Desde que assisti ao documentário “Meu corpo, minha vida”, a música “Morango do Nordeste” toca repetidamente na minha cabeça. Além da curiosidade em saber o que levou à escolha da trilha brega, relembrar a música despertou em mim a memória afetiva da época em que o hit era sensação em todos os cantos do país. Inspirada em uma menina de cabelos vermelhos, Morango do Nordeste foi composta em 1984 por autores pernambucanos, mas fez sucesso mesmo 15 anos depois, gravada por grupos dos mais variados gêneros musicais. A popularidade da música acessa empatia e concede naturalidade a um tema, que mesmo presente no cotidiano das mulheres brasileiras, ainda é tabu na sociedade.

“Meu corpo, minha vida”, de Helena Solberg, trata do caso de aborto clandestino que comoveu o Brasil e chamou a atenção do mundo. Jandira Magdalena dos Santos, 27 anos, moradora da periferia do Rio de Janeiro, foi morta numa clínica clandestina, em agosto de 2014. Seu corpo foi encontrado carbonizado, sem as digitais e a arcada dentária, depois de uma semana de desaparecimento. Jandira foi mãe aos 15 anos, e aos 27 com duas filhas, decidiu não seguir com a terceira gravidez. Por meio de entrevistas com familiares e especialistas, o filme traz a história da jovem e de sua morte evitável como exemplo dos danos da criminalização na vida de mulheres pobres.

O próximo 28 de setembro, Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe, completa três anos do sepultamento de Jandira. O documentário é a memória de uma tragédia que poderia ter sido evitada. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que a cada dois dias uma mulher tenha um destino parecido com o da jovem no Brasil.  “A gente pode ser contra, mas não pode julgar. Não posso julgar o que você quer fazer com você. Você é dona do teu corpo, da tua vida. Eu falei pra minha filha não fazer, mas era ela que estava sentindo, era ela que iria passar por tudo. Quantas mães estão chorando como eu?”, disse a mãe de Jandira, Ângela Magdalena.

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“Ai, é amor”, refrão de Morango do Nordeste, remete à forma intensa com que Jandira vivia seus relacionamentos. “A Jad sempre foi muito alegre, gostava de barzinhos, de amigos, mas ela sempre batia muito de frente. Não era de levar desaforo pra casa, se tivesse que argumentar ela argumentava, se ela tinha que lutar por alguém ela lutava, isso era no trabalho e dentro de casa”, contou a amiga Daizi Maria.

Imagens da festa de 15 anos mostram a jovem, já grávida da primeira filha, ensaiando beijos com o namorado

O refrão é também sobre as vidas por viver de uma mulher, cuja família evangélica queria a todo custo exorcizar. O pastor da Assembleia de Deus, a mãe e a irmã idealizavam para Jandira uma vida de penitências, músicas de glória, e afirmações de amém. Mas Jandira queria experimentar o mundo sem abrir mão de sua identidade. Queria avançar sobre a sina de uma gravidez precoce e ter controle sobre sua vida.

“A Jandira, a Angela e a Joice sempre me preocuparam muito pelo volume e a fúria com que os demônios se manifestavam nelas. Eu diria, se fosse um quadro clínico patológico num hospital de emergência, que seria um caso gravíssimo. A Joyce e a Angela estabilizaram, mas a Jandira não. Ela sempre escapou”, disse o pastor Gilberto Maia.

Aos 27 anos, com expectativas de crescimento na carreira de auxiliar administrativa, não havia planos para uma gravidez. “Ela era excepcional, o pessoal falava que sem ela a empresa não andava. Poderia andar sem o diretor, mas sem ela não”, contou a colega de trabalho Jéssica.

Jandira estava grávida de três meses quando tentou a interrupção em casa com o uso de remédios. Já fraca e sob efeito de tentativas mal sucedidas, buscou uma clínica clandestina. Com R$ 4,5 mil em mãos seguiu acompanhada pelo namorado até o local indicado, no terminal rodoviário de Campo Grande, de onde foi levada pela responsável da clínica, junto com outra cliente, para o destino do qual não sairia viva. A sorte de Jandira nos leva a pensar sobre a via sacra experimentada pela maior parte das mulheres brasileiras para a qual tal quantia é uma verdadeira fortuna.

“Nós perdemos a Jandira por que o Estado brasileiro não cuida das mulheres como deveria. (..) Ela não teve nenhum acolhimento, seja por parte da igreja, da família ou do Estado que permite o funcionamento dessas situações clandestinas. Não bastasse se submeter a uma clínica clandestina que a matou, ela ainda teve o carro e o corpo incinerados. São coisas desumanas, oriundas dessa permissividade que o Brasil tem em deixar esse debate soterrado e fingir que não tem mulheres morrendo diariamente por essas práticas”, argumentou a jornalista Flávia Oliveira.

Jandira trocou mensagens com o companheiro antes do procedimento

O trecho “você só colheu o que você plantou” da trilha “Morango do Nordeste” vai ao encontro da lógica criminalizante do aborto, para a qual Jandira é culpada pela própria morte. Alude também à moralizadora sentença “engravidou tem que parir”. Mesmo que a Constituição Brasileira afirme laicidade como princípio, a moral que rege o Estado é religiosa. Entendida como dom de deus, a gravidez deve ser mantida mesmo contra a vontade da mulher. O curioso é que vozes raivosas prontas a acionar a culpa da mulher no caso de uma gravidez indesejada, sequer levam em consideração que para o pensamento religioso criminalizante, a contracepção e o uso de preservativos também são pecados. Sem falar no sexo antes do casamento, como bem lembrou o pastor ao apontar que Jandira – a ovelha perdida – foi duplamente pecadora.

