes e Jovens, por meio da Coordenação de Atenção à Saúde de Crianças e Adolescentes”.

Em nota enviada ao Catarinas em 16 de junho, o Ministério das Mulheres informou que está reunindo as informações necessárias junto às áreas técnicas da pasta e em parceria com outros ministérios que também atuam no tema, para enviar uma resposta conjunta.

“Em conjunto com o Ministério da Saúde, estamos revisando normas e protocolos de atendimento a vítimas de violência sexual e, em diálogo com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, desenvolvendo uma série de ações para aproximar as redes de proteção à infância e juventude da rede de atendimento a mulheres em situação de violência”, informa a pasta.

O Ministério das Mulheres escreveu que suas profissionais estão “atentas à criminalização e perseguição de jornalistas mulheres, em especial as que cobrem pautas sociais, de direitos humanos e igualdade de gênero e raça/etnia”.

Também entramos em contato com os Ministérios das Relações Exteriores e dos Direitos Humanos e da Cidadania, para questionar o porquê de o governo brasileiro ainda não ter respondido ao comunicado da ONU e qual o posicionamento sobre o documento, mas não obtivemos resposta até o fechamento da reportagem.

Mecanismos internacionais

Esta não é a primeira vez que o caso da menina de Santa Catarina e intimidação a profissionais envolvidos no caso chega a um órgão internacional. Em 8 março deste ano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) realizou uma audiência sobre violações de direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas no Brasil. Na ocasião, o caso da menina e a perseguição às jornalistas foram pautados.

“Observamos que a ação de autoridades, servidoras e servidores públicos, não se restringe a sonegar os direitos sexuais e reprodutivos de crianças, mas também a censurar e constranger jornalistas que cumprem o dever de garantir informação pública sobre violação de direitos humanos”, declarou, durante a audiência, a co-fundadora e diretora executiva do Catarinas, Paula Guimarães.

Após a audiência, Guimarães se encontrou também com Pedro Vaca, Relator Especial para a Liberdade de Expressão na CIDH. “Preocupam-me suas denúncias de falta de garantia para o trabalho, incluindo o sigilo de fontes”, escreveu Vaca em uma rede social ao publicar sobre o encontro.

Atualizada às 14h46 de 15 de agosto.

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  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

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