Há cerca de uma semana fomos surpreendidas com o anúncio do exílio de uma das mais conhecidas, ativas e respeitadas escritoras brasileiras: Márcia Tiburi.

Ainda que, de lá pra cá, os acontecimentos mais desastrosos não tenham cessado de nos atropelar em nosso próprio país, acreditamos que não devemos esquecer desse fato, muito menos minimizá-lo. Ao contrário, precisamos retomá-lo com atenção, como um sintoma demasiadamente concreto e doloroso do ponto de ruptura democrática ao qual chegamos – e também do quanto ele nos afeta e nos revela.

Afinal, a contraface do exílio é um cenário no qual um ambiente de sistemática perseguição política pressiona determinados indivíduos ao afastamento e, na prática, inviabiliza o exercício da sua cidadania plena no próprio país. E isso abrange, inclusive diante dos órgãos internacionais, o chamado “autoexílio”, que se configura quando a ordem de expulsão não é oficial – ainda que se faça sentir por todos os poros.

Nesse sentido, está claro pra nós que Márcia Tiburi é uma exilada: não só porque vinha recebendo sistemáticas ameaças de morte ou porque chegou a ter sua casa invadida, mas também porque se viu no meio de uma campanha violenta e massiva de milícias midiáticas, que se dedicaram com afinco a distorcer sua falas e a incitar o ódio mais cego contra ela, a ponto de colocarem em risco inclusive a vida do público que se interessava em acompanhá-la em pequenos e grandes eventos literários.

Devemos nos perguntar, então, neste ponto: qual era, afinal, o perigo que Márcia Tiburi vinha representando, para ser alvo de tanta atenção?

Talvez não seja suficiente lembrarmos que Márcia vem publicando sistematicamente desde 2002 e que já tem uma obra que conta com quase trinta títulos e muitos milhares de exemplares vendidos. Talvez também não seja suficiente lembrar o quanto seus ensaios têm antecipado tendências políticas funestas e nos alertado enfaticamente sobre seus métodos e efeitos diretos no cenário brasileiro contemporâneo, ou do quanto alguns deles viralizaram nos últimos anos. Talvez sequer seja suficiente dizer da sua coragem em se apresentar como feminista num país em que os índices de feminicídio estão estourando; ou como uma militante antirracista, onde o estado tem aprofundado seu papel genocida da população negra; ou como anticapitalista, num momento em que a lógica do capital parece avançar e devorar tudo; ou como uma mera professora, quando a profissão é a mais caluniada e humilhada; ou como acadêmica, quando o anti-intelectualismo ganha contornos cada vez mais doentios entre nós; ou como uma figura política e uma petista, quando a política está sendo mais demonizada e o maior partido de esquerda da América Latina é insistentemente pintado como uma organização criminosa.

Talvez seja preciso, ainda, lembrar que ela é uma mulher que construiu uma verdadeira vida pública como alguém que vive da sua escrita, num lugar e num momento histórico em que isso ainda é uma louca exceção: dentro de um grupo como o nosso, com mais de seis mil integrantes de todos os lugares do Brasil, é mais do que claro o quanto nossa cultura nos pressiona para que nunca tenhamos tempo nem qualquer apoio para escrever, nem acesso a editores e canais de divulgação, nem críticos atentos ao nosso trabalho, e não por acaso menos leitores interessados no que pensamos e chegamos a dizer.

Nesse sentido, o exílio de Márcia Tiburi nos diz respeito, não só pelo que tem de novo e extraordinário, mas também pelo que tem de velho e comum: vivemos sob uma tradição longamente consolidada, na qual mulheres foram silenciadas de todas as formas. Por isso, também, nos sentimos tocadas por sua trajetória e entendemos na pele o quanto ela está perto de nós, assim como a personagem do seu último romance “Sob os pés, meu corpo inteiro”, quando nos diz: “Se eu abrir a janela, sei que devo pular dela. Movida por uma paciência que carrego há séculos como uma reserva emocional útil, percebo que sou de algum modo incapaz de desenterrar o que ficou sob o concreto armado de minha alma. Mesmo assim, como quem põe a mão em um balde de água sem tocar na lama que se sedimentou no fundo, apresento uma espécie de resumo enquanto o suor frio escorre pelas minhas costas e umedece a testa e as mãos.”

Imagem: Mulherio das Letras.

 

O texto é uma reprodução da Nota de Solidariedade a Márcia Tiburi publicada pelo Mulherio das Letras.

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