Residir no Morro da Caixa, atualmente chamado de Monte Serrat, há pouco mais de um mês é suficiente para apontar, como um eco das vozes dos moradores que gritam há anos e anos, as péssimas qualidades do transporte público. A linha 764 – Monte Serrat disponibilizada pelo Sistema Integrado de Mobilidade (SIM) para atendimento à comunidade contribui diretamente para a degradante locomoção dos moradores e o escasso e precário acesso aos demais pontos da cidade. Não é necessário muito esforço cognitivo para compreender as razões pelas quais os residentes do Monte Serrat não se deslocam para as demais áreas da cidade aos finais de semana, por exemplo, período onde as praias, parques e demais pontos que figuram entre as principais atividades de lazer ao ar livre para a população, mas que, estrategicamente, cria-se as estruturas necessárias para selecionar quem acessa ou não tais espaços.

Durante os dias da semana, de segunda a sexta feira, são disponibilizados aproximadamente 35 horários ao longo do dia, das 6h às 23h, para a linha 764 – Monte Serrat, concentrando mais as saídas durante os horários considerados de pico, ou seja, o suficiente para levar e trazer os moradores aos seus locais de casa-trabalho, considerando-os meras mãos de obra trabalhadora sem direito ao lazer. Já aos sábados o volume de horários cai para aproximadamente 18 ônibus disponíveis para a mesma linha fazendo o trajeto entre o Monte Serrat e o Ticen. Aos domingos a situação fica ainda pior, se é que há essa possibilidade, sendo disponibilizados apenas 15 ônibus para a linha 764- Monte Serrat. Isso significa dizer que o acesso precário ao transporte público durante os dias úteis fica ainda mais escasso aos finais de semana, extinguindo qualquer possibilidade de lazer e acesso às demais áreas da cidade de Florianópolis.

Foto: Maruim

Por exemplo: um residente do Monte Serrat que planejar passar o sábado na praia da Joaquina, localizada no leste da Ilha, deve pegar o ônibus 764-Monte Serrat, saindo do bairro às 8h58, com sorte pegar no Ticen o 325 – Tilag-Ticen, via Beira Mar das 9h25, no Tilag pegar o 363- Joaquina das 10h41, caso perca qualquer um desses horários desencadeará um imenso atraso. A volta para casa também exigirá a mesma maratona, digna de uma prova de resistência à qualquer ser humano que deverá correr de uma plataforma à outra por conta dos curtos e desprovidos horários disponíveis, bem como das inúmeras baldeações para percorrer um trajeto de aproximadamente 15 km.

Quem reside aqui na comunidade do Monte Serrat possui múltiplas jornadas, especialmente as mulheres, é o trabalho doméstico, o cuidado com a família, a função remunerada (quando há), os estudos, entre outras atividades. Desse modo, pensar a vida social desta população ainda não coube na pauta das políticas públicas do município. Pensar na mobilidade dos moradores é respeitar a sua dignidade e seu direito de ir e vir em condições iguais aos demais bairros. Conceder o acesso ao transporte coletivo de qualidade, e isso abarca também a questão da segurança dos mesmos, com mais horários disponíveis e compreendendo que os moradores não se deslocam apenas para servir aos seus postos de trabalho. É legítimo ter acesso ao transporte público aos finais de semana e fora dos horários de pico dos dias úteis, é direito dos residentes acessarem os demais espaços da cidade em condições dignas e não tendo que protagonizar mais um episódio da trilogia do filme Jogos Vorazes para tanto.

Hoje saí da UFSC por volta das 18h50 e cheguei no Ticen às 19h30, sendo o próximo ônibus para o Monte Serrat apenas às 20h10. Estava exausta, com fome e pensando nas inúmeras atividades que deveria cumprir ao chegar em casa, inclusive estudar para um prova do dia seguinte. Na fila comigo muitas mulheres com o cansaço nos olhos de quem havia trabalhado duramente, mas que, como eu, já pensava no quão longa seria aquela noite ao chegar em suas casas. Algumas estavam uniformizadas, outras traziam mochilas e livros, ainda havia as que traziam suas compras em sacolas de supermercado.

