O que a vida pede da gente é coragem
Editorial sobre o caso da menina de onze anos a quem o direito ao aborto legal foi negado por juíza, em alinhamento à manifestação da promotora, em Santa Catarina.
“Essa menina precisa de tranquilidade e da nossa decência”. (Debora Diniz)
Deixe-me apresentar: sou Paula Guimarães, cofundadora do Portal Catarinas e atualmente diretora executiva.
Há cerca de duas semanas tive acesso ao vídeo que resultou na reportagem em parceria com o Intercept. Se no primeiro momento senti um choque paralisante ao assistir às imagens pela crueldade dos diálogos, marcada pela assimetria de poder, o que veio depois foi uma força que me mobilizou em um ritmo acelerado na produção da reportagem. Uma força baseada em dor, revolta, e ao mesmo tempo solidariedade àquela família e tantas outras que poderiam estar naquele lugar.
A garantia do direito à menina, vítima de estupro e revitimizada pelo sistema de justiça, traz um sentimento de missão cumprida, ainda que toda história tenha uma dimensão trágica pela sucessão de violações e prolongamento do sofrimento. Gravidez infantil forçada é tratada como tortura por organismos internacionais de direitos humanos.
Em tempos difíceis como os que vivemos, em que discursos reacionários têm encorajado ações como as da promotora e juíza, saber que o jornalismo impactou profundamente neste desfecho nos enche de esperança. Ao mesmo tempo nos mostra o desafio que temos pela frente, em um contexto de perseguição institucional e até mesmo governamental, às jornalistas e defensoras de direitos que fazem esse enfrentamento.
O aborto legal é um direito garantido antes mesmo da Constituição de 1988, desde o Código Penal, há 82 anos. Não há como parar no tempo, é preciso ir adiante e esse caso é paradigmático neste sentido, porque avançou sobre exigências infralegais, que não têm status de lei, e principalmente sobre o tabu da idade gestacional.
A menina chegou ao hospital com 22 semanas e dois dias de gestação, voltou pra casa no outro dia, orientada a só retornar com um alvará de autorização para o procedimento. Tinha dez anos. Ficou presa em um abrigo para não poder acessar o direito. Longe da mãe no momento que mais precisava de colo e conforto. Depois de ficar por mais de um mês no abrigo, ela retornou ao hospital, agora com onze anos. Sem autorização judicial e com 29 semanas de gestação, a ela enfim foi assegurado o direito garantido pela legislação brasileira e pelos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
A repercussão nacional e internacional do caso e seus desdobramentos, informado e interpretado de maneira séria e ética por vários veículos de jornalismo, ensejou o acionamento dos órgãos de proteção das garantias legais do Estado. Já no dia seguinte à publicação da reportagem, o Tribunal de Justiça reconsiderou sua decisão e acatou o pedido liminar de desabrigamento da menina, que anteriormente havia sido negado. Dois dias após a publicação, o Ministério Público Federal recomendou ao hospital que fizesse a interrupção sem que houvesse nenhum impedimento, fazendo-se cumprir o artigo 128 do Código Penal.
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Faça-se cumprir a lei e que os médicos não tenham medo de cuidar: o apelo feito por especialistas do campo jurídico, médico e antropológico deu ainda mais respaldo às corajosas médicas da equipe do Hospital Universitário, referência no serviço de aborto legal, e que garante o atendimento há mais tempo em Santa Catarina.
“Não é por coincidência que estamos diante de uma menina de onze anos. Ela é sim o corpinho mais frágil a ser confrontado por essa medicina que tem medo de cuidar. Nós precisamos de médicas e médicos com coragem de cumprir o seu dever. Médicas e médicos sabem como fazer um aborto com segurança. O aborto é um procedimento médico que está garantido pela Organização Mundial de Saúde como um procedimento de baixo risco. (…) É uma necessidade de saúde. (…) Nós precisamos de um judiciário que não atrapalhe o cuidado, que não intimide os médicos”, conclamou a antropóloga Debora Diniz, no final de noite da terça-feira, na Globo News, um dia antes do procedimento,
A garantia da democracia só será possível com autoridades públicas sensibilizadas e comprometidas com os direitos fundamentais e humanos. Na linha do que afirmou a antropóloga, precisamos de profissionais que cobrem dessas autoridades e as desafiem em seu poder quando é arbitrário e discriminatório, à margem da lei. Precisamos cada vez mais de um jornalismo engajado, com coragem de levar adiante denúncias como essa que movem as estruturas de uma sociedade marcada, entre outras desigualdades, pela condição social, de raça e de gênero.
Obrigada ao Intercept, especialmente às parceiras Bruna de Lara e Tatiana Dias, pela oportunidade de um trabalho colaborativo, profissional e comprometido com o campo dos direitos humanos das meninas e mulheres.
Obrigada a toda equipe do Portal Catarinas que segurou junto as pontas para que eu pudesse tocar essa reportagem.
Obrigada a vocês, leitoras e leitores que formam nossa audiência.
Importante relembrar que nosso comprometimento com a pauta dos direitos sexuais e reprodutivos é prioridade desde o lançamento do Portal e se manteve nesses seis anos de atuação. Foi de nossa autoria a cobertura exclusiva sobre o caso da menina do Espírito Santo que teve o direito legal negado em seu estado e precisou viajar com a mãe a Recife para que fosse garantido. Reportamos a operação de guerra que foi necessária para que a menina chegasse com segurança ao hospital, diante da investida de grupos fundamentalistas. Uma menina de dez anos que só queria voltar logo pra casa para jogar futebol.
Pra gente continuar nessa empreitada diante dos poderes que cometem abusos precisamos do seu apoio financeiro na nossa campanha colaborativa. Não somos um projeto, somos um portal que faz jornalismo profissional e por isso remunerado.
Apoie a gente e nos ajude a tirar debaixo do tapete casos como esse.
Pois, como nos lembrou José Henrique Torres, juiz titular da 1ª Vara do Júri de Campinas, ouvido na reportagem, parafraseando Guimarães Rosa, “a vida é assim: o que ela quer da gente é coragem”. Coragem que a mãe dessa menina manteve até o fim, na afirmação do desejo da filha — e do seu enquanto representante legal — mesmo diante de toda desumanidade que juntas sofreram.