A 53ª Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) foi concluída na última sexta-feira (23) com a inclusão de novos pontos na resolução de promoção e proteção de direitos humanos. O Catarinas foi uma das 17 organizações brasileiras presentes no evento, acompanhando de perto as discussões. No capítulo de direitos humanos e prevenção da discriminação e violência contra as pessoas LGBTQIA+, foram integradas duas questões aos Estados membros: uma incentivando a produção de dados relacionados à violência; outra incitando a promoção de espaços saudáveis e amigáveis para as pessoas com diferentes orientações sexuais e/ou expressões de gênero, incluindo a família.  

Para Marcelo Ferreyra, um dos coordenadores da coalizão LGBTQIA+ e de Trabalhadoras Sexuais pelo Synergía – Initiatives for Human Rights, são dois acréscimos muito valiosos. “O relacionado com o encorajamento dos Estados em registrar os dados de violência contra as pessoas LGBTQIA+ é uma reclamação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) há muito tempo. Já o outro incentiva que cada membro proporcione ambientes sociais saudáveis onde essas pessoas possam desenvolver suas vidas, identidades e famílias. Foi muito interessante a menção feita à família”, comenta. 

A defesa das famílias formadas por pessoas LGBTQIA+ é uma luta antiga dos movimentos sociais. Anteriormente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) emitiu uma opinião consultiva onde aborda os temas em relação ao matrimônio igualitário entre pessoas do mesmo sexo, a proteção de famílias formadas por pessoas sexo-gênero dissidentes e o direito ao reconhecimento legal da identidade de gênero. Em sua declaração, no espaço reservado ao diálogo com a sociedade civil, a coalizão LGBTQIA+ pediu aos Estados que adotem e incorporem às suas leis nacionais os temas abordados no parecer consultivo. Leia a declaração conjunta da secretaria geral da OEA e da Coalizão LGBTQIA+ e Trabalhadoras Sexuais aqui.

“Chamamos os Estados a assumirem suas responsabilidades em relação aos tratados internacionais e regionais que ratificaram, principalmente os do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH)”, diz Ferreyra. Além disso, em um breve discurso da porta-voz da coalizão, também foram celebradas algumas conquistas, como a questão a descriminalização de relações sexuais consetidas entre pessoas do mesmo sexo em alguns países do Caribe no ano passado. “Também mencionamos as pessoas LGBTQIA+ migrantes, visto o aumento da pobreza, da violência e do preconceito na região. Pedimos aos governos que abordem o tema desde uma perspectiva de direitos humanos”, afirma Ferreyra. 

As crises na Nicarágua e no Haiti também entraram em foco nas discussões da assembleia anual da OEA. Os representantes aprovaram uma resolução que pede democracia na Nicarágua, assinada pelo Brasil. O documento pede pelo fim das violações de direitos humanos no regime de Daniel Ortega, pela liberação dos presos políticos, pelo respeito à liberdade religiosa e de expressão. Em relação ao Haiti, foi reconhecida a necessidade de que a OEA facilite a ajuda ao país em questões de segurança, democracia, promoção de direitos humanos e na execução de eleições livres e justas.  

Por fim, em votação presencial, a OEA elegeu quatro pessoas para compor a CIDH, órgão que recebe denúncias de violações e emite recomendações aos Estados membros. Foram eleitos Stuardo Ralón (Guatemala), para seu segundo mandato, Arif Bulkan (Guiana), Glória Monique Mees (Suriname) e Andrea Pochak (Argentina), que terão atuação entre 2024-2027. A CIDH é formada por sete membros e, juntamente com a Corte IDH – que julga casos de violações graves e sistemáticas de direitos humanos -, é uma instituição que forma a base institucional dos direitos humanos da organização, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH). 

