A criminalização do aborto pelo Código Penal, elaborado na década de 40, é incompatível com a garantia de direitos fundamentais das mulheres, previstos na Constituição Federal de 1988, cujo texto deveria guiar toda a legislação no país. Essa contestação é a base da ação enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF) para descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação. Para avaliar cenários diante desse passo, especialistas em direitos humanos das mulheres debateram nesta semana, no Rio de Janeiro, o tema “Direito ao aborto legal e seguro no Brasil no contexto de 2017”. Foi o primeiro debate público sobre a chamada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), apresentada em 7 de março pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e Anis – Instituto de Bioética.

Promovido pela Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB Rio), Redeh, Cfemea, Grupo Curumim, Ipas e Observatório Sexualidade e Política (SPW sigla em inglês), o evento ocorreu na sede do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIM/RJ) como parte da programação “Ocupa CEDIM”. “A iniciativa é uma demonstração das conselheiras da sociedade civil para mostrar ao governo – que tem relegado o espaço ao sucateamento, junto com as políticas para as mulheres – que aquele espaço pertence aos movimentos de mulheres e se destina a promover e monitorar as políticas públicas para as mulheres”, afirma a conselheira pela AMB Rio, Angela Freitas.

“A provocação feita pela Anis motivou o PSOL. Temos consciência de que é uma ousadia. Estamos usando o sistema contra ele próprio. Acionamos o STF, porque é nesse espaço onde encontramos alguma racionalidade e os movimentos sociais são ouvidos. Parece contraditório porque buscamos reconhecimento de direitos numa conjuntura onde tudo parece estar contra nós, mas é justamente nesse momento que vemos possibilidade de avanço”, explica Luciana Boiteux do PSOL, uma das advogadas que assinaram a ADPF.

A representante pontuou que o tema foi encaminhado pelas mulheres do partido – e não por sua cúpula – e que longe de se tratar de apropriação da luta feminista, visa propor possibilidades de avanço. “É uma ação muito cautelosa, pensada para dialogar com o Supremo, que traz elementos essenciais da realidade concreta dessas mulheres que estão morrendo. Traduzimos os lemas das passeatas para o linguajar jurídico. Por um acaso, tivemos uma distribuição por uma mulher”, afirma.

Em 28 de março, a ministra Rosa Weber, que foi sorteada relatora do caso, deu cinco dias de prazo para os três poderes se manifestarem em relação à ação. Segundo a ativista, o debate na corte é típico da jurisdição constitucional, como já ocorreu em vários países que legalizaram o aborto. “O papel do STF é garantir direitos das minorias, visto que uma maioria parlamentar não necessariamente é democrática. O mais contraditório é que nos mulheres somos maioria, mas reivindicamos direitos de minorias porque não temos possibilidades de alcance no espaço parlamentar”.

A ADPF que busca descriminalizar totalmente o aborto para garantir o direito à dignidade das mulheres é fundamentada em construções e reconhecimentos já feitos pelo STF em decisões anteriores, como a possibilidade de pesquisa com células tronco-embrionárias e aborto de feto anencéfalo. Junto à ação foi anexado um pedido liminar, que se acatado vai suspender prisões em flagrante, inquéritos policiais, andamento de processos e efeitos de decisão judicial. “Temos que entender que essa é a luta de muitas mulheres contra as violências. Somos obrigadas a dizer o óbvio: apliquem a Constituição senhores! A ideia de proteção à vida é ilustrada na música de Caetano Veloso que diz ‘essa turma vê alma no feto, mas não no marginal’. Fazemos uma ponderação de valores entre os direitos da mulher na plenitude da vida e os direitos do embrião em formação. A lógica religiosa é negar totalmente os direitos das mulheres”, argumenta a advogada.

Luciana destaca que o aborto é um tabu na sociedade, inclusive para feministas. “Como lidar com tantos receios? A culpa nos é colocada toda hora, especialmente quando ousamos. Não temos escapatória, precisamos enfrentar esses desafios”.

Mobilização pela legalização é maior
“Apesar de retrocessos no âmbito institucional e político, a mobilização na sociedade é maior. A apresentação da ADPF vai aumentar tensões e reações conservadoras. Estamos aqui para pensar como reagir e quais estratégias possíveis já que esse campo vai se acirrar ainda mais”, assinala a advogada Beatriz Galli, integrante do IPAS.

A advogada fez uma análise dos trinta anos de luta do movimento feminista pela legalização do aborto no país, que teve na Comissão Tripartite – criada em 2005 para rever a legislação punitiva – seu momento de maior possibilidade de avanço. “A ideia era examinar a legislação de outros países para propor o que seria modelo de legislação brasileira. Haveria reforma em relação ao aborto e finalmente o Brasil iria se aliar aos países mais progressistas. Tivemos um revés diante do cenário político muito complicado. Desde então, há uma onda de retrocessos organizada por setores conservadores na retirada de direitos conquistados”.

