Misoginia online e incels: Lisa Jewell fala sobre os riscos para adolescentes
Em “Garota Invisível”, lançado este mês no Brasil, a autora britânica explora as comunidades incels.
Quando a autora britânica Lisa Jewell lançou a versão original de “Garota Invisível” em 2020, acreditou que seu público estaria familiarizado com o conceito de ‘incel’. Ficou surpresa, no entanto, ao perceber que muitas leitoras não conheciam o termo. Cinco anos depois, o livro chega ao Brasil com os conteúdos da machosfera e os efeitos da misoginia online muito mais evidentes.
Somente no Brasil, foram identificados 137 canais brasileiros com conteúdo misógino que integram a chamada machosfera, rede de comunidades digitais onde são discutidos temas relacionados à masculinidade. Conteúdos encontrados em fóruns que difundem ideias incels e masculinistas têm estimulado jovens a atacar escolas, como mostra estudos de Lola Aronovich — pesquisadora que nomeia a lei brasileira contra a misoginia na internet.
“Esses conteúdos estão chegando aos meninos e é realmente assustador”, afirmou, ao Catarinas, Jewell, autora best-seller de thrillers que foram traduzidos para mais de vinte e cinco idiomas.
Além de adentrar o mundo dos fóruns misóginos na internet e as ideias da comunidade incel, a história de “Garota Invisível” também trata sobre outras formas de misoginia e o efeito sobre a vida das meninas e mulheres, como o gaslighting — violência psicológica que manipula a percepção da vítima — e a carga mental do trabalho do cuidado.
O livro parte da história de Saffyre Maddox, adolescente que passou três anos sob os cuidados do renomado psicólogo Roan Fours. Após receber alta, sentindo-se abandonada, começa a pesquisar sobre a vida do psicólogo e descobre muito mais do que esperava sobre Roan e sua vida supostamente perfeita.
Na mesma rua da família do psicólogo, mora Owen Pick. Com trinta e três anos, ele nunca namorou e acaba de ser suspenso do emprego após uma acusação de assédio sexual, que ele nega veementemente. Ao buscar conselhos online, Owen encontra fóruns de incels.
Para a autora, a história mexe com a ideia socialmente compartilhada de que abusadores são monstros e é possível identificá-los facilmente.
“Não é possível, muitas vezes são as pessoas mais quietas, modestas e de aparência comum, e que deliberadamente se mantêm discretas porque você sabe que esse é o modus operandi delas”, ressalta.
Acompanhe a conversa com Lisa Jewell:
A história traz muitas camadas de misoginia e quais são as consequências para as mulheres, incluindo a realidade dos Incels. Como foi o processo de pesquisa para a escrita do livro?
Eu escrevo de uma forma muito orgânica e não comecei este livro pensando que queria escrever sobre misoginia, mas sobre masculinidade tóxica. Normalmente, após escolher o assunto, pesquiso sobre e depois escrevo meu romance sobre o que eu descobri fazendo minha pesquisa.
Eu sempre começo com meus personagens e o que eu queria explorar era a rapidez com que os seres humanos podem tirar conclusões precipitadas sobre as pessoas com base em sua aparência. Eu tinha visto um homem andando na rua alguns meses antes de começar a escrever o livro. Ele parecia muito infeliz, amargurado e bastante bravo. Eu tinha esse desejo fascinante de saber até onde esse estranho na rua iria se fosse pressionado o suficiente, quão bravo e amargurado ele estava. E eu decidi que a raiz da amargura e infelicidade desse personagem seria sua solidão, sua solteirice, sua incapacidade de encontrar uma parceira.
Eu já o havia pintado como um homem muito solitário que emana a energia errada, que é assustador, então as pessoas que o veem por aí se afastam dele. Meu personagem, Owen, é professor e já foi repreendido por ser inapropriado com seus alunos. E foi só quando eu estava desenvolvendo o personagem de Owen que consegui imaginá-lo como o tipo de homem que poderia ser atraído pela escuridão da comunidade incel e então percebi que era sobre isso que eu queria escrever.