Quando o ônibus chegou no cruzamento da Hercílio Luz quebrou, ficamos ali consternadas com mais aquele transtorno. Eu já pensava no próximo ônibus que viria nos resgatar. O motorista e o trocador ligavam dos seus celulares em busca de socorro e tentavam ajustar o problema mecânico sem sucesso. Esperávamos dentro do ônibus para fugir do vento forte e da chuva que caía fina aquela hora da noite quando o trocador nos informou que haviam dois outros ônibus da mesma linha quebrados no alto do morro do Monte Serrat e que o próximo horário, saindo do Ticen, seria feito por aquele mesmo ônibus que estávamos nós, ou seja, não sairia. Para piorar a situação, na garagem não havia nenhum veículo reserva ou motorista que pudesse nos socorrer. Uma senhora se exasperou com a situação pedindo uma providência, pois era impensado subir o morro a pé, tentou, em vão, argumentar com o trocador que tentava contemporizar a situação explicando a sua impotência diante da situação.

Descemos do ônibus perto da ALESC onde o veículo ficou encostado, estava escuro, frio e chovendo levemente. O trocador parou outro ônibus para que nos deixasse aos pés do morro, chegando lá mais moradores aguardavam o transporte público para voltar para suas casas com seus semblantes anestesiados pelo desânimo do corpo cansado. Começamos a subir e constatamos dois ônibus sendo rebocados descendo a rua General Nestor Passos, foi por ali que seguimos para as nossas casas, eu não tinha muita certeza se aguentaria chegar até lá, mas me importava mais ainda com as Senhoras de mais idade que encaravam aquela empreitada.

Subi com o choro preso na garganta ao constatar as situações de vulnerabilidade a que a comunidade é submetida sem, sequer, uma tentativa do município de sanar esta situação. Pessoas com idades avançadas ou dificuldades de locomoção, doenças preexistentes, gestantes, crianças são submetidas a uma subida íngreme e dolorosa até as suas casas enquanto os governantes seguem confortavelmente para suas residências sem se dar conta que cidadãos estão expostos às torturas modernas travestidas de escalada do Monte Serrat.

Será que se fosse em outro bairro os moradores também ficariam à mercê da sorte? É justo ser submetido à tamanho desconforto cotidiano enquanto a cidade se promove através do slogan da “qualidade de vida”? Quando viraremos pauta da gestão pública? Digo isso pois em 2009 fui submetida à uma cirurgia no pulmão direito e após essa subida compulsória senti minhas vias respiratórias queimarem, muita ânsia de vômito e tontura. Fiquei preocupada com minha saúde, mas mais ainda com as Senhorinhas que subiam ao meu lado e pareciam não suportar o peso do próprio corpo. A população dos bairros periféricos, mesmo quando localizados em região central como é o caso do maciço do Morro da Cruz, são submetidas às piores condições de infraestrutura e quando se trata de transporte público é ainda mais sintomático, uma vez que é uma concessão pública à uma empresa privada que com frequência aumenta os valores das tarifas, mas não modifica a qualidade dos serviços prestados.

Foto: Maruim

De acordo com a matéria publicada no Maruim com o título “Próxima Parada: Monte Serrat – O itinerário da recente história do Transporte Coletivo na comunidade na comunidade mais populosa do Maciço Morro da Cruz”, de autoria da Priscila Anjos (2016) o primeiro transporte público a circular pelas ruas sinuosas do Monte Serrat aconteceu em 13 de agosto de 1993, após insistente solicitação dos moradores às autoridades competentes. Ou seja, um dos bairros mais antigos da cidade possui pouco mais de 23 anos de acesso ao transporte público, muito depois das outras linhas disponibilizadas para atender a população de outras localidades.

O transporte público sempre esteve na ordem do dia das reivindicações dos moradores do Monte Serrat que, invisibilizados, são silenciados através da negligência pactuada entre as empresas de transporte público e os governantes da cidade de Florianópolis. É com pesar que registro tais mazelas e angústias compartilhadas entre os que aqui residem, mas é com muita força e certeza na potência política de transformação desta comunidade por meio dos seus moradores que o faço.

Cauane é mestranda em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC Bacharel em Administração CRA 26.145; graduanda em Ciências Econômicas na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; militante do Coletivo Negro 4P: Poder Para o Povo Preto e integrante das Cores de Aidê. Atualmente residente da Rua General Vieira da Rosa, 1258, Monte Serrat.

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  • Cauane Maia

    Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mestr...

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