Na avaliação de Ferreyra, as candidatas e os candidatos eleitos demonstraram ser pessoas idôneas diante do comitê de especialistas que entrevistam e qualificam as/os candidatas/os. “Para nós, as candidaturas que pleiteiam fazer parte da CIDH devem ser de pessoas qualificadas, que conheçam os direitos humanos internacionais. Neste caso, todos os candidatos eleitos têm idoneidade”, diz o ativista. Ele alerta que é necessário prestar atenção ao critério de equilíbrio necessário ao funcionamento da Comissão, que leva em conta questões de gênero, pertencimento regional e subregional. “Neste sentido, ter três comissionados do Caribe inglês desequilibra esse critério”, diz.

OEA incentiva Estados a produzirem dados sobre a violência contra pessoas LGBTQIA+
Coalizão LGBTQIA+ e de Trabalhadoras Sexuais em reunião com o Secretário Geral da OEA. Foto: Juan Manuel Herrera/OEA.

Restrição gradual da participação social na AG da OEA 

Um dos principais temas discutidos pelos representantes da sociedade civil nos bastidores e no diálogo com os chefes de delegações dos países e o Secretário Geral da OEA foi a progressiva política de exclusão e fechamento de espaços para a participação social. Diferentes coalizões e organizações que integram a OEA escreveram uma carta à secretaria geral denunciando a situação. Com a atual dinâmica, as oportunidades da sociedade civil dialogar com quem toma as decisões, os representantes estatais e integrantes da OEA diminuem consideravelmente. 

“Esse crescimento do cerceamento da nossa participação tem sido gradual nos últimos anos, mas nada se compara com este, onde até mesmo no diálogo com a sociedade civil, as coalizões que possuem mais de quarenta organizações tiveram apenas três representações presentes. Na plenária e na comissão geral, apenas uma pessoa poderia estar presente. Isso dificulta demais a possibilidade de acompanhamento das votações e de incidência política”, diz Mariana Rodrigues, doutoranda em estudos de gênero e integrante da Liga Brasileira de Lésbicas e da RedeLesbi. Ela acredita que a limitação tem motivação política. 

Mariana Rongo, mestre em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais e assessora do Programa de Fortalecimento do Espaço Democrático da Conectas Direitos Humanos, pensa que essa limitação impactou a participação da sociedade brasileira. 

“O Brasil é um importante ator nas discussões internacionais sobre defesa dos direitos humanos, e portanto, é necessário que a sociedade civil brasileira ocupe de forma efetiva esse espaço e se some aos esforços dos demais países do continente na defesa da democracia. Neste ano, tivemos uma redução da participação das entidades nos debates da Assembleia Geral por uma suposta limitação de espaço físico, o que parece ter impactado também a participação de organizações brasileiras”, afirma Rongo. 

Rodrigues, que está em sua quinta edição presencial do evento, comenta que conhece poucas representações brasileiras com atuação na Assembleia Geral, o que na sua opinião pode estar atrelado à falta de financiamento para ocupar esses espaços. Por outro lado, ela afirma que historicamente as organizações do país costumam atuar junto à Corte IDH. 

“Isso é interessante e importante, porém, por vezes, se desconhece que a Corte e a CIDH estão atreladas à OEA. Fazemos pouco uso de outros mecanismos e possibilidades de atuação, incluindo as coalizões, as Cúpulas das Américas e até as opiniões consultivas. São possibilidades de incidência política importantes e ainda pouco exploradas por muitos grupos, especialmente aqueles que se colocam em um lado mais progressista”, diz em entrevista.

Na sua primeira vez participando, a advogada e integrante do Juristas Negras, Luciana Martins, ficou surpresa com a baixa representatividade e diversidade das/os participantes da sociedade civil brasileira. “Senti muita falta de diversidade. Eu, Luciana, estava ali representando uma organização formada em sua totalidade por mulheres negras e éramos pouquíssimas naquele espaço e sem direito de fala”, diz. 

Para a jurista isso afetou negativamente as falas levadas pelas coalizões. “A temática sobre aborto foi mencionada diversas vezes, sem levar em consideração a dignidade dos corpos que gestam, e em especial, a dignidade feminina, seja ela infantil ou adulta”, afirma. 

