Na #surrealpolitik do #Brasil2020 gênero e sexualidade são prioridades, sim. A questão é que a “conscientização” almejada institucionalmente sobre o tema não tem como base nenhum conhecimento, mas ideologia: a velha ideologia patriarcal fundamentalista religiosa e cisheteronormativa em que mulher boa é mulher submissa.

Bolsonaro sinalizou, hoje (5), porque não pretende reforçar o orçamento para políticas de combate à violência contra a mulher. Para ele, a área não depende de dinheiro, e sim de “postura”, “mudança de comportamento” e “conscientização”.

É preciso mesmo tomar postura diante de questões de gênero e sexualidade, e criar mecanismos de conscientização para mudanças de comportamento. Mas devemos nos perguntar: conscientização de quem, sobre o que, e de que formas?

O presidente defendeu a campanha pela abstinência sexual encabeçada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que desde segunda-feira vem sendo promovida pela Ministra Damares Alves, dizendo que “Quando ela fala em abstinência sexual, esculhambam ela. Quem quer? Eu tenho uma filha de nove anos, você acha que eu quero minha filha grávida no ano que vem? Não tem cabimento isso aí. É essa a campanha que ela faz”.

A campanha nacional de prevenção à gravidez na adolescência tem como slogan “Tudo tem seu tempo: adolescência primeiro, gravidez depois”, com o qual é fácil concordar. “Tudo tem seu tempo” não deixa de ser uma generalização verdadeira, e faz bastante sentido promover que a adolescência venha antes da gravidez. Ninguém quer que meninas de dez anos fiquem grávidas, isso é ponto pacífico. Então que conscientização, exatamente, esse slogan e essa campanha promovem?

A conscientização engendrada por pessoas que trabalham na direção da ampliação do acesso à educação sexual e de gênero promove a prevenção de gravidez indesejada. Bem como de ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis). E de violências sexuais. Nosso objetivo é aprimorar saúde e direitos sexuais e reprodutivos. Trabalhamos para que adultos, jovens e crianças, sejam cis, trans, não binárias, intersex e de todas os matizes da sexualidade humana, tenham acesso a conhecimentos, produzidos e distribuídos em linguagens apropriadas para diferentes audiências (que variam não apenas em idade), sobre o FATO de que a sexualidade é parte da vida.

Conhecimentos produzidos a partir das ciências biológicas e sociais, com pedagogia adequada, a partir dos quais sujeitos autônomos possam desenvolver ferramentas cognitivas e psíquicas para exercício livre e seguro da própria sexualidade, bem como reconhecer os, e saber como agir diante dos, abusos e violências relacionados a sexualidade e gênero. Isso tudo sem promover abstinência, e definitivamente sem encorajar crianças a fazerem sexo.

Seres humanos farão sexo, sem necessidade de encorajamento. É um imperativo existencial. (Não para todas as pessoas, pois nada nunca se aplica a todas as pessoas.) Mas seres humanos fazem sexo. Adolescentes, jovens, adultos. É inevitável. É imparável. E é desnecessário e ilógico e pueril e fantasioso e autoritário agir como se fosse possível ou sequer necessário conscientizar as pessoas a não fazerem algo que, além de ser uma pulsão do corpo, é muito bom.

Políticas públicas realmente úteis são as de promoção de conhecimentos da ampla categoria “gênero e sexualidade”, de criação e fortalecimento de serviços sociais que acolham as demandas da saúde sexual e reprodutiva de todas as pessoas, de campanhas que explicitem o que são comportamentos violentos e agressivos, de conscientização sobre a importância fundamental do consentimento nas relações sexuais. No Brasil, uma mulher é agredida a cada quatro minutos, estuprada a cada nove minutos, somos o quinto país que mais comete feminicídios e o campeão mundial de assassinatos de pessoas trans. Promover abstinência resolve isso como, exatamente?

“Joanna, mas são coisas diferentes.”

Pois eu sei! É o governo, tendo como porta-voz o próprio presidente, que está confluindo as duas coisas.

O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, (pasta que, ela mesma, é um amálgama de temas que requerem articulações distintas) já é uma das que menos receberam recursos entre janeiro e dezembro de 2019. Para 2020 não estão previstos, por exemplo, aprimoramentos no aparato de acolhimento de vítimas de violências de gênero, ou saúde pública, ou garantias institucionais de segurança para que sujeitos exerçam o direito fundamental de serem quem são com liberdade.

A Casa da Mulher Brasileira, criada em 2015 para oferecer atendimento integrado às vítimas de violência, só sofre redução orçamentária drástica, e ano passado o programa sequer recebeu verba. Entre 2015 e 2019 o orçamento da Secretaria da Mulher (órgão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) foi reduzido de R$ 119 milhões para R$ 5,3 milhões. No mesmo período, verbas para atendimento às mulheres em situação de violência recuaram de R$ 34,7 milhões para apenas R$ 194,7 mil.

Promover abstinência não vai impedir ninguém de fazer sexo, muito menos fazer cócegas nas questões de violência sexual e de gênero. Os R$3.5 milhões investidos nesta campanha estão sendo rasgados. E, mesmo pouco, era em outra direção que deveria ir este investimento.

Esta confusão não é acidental, é perversão estratégica. As pessoas, em geral, não percebem afãs regulatórios de sexualidade como perversos, mas a própria liberdade sexual como perversão. Proteger menores – e maiores! – dos riscos associados a sexualidade não é perversão, é diretriz ética. Transformar o afã de proteger vulneráveis em mecanismos de controle da sexualidade de todos é que é perverso. Emancipatório e responsável é insistir em educação sexual e de gênero para fomentar conhecimentos que corroborem com a autonomia dos sujeitos.

Existe pelo menos uma diferença fundamental entre lutar por acesso ao conhecimento com fins de engendrar liberdade, responsabilidade e cuidado e, com perdão do meu francês, simplesmente cagar regra. Esta diferença é moralismo. E moralismo sexual é a maior prioridade do patriarcado, que tem como pedra fundante o controle da sexualidade das mulheres, e se faz (e portanto pode ser desfeito) por narrativas sobre sexo.

Espero que este texto deixe evidente para quem é essa diretriz de abstinência. Seguimos no exercício de conscientização de posturas patriarcais para promover mudança de comportamento. Avante.

Nota da edição: relação sexual até os 14 anos, ainda que consentida, é considerada estupro de vulnerável pela legislação brasileira.

*Joanna Burigo é mestre em Gênero, Mídia e Cultura (LSE), coordenadora Pedagógica da Emancipa Mulher e conselheira editorial do Portal Catarinas.

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  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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