Minutos após o anúncio da vitória de Jair Bolsonaro (PSL) no domingo, uma publicação feita nas redes sociais pela deputada estadual eleita Ana Caroline Campagnolo (PSL) circulou intensamente na internet, colocando em alerta diversas instituições, entre elas a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Ministério Público e sindicatos de professores de SC. A gravidade do texto fez com que o Ministério Público de Santa Catarina decidisse investigar o caso antes mesmo de receber representação ou denúncia, apurando uma “possível violação ao direito à educação”.

Ana Caroline, em sua publicação, incitava os estudantes catarinenses a gravarem e filmarem todas as “manifestações político-partidárias ou ideológica” por parte de professores que ela chama de doutrinadores. O teor da mensagem escrita pela deputada causa ainda mais impacto por se tratar de alguém que assumirá um cargo que tem entre as premissas defender o cumprimento da legislação e não desrespeitá-la.

Ontem, a 25ª Promotoria de Justiça de Florianópolis protocolou uma ação civil pública contra a deputada estadual, cobrando a sua responsabilização por danos morais e patrimoniais causados ao interesse difuso de crianças e adolescentes matriculados em escolas públicas e particulares do estado. O promotor que assina a petição, Davi do Espírito Santo, solicita que ela seja condenada a pagar R$ 71,5 mil em danos morais coletivos ao Fundo para Infância e Adolescência de Santa Catarina.  Segundo o texto da ação, Ana Caroline implantou um “abominável” regime de delações informais e anônimas com o objetivo de “impor um regime de medo – de verdadeiro terror, na verdade – nas salas de aula”. Suas postagens nas redes sociais em que ela “desafia e humilha os professores” também são citadas e anexadas.

Uma petição lançada no site Avaaz pede a impugnação da deputada e já colheu mais 300 mil assinaturas até a noite desta terça-feira. Entre as possíveis violações, está a própria Constituição Federal. O projeto intitulado “Escola Sem Partido” e chamado pelos professores de “Lei da Mordaça”, já foi considerado inconstitucional pelo Ministério Público Federal (MPF).

Para o MPF em Chapecó, conforme recomendação divulgada na segunda-feira, o próprio projeto que se intitula “Escola sem partido” configura claramente mais uma concepção ideológica, também constitui um “credo em luta”, pois pretende restringir o ensino e a aprendizagem a um conjunto de temas e conteúdos e segundo uma específica concepção pedagógica que crê serem os únicos adequados a se trabalhar em sala de aula.

Neste ano, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu pela inconstitucionalidade da lei baseada no projeto em Alagoas, a partir do questionamento por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee).

“A publicação da deputada eleita publicada neste domingo é mais uma ameaça aos professores e professoras brasileiros em seu direito — e também em sua responsabilidade — de contribuir para uma educação voltada para a formação crítica e cidadã”, afirmou em nota a Contee.

Após a publicação de Ana Caroline, manifestações foram divulgadas a partir do mesmo entendimento de inconstitucionalidade. Os sindicatos representantes dos trabalhadores em educação das redes pública e privada municipal, estadual e federal do Estado de Santa Catarina afirmaram em nota a sua perplexidade, ressaltando que a educação formal brasileira tem seus critérios estabelecidos na Constituição Federal de 88 e na Lei 9.394/96 – a LDB, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, cuja base é a gestão democrática e o pluralismo de ideias. “Esse tipo de ameaça publicada em rede social é um ataque à liberdade de ensinar do professor (liberdade de cátedra), tipicamente aplicado em regimes de autoritarismo e censura”, escreveram em nota.

Os sindicatos ainda lembraram que os próprios sistemas de ensino, as escolas e os/as educadores/as têm autonomia para propor, em conjunto com toda a comunidade escolar, o currículo e demais atividades pedagógicas. Assim, atitudes de provocação interferem de forma ilegal e inconstitucional no processo democrático de organização escolar. “Na prática, Ana Caroline pratica justamente aquilo de que acusa os docentes: o estímulo à violência e à barbárie. Há pouco tempo, repercutiram na internet imagens da candidata eleita segurando um cassetete com a expressão ‘direitos humanos’ ou empunhando armas”.

O Ministério Público Federal, em Chapecó, foi enfático ao recomendar às instituições de ensino superior e regionais de educação que se abstenham de qualquer sanção arbitrária em relação a professores que represente violação aos princípios constitucionais e demais normas que regem a educação nacional, em especial quanto à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e ao pluralismo de ideias e de concepções ideológicas.

O texto assinado pelo Procurador da República Carlos Humberto Prola Junior recomenda ainda que sejam adotadas medidas medidas cabíveis e necessárias para que não haja qualquer forma de assédio moral em face desses profissionais, por parte de estudantes, familiares ou responsáveis. Procurado pelo Portal Catarinas, o procurador afirmou acreditar que a futura deputada possa melhor avaliar sua posição em relação a questão, de forma a melhor atender suas preocupações com a qualidade do ensino no país.

Além de ressaltar a ampla legislação que prevê a valorização do pluralismo dentro de sala de aula, o MPF destacou no texto o caráter cultural da existência humana, fazendo parte indissociável desta a “religião, arte, ciência, política, ideologia etc. – que dão significado à sua existência, e que, em decorrência disso, o homem apresenta incontáveis possibilidades de ser, nenhuma delas superior ou inferior às demais, apenas diferenciadas”.