De acordo com Beatriz, uma reação articulada desses setores culminou no “caso das dez mil”, em Mato Grosso do Sul, em 2007, quando uma clínica foi fechada e o prontuário médico de dez mil mulheres foi violado pela polícia. A partir desse caso, outras clínicas foram fechadas e inquéritos policiais aumentaram, pelo menos no Rio de Janeiro, segundo indica um estudo sobre o sistema penal no estado. “A pesquisa detectou uma séries de violações. Mulheres eram algemadas na cama e fianças estabelecidas muito acima das possibilidades delas. O sistema não encarcera, não existe sentença condenatória, a maioria dos casos se dá por suspensão, mas as mulheres são submetidas a situações humilhantes e vexatórias. As mulheres em situação de abortamento recebem um tratamento implacável”, observa.

Dois casos recentes de criminalização de mulheres denunciadas por profissionais de saúde, em Curitiba e Campo Grande, são demonstrativos dessa estratégia de aumento da criminalização e de aplicação da lei penal. “São casos exemplares do que vem acontecendo e, que muitas vezes, não temos conhecimento porque não chegam na mídia. Trata-se de uma onda no sentido de aumentar essas denúncias por profissionais de saúde”, assinala a advogada.

Faz frente a essa onda a decisão recente da primeira turma do STF de não criminalizar profissionais de saúde que atuavam numa clínica clandestina, com o argumento de que a criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação viola preceitos constitucionais. “O voto abre precedente importante, traçando interpretação bastante progressista em relação aos direitos sexuais e reprodutivos e mostra coerência  no tratamento dado pelo STF ao tema”.

O fortalecimento do movimento de mulheres, desde as manifestações contra o PL 5069 de Eduardo Cunha (PMDB/RJ), em outubro de 2015, e as audiências públicas, no Senado Federal, sobre a Sugestão Legislativa (SUG), que propõe a regulamentação da interrupção voluntária da gravidez, colocaram a pauta na agenda pública. “Há um protagonismo feminista, com estratégias de incidência e mobilização em marchas e ocupações. Essas mobilizações mostram um novo feminismo: espontâneo, reativo, radical”.

Aborto: tema clássico de corte
Eloísa Machado de Almeida, professora da FGV-SP, analisa que a proposição da ação acontece em um momento com um caminho trilhado de três precedentes do Supremo que apontam para a legalização. “A estratégia é pautada nos argumentos dos ministros nos votos. Esse é um tema clássico de corte constitucional, são raros os países que conseguiram superar a descriminalização pelas vias legislativas. Outros países também têm cenário conservador como o nosso”, pontua.

A especialista acredita que a defesa da separação do Estado e da religião é a essência de toda argumentação proposta. “É sobre a construção de um Estado laico e a capacidade das instituições republicanas brasileiras de romperem com essa tradição. A reação contrária virá de ONGs e partidos de fachada, organizações religiosas, como CNBB, e neopentecostais”.

Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão, defende que os dramas individuais das mulheres que sofrem com a criminalização – denunciadas nos hospitais ou sequeladas e mortas por recorrerem à clandestinidade – sejam levados ao STF. Ela lembra que a criminalização faz com que médicos resistam a fazer o procedimento até mesmo em casos legais. “O mais importante é levar ao conhecimento do STF os dramas individuais e o impacto do recorte socioeconômico e racial. Precisamos nos preparar coletivamente, lembrando que esse é o direito mais fundamental. Não há expressão maior de igualdade e dignidade do que o direito ao próprio corpo”.

Ideologia de negação de direitos
Lúcia Xavier, ativista da ONG Criola – vinculada à Articulação de Organizações de Mulheres Negras do Brasil (AMNB) – analisou que a conjuntura política é marcada por um processo de construção de hegemonia no país, em que as mulheres estão fora, e pela presença de uma ideologia de negação de direitos que reage como na ditadura: com alto nível de violência e convencimento. “O campo conservador – em processo de reconquista para fazer a nova conformação do capitalismo – tem na frente os evangélicos, mas eles não estão sozinhos, são apenas lanceiros, com eles estão intelectuais, classe média e elites que, quando não agem, se calam a favor desse ataque”, analisa.

Segundo a ativista, os direitos sexuais e reprodutivos são alvos de preferência de ação conservadora porque representam discursos “potentes” que promoveram mudanças radicais na sociedade. “Esse campo cria uma massa crítica contra concepções libertadoras de direitos, fazendo crer que nenhum direito possa se constituir como experiência de vida porque fortalece outro sujeito que deveria ter sido enfraquecido”, explica.

Lúcia enfatizou que os direitos das diferentes mulheres não podem ser deixados de lado em nome da democracia. “Senão, não é democracia. Precisamos seguir lutando e repensar as ferramentas disponíveis, sabendo que temos mais acúmulo de conhecimento, capacidade técnica e política, mas não conseguimos criar ferramenta de disputa. Quais são as ferramentas que nos ajudarão a reconstituir nossa participação política com mais potência para reverter esse quadro?”.

Atualizada em 5 de abril, às 11h17, com a data de criação da Comissão Tripartite corrigida.

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