Eu queria escrever sobre um homem como ele, que não é um incel, mas tem muitos pontos em comum com a comunidade e ver como seria fácil radicalizá-lo e alimentar sua raiva, sua solidão e seu ressentimento.
Em termos de pesquisa, lembro de ter lido um artigo no The New Yorker em maio de 2018, chamado “A fúria dos Incels” (“The Rage of the Incels”, no original), escrito pela jornalista Jia Tolentino. Ela entrou em fóruns sobre incels fingindo ser um homem, porque queria participar do que estava acontecendo nesses espaços.
Estamos falando sobre isso agora como se fosse uma questão nova, mas não é. Essa comunidade e essa radicalização vêm se acumulando há anos e anos.
Eu li o artigo antes de começar a escrever este livro e foi a pesquisa que eu precisava para me sentir confortável em entrar na jornada de Owen.
A versão original deste livro foi lançada há alguns anos. Como você sentiu que foi a recepção? Houve alguma forma de retaliação por falar sobre incels?
Quando o livro foi publicado pela primeira vez, o que realmente me pegou de surpresa foi o fato de que a maioria dos leitores nunca tinha ouvido falar de incel. Era algo totalmente novo.
Eu sou fascinada e quero escrever pelo lado obscuro da sociedade. Quero saber o que se passa na cabeça das pessoas obscuras e das que fazem coisas ruins. Então, para mim, essa era uma questão recorrente que eu conhecia há anos. Eu tinha lido aquele artigo três anos antes. Na minha opinião, as pessoas estavam falando sobre isso na internet e eu presumi, quando este livro foi lançado, que as pessoas estariam familiarizadas com o conceito de incel.
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Mas o mais surpreendente para mim foi como poucas pessoas perceberam que isso estava acontecendo no mundo. E se eu tivesse consciência, acho que poderia ter aproveitado a oportunidade com esse personagem neste livro para me aprofundar mais, mas pensei que meus leitores já entenderiam sobre essa comunidade e esse estilo de vida.
Enquanto lia o livro e entendia mais sobre a relação entre a esposa e o marido, a palavra gaslighting vinha muito à mente. Você acredita que era este o caso? Como foi a construção da dinâmica entre os dois?
Não consigo me lembrar qual foi minha inspiração original para a dinâmica entre Roan e Cate. Eu sabia que queria que o casamento deles fosse conturbado e que houvesse problemas entre eles e, desde as primeiras páginas do livro, sabemos que ele ainda a está fazendo pagar por algo que ela fez muitos anos antes, e que, de certa forma, mudar para um lindo apartamento na área tão nobre de Londres deveria trazer um novo começo para as coisas.
Eu meio que queria brincar com isso: é possível para um casal se afastar de seus problemas, escapar deles, ter um novo começo e, de repente, é uma tela em branco e você pode começar de novo?
E, então, claramente, à medida que o livro avança, você pode ver que nenhum casal pode fugir desses problemas, que não há um novo começo.
Não tenho certeza de quão conscientemente eu estava ciente do fato de que Roan estava fazendo gaslighting com Cate, mas, claramente, essa é uma dinâmica que permeia tantos relacionamentos.
Muitas vezes, há essa luta pela superioridade moral. Há uma luta entre os dois parceiros, pois um deles tem que estar certo e o outro tem que estar errado.
Então, mesmo que você não esteja usando o gaslighting para controlar sua parceira, ainda pode utilizá-lo como uma forma de afirmar sua superioridade no relacionamento e sustentar uma posição de superioridade moral
Então, sim, acho que definitivamente havia um grande elemento dele fazendo gaslighting com ela.
Outra questão sobre o casal é que a mãe está a todo momento preocupada com os filhos, principalmente sobre a segurança. Enquanto o pai, quando aparece as preocupações dele no livro, são reclamações sobre o trabalho e externas a casa. Dentro desses cenários de crescimento do ódio online, falamos muito sobre a importância de educar e cuidar das crianças e uma coisa que aparece na história, é como essa responsabilidade ainda decai sobre as mulheres, principalmente, as mães. Como você avalia este cenário?