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“Muito triste, especialmente porque a gente tinha contato com a família, ver grande parte da sociedade fazendo comentários depreciativos em reportagens e redes sociais, culpando Jandira da morte, da situação de não ter se prevenido da terceira gravidez”, contou o delegado responsável pelo caso, Hilton Alonso.

“Comentários maldosos, cruéis, dizendo que eu tinha culpa, que ela era uma vagabunda e tinha que morrer mesmo. Isso foi o que doeu mais (…) Minha filha não era uma vagabunda”, afirmou emocionada a mãe.

Negar a maternidade como destino fundamental da mulher tem um preço alto para mulheres como Jandira. É uma ameaça à dinâmica de violações que se sustentam na naturalização dos papeis desiguais entre homens e mulheres. As desobedientes estão fadadas à humilhação pública, à negligência no atendimento de saúde, ao cárcere, à solidão e à morte.

“A única função da criminalização é estigmatizar as mulheres que negaram o papel que a sociedade deu a elas, para que elas carreguem essa marca para o resto da vida”, assinala Pedro Abramovay, ex-secretário nacional de justiça.

Há também a morte em vida da dignidade humana de jandiras que buscam o atendimento emergencial nos hospitais, com complicações de aborto, e se transformam em casos de polícia. Mulheres que tiverem abortos espontâneos são alvos do mesmo tipo de denúncia. Poucas compartilham suas experiências, porque afirmar o aborto é assumir-se criminosa e pecadora. No pacote que fortalece o estigma há medo, julgamento, silêncio. E na base que sustenta uma lei da década de 40 incompatível com garantias constitucionais, está a negação da liberdade da mulher. Das liberdades mais preliminares.

“A questão do aborto no debate público brasileiro é tratada de maneira religiosa. Não se consegue articular um debate a favor da criminalização do aborto que não envolvam argumentos religiosos”, analisou Abramovay.

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Sobrepor a vida de um embrião a de uma mulher sob o argumento da impossibilidade de defesa de um ser em desenvolvimento é estratégia central daqueles que defendem a criminalização. “Esse é um argumento apelativo e sentimentaloide para uma questão que é seríssima e que tem que ser tratada de forma madura e adulta. (…) Não existe isso de proteger um ser indefeso, isso é um delírio. (…) O que temos que fazer é pensar nas pessoas que chegaram até aqui, que nasceram e merecem todas as condições de saúde e liberdade para viverem seu destino”, refutou a escritora Martha Medeiros.

Parece razoável que o benefício da escolha só seja acessado por quem já nasceu, como enunciou a escritora:

“Se eu não tivesse nascido, o mundo não perderia nada, minha mãe e meu pai não perderiam nada, ninguém aqui perderia nada, nem eu teria perdido nada, porque simplesmente estamos falando de algo que não aconteceu”.

Mesmo evangélica, mãe de Jandira defende o direito de escolha das mulheres

Apenas em 2015, 500 mil interromperam voluntariamente a gravidez no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) 2016, realizada pela Anis – Instituto de Bioética. O estudo indica que uma a cada cinco mulheres já fizeram pelo menos um aborto até os 40 anos, isso significa que 4,7 milhões já abortaram. No mundo, em 70% dos países o aborto é legalizado. Com forte influência do pensamento religioso, países da América Latina e do Caribe estão entre os que possuem as legislações mais restritivas. “Você não pode ter uma política de saúde determinada por um dogma religioso, isso é arcaico, é medieval”, protestou Ana Derraik, diretora do Hospital da Mulher Heloneida Studart.

“A mulher não pode fazer o que quiser ‘daquilo’ que está dentro da barriga”, esbravejou o ex-deputado federal Eduardo Cunha (PMDB/RJ), autor do projeto de lei 5069/2013 que prevê restringir o direito ao aborto legal e à pílula do dia seguinte às vítimas de estupro. O político preso por corrupção é traído pelas palavras e acaba revelando o que realmente importa na caçada contra as mulheres. O que parece ato falho, é a afirmação de um discurso “pró-vida”, incoerente em sua essência, que instrumentaliza o corpo das mulheres aproveitando-se do legado do cristianismo para capitalizar votos. No fundo, os defensores da vida precisam transformar embriões em pessoas para manter as mulheres desumanizadas. Utilizam o jogo retórico em defesa “daquele”, com o objetivo de transformar a mulher “naquilo”.

“O que se faz com mulheres que não querem ter um filho e que são levadas a usar clínicas infectas, onde morrem, é um ato de violência, é abuso de poder. É contra isso que estamos lutando. Chega desse massacre, isso não pode continuar!”, argumentou a escritora Rosiska Darci de Oliveira.

Assista ao trailer

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Os parlamentares não querem que saibamos que o que está dentro de cada uma de nós é de posse intransferível. É direito inalienável. Na prática sabemos, sempre soubemos. Porque “meu corpo me pertence”, longe de ser retórica, é prática. A história já deu comprovações de que não há lei, tampouco diretrizes religiosas, capazes de obrigar uma mulher a ter filhos. Porque como afirmou Rosiska ao final do documentário: “No fundo, a criminalização do aborto é o melhor exemplo da negação da liberdade das mulheres (…) Nenhuma lei tem o direito de impor a uma mulher ter um filho. Portanto, decidir se vou ou não ser mãe é a manifestação de uma liberdade. A história das mulheres é a história da negação da liberdade, e é também, sobretudo mais recentemente, a história da conquista dessa liberdade. Nós estamos brigando por isso há quase dois séculos. Nós brigamos no corpo, e isso tem essa importância, porque nosso corpo é nossa vida, e nossa vida nos pertence”.

Exibido no canal GNT, o documentário está disponível na plataforma Globosat.

 

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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