Martins chama a atenção para o desconhecimento da sociedade civil de que o Brasil é signatário de importantes normas internacionais. Algumas são normas internas com status constitucional após sua ratificação pelo Congresso Nacional, como no caso da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. 

“Passamos por um período muito delicado para a nossa democracia nos últimos seis anos, com graves violações de direitos, digamos que a pressão por conta desses mecanismos ajudaram a nos manter nos trilhos, apesar de estagnados e com reflexos péssimos desta estagnação”, comenta Martins. 

Secretário Geral da OEA em evento com ativistas da América Latina e Caribe. Foto: Juan Manuel Herrera/OEA.

Estratégias pró e contra direitos humanos 

A participação dos grupos antidireitos na assembleia anual não é uma novidade. Algumas estratégias utilizadas pelas organizações conservadoras tampouco. Um documento lançado pela Fundación Iguales – entidade panamenha que promove a observação, a promoção e o respeito aos direitos humanos – durante o evento, ao qual o Catarinas teve acesso, destacou algumas ações prévias desses grupos com a finalidade de descredibilizar a OEA, seus órgãos, autoridades, Estados e a sociedade civil que promove os direitos humanos. 

“As estratégias dos grupos antidireitos da OEA são antigas, planejadas e diversificadas. Eles há anos buscam questionar a legitimidade do sistema e dos seus diferentes atores, tanto pessoas que compõem a CIDH, a Corte IDH, suas secretarias e escritórios, como também países, Estados, embaixadores, missões permanentes que apoiam o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. É diversificada porque não os interessa somente afetar a imagem do SIDR e sua legitimidade, mas buscar se infiltrar para destruí-lo por dentro”, explica Iván Chanis Barahona, advogado, ativista de direitos humanos e presidente da Fundación Iguales. 

Uma novidade desta vez foi a tentativa de colocar representantes dentro da CIDH, como foi o caso do candidato Pier Pigozzi, do Equador. “Houve uma tentativa de penetrar a CIDH colocando candidatos que não eram idôneos para assumir o cargo, como o caso do candidato do Equador, que ao final não foi eleito. Nós tentamos fazer o possível para manter a confiabilidade no sistema, garantindo os espaços para a sociedade civil e que a Comissão seja formada por pessoas qualificadas”, afirma Ferreyra.  

Em geral, os posicionamentos dos grupos de extrema-direita, que formam uma rede transnacional e articulada, estão baseados em três pilares principais: vida, família e liberdade. São campanhas feitas com base em fake news, discursos de ódio e ausência de ética. Narrativas que tentam construir marcos paralelos de direitos humanos, conduzidas por grandes plataformas como CitizenGo.   

Na avaliação de Barachona, o que diferencia as organizações que promovem direitos humanos desses grupos é que eles possuem mais recursos. “Mobilizar pessoas para esse evento não é tão difícil para eles como é para os grupos da sociedade civil que não contamos necessariamente com os meios adequados para atender o que nos importa, que é incidir nas Assembleias Gerais, em reuniões das Cúpulas das Américas etc”, diz. 

No entanto, mesmo que eles estejam participando cada vez mais dessas instâncias, o jurista considera que a incidência não tem sido o que esperam. “Eles estão debilitados por não terem conseguido o que querem. Os diálogos não estão monopolizados pelos discursos antidireitos. A sociedade organizada pelos direitos humanos soube se manter firme, manter os espaços, manter suas narrativas e encontrar o apoio de Estados membros e da mesma organização, que busca a nossa participação”, aponta.

O documento da Fundación Iguales recomenda algumas estratégias para as coalizões de direitos humanos, baseadas na defesa, no fortalecimento e no uso do SIDH. “Que a gente socialize o que o sistema faz, como os comunicados da CIDH e os estândares publicados pela Corte. É preciso que as pessoas se apropriem do SIDH. O indivíduo também tem que fazer parte, essa é uma estratégia que nós devemos enfatizar e não esquecer. É nossa responsabilidade e dos Estados: ao conhecer o sistema e seus benefícios para os direitos humanos, devemos promovê-lo para que mais pessoas o façam seu”, diz Barachona.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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