Outra legislação que deve ser respeitada, segundo a OAB/SC, é a própria Lei Estadual n° 14.636/2008, que estabelece a proibição do uso de aparelhos celulares em sala de aula. A nota emitida relembrou a  importância da preservação dos direitos constitucionais dos cidadãos e das garantias individuais e coletivas conquistadas a duras penas, em prol da construção e consolidação do regime democrático e republicano brasileiro.

“A OAB/SC tem acompanhado com muita preocupação a disseminação de estímulos à perseguição, violência e intolerâncias diante da livre manifestação, incentivo ao anonimato como meio de ofender o direito à discordância de pensamentos. A instituição entende ainda como um agravante, insuflar alunos a agirem como censores/delatores dos seus próprios professores, numa cultura lamentável”.

Não é a primeira vez que esse tipo de ameaça aos professores ocorre nas redes. Há registro em vídeo do presidente eleito em que orienta “toda garotada do Brasil” a registrar o que acontece em sala sala de aula. O vídeo gravado antes das eleições foi publicado nesta semana na página da Confetam (Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal).

O falso debate sobre educação neutra
Uma das maiores expoentes do movimento escola sem partido, Campagnolo é professora de história do ensino básico e ficou reconhecida nacionalmente após processar Marlene de Fáveri, historiadora e professora da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), por perseguição ideológica e religiosa. Desde o início do ano passado, quando passou a apresentar seu caso em eventos do movimento escola sem partido e divulgá-los nas redes, a deputada eleita alcançou mais de 60 mil seguidores e 34 mil votos. Ela será uma das cinco mulheres a ocupar a cadeira no legislativo estadual, cotada para ser Secretária Estadual de Educação no governo do eleito Comandante Moisés também do PSL. 

Na tarde desta terça-feira integrantes de entidades representantes da educação estadual, municipal e federal protocolaram uma denúncia no Ministério Público de SC. Em entrevista ao Catarinas, Aldoir Kraemer, coordenador Estadual do Sinte (Sindicato dos Trabalhadores em Educação na Rede Pública de Ensino do Estado de SC) afirmou que Campagnolo dissemina um embate “nada positivo” entre estudantes e professores. “Ela que se diz educadora, deveria entender essa situação, de que não é incitando a disputa entre professores e alunos que vamos resolver o problema da educação”, defendeu.

Segundo o sindicalista, a deputada eleita além de recuperar princípios da época da ditadura, defende uma prática de ensino sem viabilidade. “A ideia é criar situação desconfortável para os trabalhadores da educação, com princípios que não têm viabilidade prática de acontecer, como por exemplo não tratar de assuntos polêmicos ligados à questão da sexualidade ou a diferenças étnico-raciais, e assim por diante”.

Para Kraemer, a possibilidade de uma educação neutra é parte de um “falso debate” em defesa da prevalência de um pensamento hegemônico. “O importante é que haja o respeito às diferenças e que o debate em sala de aula seja democrático e as posições levadas em conta e analisadas. A postura dela é de defesa do status quo”.

Ré por crimes contra a honra, calúnia, difamação e injúria
Neste mês, Ana Caroline tornou-se ré em um processo penal por crimes contra a honra, calúnia, difamação e injúria, movido pela professora Marlene de Fáveri. Segundo os autos, os crimes contra a honra da professora foram cometidos em palestras, publicações em redes sociais e nas divulgações da ação cível indenizatória por perseguição ideológica, impetrada pela aluna contra a professora. Somados os crimes ultrapassam quatro anos e não havendo conciliação, podem levar à condenação com pena privativa de liberdade.

Entenda o caso. 

Em setembro, a ação por perseguição religiosa e ideológica movida por Ana Caroline contra a professora foi julgada improcedente em primeira instância por falta de provas. A autora da ação recorreu da decisão.

A historiadora e professora do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da UDESC, Marlene de Fáveri, tem uma trajetória reconhecida nacional e internacionalmente nos estudos de gênero e feminismo.

Graduada em História pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó (2011), Ana Caroline tem um canal no Youtube onde busca desqualificar os estudos de gênero e o feminismo. Ela é contrária à discussão de gênero nas escolas, a qual chama de “ideologia de gênero”.

Longe de ser uma ideologia como prega a deputada eleita, a promoção da discussão de gênero em sala de aula é a forma mais elementar de prevenção às violências contras as mulheres, conforme estabelece a Lei Maria da Penha. Ao deturpar o conceito de gênero, voltado a analisar criticamente a construção cultural dos papéis desiguais entre homens e mulheres, ela promove o não cumprimento de mais uma lei – esta considerada um marco para os direitos das mulheres.

Na página e perfil da deputada estadual nas redes sociais há várias referências às bandeiras defendidas pelo presidente eleito. Além de elogiar o coronel Brilhante Ustra, ela promove o uso de armas e aparece em uma foto com um bastão nas mãos onde se lê “direitos humanos”. Em uma das postagens mostra-se orgulhosa com a menção feita por um aluno em adesão à Jair Bolsonaro. Paradoxalmente, a deputada eleita cobra dos professores uma neutralidade que nem ela mesma pratica.

O Portal tentou contato por telefone com Ana Caroline, porém não teve resposta.

Atualizada 31/10 – 10h50

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