Eu vejo essa situação com clareza. Eu me casei com um homem muito bom. Ele era um marido muito bom, uma pessoa muito boa, um amigo muito bom. Meu marido é uma pessoa maravilhosa, mas quando trouxemos filhos para o nosso relacionamento, eu pude ver não apenas os sentimentos dele como ser humano, mas os sentimentos de metade do mundo, do gênero masculino.
Há quem chame isso de natureza, que está no nosso DNA que as mulheres sejam as cuidadoras e que os homens sejam mais pragmáticos e com mentalidade empresarial, mas não acho que isso seja desculpa no mundo moderno.
Eu realmente fiquei tão decepcionada e ressentida nos anos em que criamos nossos filhos. Eu estava trabalhando, era a principal provedora da família e também era a detentora de todo o conhecimento e de todas as responsabilidades para com nossos filhos.
Chamam isso de ‘carga mental’, que é o que ocorre quando as mulheres carregam todas as informações sobre os filhos, desde os mínimos detalhes da vida deles, os nomes dos professores, que aula têm na segunda-feira de manhã, que sapatos precisam na quarta-feira à tarde, qual era o nome do último namorado e por que terminaram, seus amigos, seus problemas, suas dinâmicas, se precisam lavar as roupas deles, onde ficam as roupas depois de lavadas, é uma lista interminável de coisas…
Eu vi, outro dia nas redes sociais, uma dessas entrevistas de rua, e era um homem que andava por aí entrevistando pais que estavam com seus filhos e perguntando a eles as datas de nascimento e o número de pais que não sabiam era extraordinário. Então, sim, isso me enfurece, me deixa com raiva.
E eu acho que isso é um problema que, em vez de melhorar, parece estar piorando, e eu não entendo por quê. Tenho certeza de que existem alguns maridos incríveis por aí que pensam em detalhes sobre a vida de seus filhos, mas a maioria dos homens não, e isso me deixa muito infeliz.
Pensando sobre a última reviravolta da história, o livro trabalha muito com a ideia de que a sociedade cria a imagem de abusadores como ‘monstros’, quando, na verdade, podem ser pessoas comuns. Você acredita que Garota Invisível também é sobre isso?
Sim, esse era meu principal objetivo com o livro. Há cerca de 15 anos, houve um caso muito famoso no Reino Unido. Uma jovem tinha acabado de sair do trabalho e desapareceu. A polícia foi ao apartamento dela e entrevistou o proprietário. Ele era o homem mais assustador que você já viu. Ele tinha uma aparência realmente estranha e a imprensa britânica simplesmente espalhou a ideia de que ele devia ser o responsável pelo desaparecimento dessa jovem.
E, claro, descobriu-se que não tinha nada a ver com ele, que ela tivesse sido vítima de um assassino em série que matou outras duas garotas. Mas, por um momento, na imprensa britânica e no público britânico, porque esse cara parecia tão estranho, assustador e com cara de estupro, decidimos que devia ser ele. Então era mais ou menos isso que eu queria fazer com o personagem Owen. As pessoas desconfiavam dele e entendiam a mensagem errada sobre ele.
Então, sim, é exatamente isso. Parte dessa ideia de que monstros se parecem com monstros e você pode identificá-los. Mas não é possível. Muitas vezes, são as pessoas mais quietas, modestas e de aparência comum, e que deliberadamente se mantêm discretas porque você sabe que esse é o modus operandi delas.
Você gostaria de comentar algo a mais?
Acho que é interessante estar aqui agora, que todos estão falando sobre incels pela série da Netflix Adolescência. O que é assustador agora é o quanto mais jovens são os homens e meninos que fazem parte deste movimento e desta comunidade.
Em 2018, quando li o artigo “A fúria dos Incels”, eram homens adultos ocupando esses espaços e agora, como você pode ver na série, isso está chegando aos meninos adolescentes, e isso é realmente assustador, e é algo que realmente precisa ser resolvido em nível governamental e em nível familiar, em todos os níveis.
Não podemos enviar garotos para o mundo que já foram treinados para odiar mulheres. Acho que este é um momento em que isso realmente precisa ser resolvido.
Esta série é muito importante por causa disso. É muito assustador e um sinal de alerta.