Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu? Na icônica pergunta dos contos de fadas, está a raiz da busca por uma beleza que nunca parece suficiente: a comparação, ou melhor, a competição. Não basta ser bela; é necessário ser mais bela que outra pessoa. E, além disso, quem define esse padrão de beleza? É nesse jogo que, por vezes, nos perdemos, tentando achar o creme ideal, o produto ainda não lançado, aquele que nos deixará no padrão esperado, conforme as exigências do nosso círculo social e de uma sociedade que consome e descarta a beleza com a mesma rapidez com que cria novos ideais.
Agora, imagine que um laboratório te oferece uma versão mais jovem, mais bonita, mais perfeita e aprimorada de si mesma. Nesse processo, você se vê competindo com essa nova versão, constantemente se comparando a ela. E, mesmo que passe grande parte dos dias vivendo essa nova identidade, nos momentos restantes você se vê diminuída, lidando com o desgaste de se comparar constantemente a uma versão idealizada de si? Repito: mais jovem, mais bela e perfeita!
O filme A substância retrata de maneira crua e perturbadora essa busca pela perfeição, sempre marcada pela comparação.
A narrativa nos confronta com o monstro que nos tornamos ao nos perdermos no culto obsessivo à juventude, uma cobrança externa que, gradualmente, reforçamos e reproduzimos dentro de nós, até que ela nos consome e nos faz perder a identidade em busca desse ideal inalcançável.
Escrito e dirigido por Coralie Fargeat, A substância é um filme que mistura terror corporal e ficção científica, usando cenas explícitas e grotescas para chocar quem está assistindo. Fargeat consegue, com maestria, chocar e prender a atenção do público, levando-o a confrontar as profundezas da obsessão por perfeição e os limites do corpo humano. É aquele tipo de filme que faz você querer cobrir os olhos, porque o impacto é inevitável.
Neste suspense de horror psicológico, Elisabeth Sparkle (Demi Moore) é uma ex-estrela de Hollywood que, após uma carreira de sucesso, se vê em declínio, reduzida a apresentadora de um programa de aeróbica. Ao completar 50 anos, ela é inesperadamente demitida por sua emissora, vítima de uma indústria obcecada pela juventude e pela aparência. Desesperada diante da brutalidade do etarismo e da pressão por padrões de beleza inatingíveis, Elisabeth decide se submeter a uma droga misteriosa, que promete transformar sua aparência e resgatar sua antiga glória.
Após tomar a substância, ela vivencia uma transformação dolorosa, dando origem a uma versão jovem de si mesma, que se nomeia Sue, interpretada pela atriz Margaret Qualley de Pobres Criaturas (2023). Contudo, à medida que o tempo passa, a convivência entre os dois corpos – o original e a versão rejuvenescida – revela-se cada vez mais complexa e destrutiva. A relação simbiótica entre elas começa a se deteriorar, e os limites entre o desejo e o perigo se tornam indistinguíveis, colocando ambas em um jogo de poder e identidade, onde a busca por perfeição ameaça destruí-las por completo.
A demissão, que acontece exatamente no dia do seu aniversário, se torna uma alegoria cruel: completar mais um ano de vida, ou seja, continuar existindo, não é motivo de celebração. Pelo contrário, revela um fardo de dor e frustração, por não corresponder mais às exigências externas de uma carreira que teve seu auge com o nome gravado na calçada da fama, um sucesso construído também em torno da sua aparência e jovialidade.
Elisabeth Sparkle, personagem do filme A substância, tem 50 anos, enquanto a atriz Demi Moore, que a interpreta, tem 62. Essa diferença de idade, que não é visível no filme, revela muito sobre como Moore se moldou aos padrões estéticos exigidos pela indústria de Hollywood.
Sparkle e Moore compartilham mais do que a aparência, ambas enfrentam a pressão imposta às mulheres, especialmente as do show business, que são vistas como símbolos de beleza e precisam continuar a atender expectativas irreais.
Em seu discurso ao levar o Globo de Ouro na categoria Melhor Atriz em Comédia ou Musical pela atuação no filme, Moore falou desse entrelaçamento com a vivência da personagem, assim como a morte simbólica à qual atrizes muitas vezes são relegadas quando atingem certa idade. “E, enquanto eu estava em um momento difícil, surgiu na minha mesa um roteiro mágico, ousado, corajoso, fora da caixinha, absolutamente insano, chamado ‘A substância’, e o universo me disse que eu ainda não havia terminado.” O filme, que já está sendo amplamente reconhecido, concorre a cinco categorias no Oscar 2025, incluindo Melhor Atriz.
Numa das cenas mais marcantes, vemos Elisabeth Sparkle se preparando para um encontro, vestindo um deslumbrante vestido vermelho e maquiagem impecável. Pensamos também em Moore, como ela está na sua melhor versão, sem dúvida aprimorada pelo status socioeconômico que conquistou. No entanto, essa sensação de plenitude é imediatamente desfeita quando ela olha para o outdoor em frente à sua janela e vê a imagem de uma versão mais jovem, sedutora e perfeita de si mesma.
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O espelho, mais uma vez, revela o abismo sem fim: não basta ser bonita, é preciso ser mais do que qualquer outra. É preciso ser mais do que si mesma. E nessa busca infinita de ser o que não se é, se deixa de perceber a beleza do que se é.
É impossível não se conectar com a dor dessa cena, não reconhecer nela um eco de nossa própria experiência, pois, em algum momento da vida, ou de forma recorrente, todas enfrentamos esse peso: a sensação de não ser suficiente. A beleza que vemos em nós se desfaz rapidamente quando o espelho nos devolve a imagem de alguém mais jovem, mais radiante, como se isso fosse a medida de nossa própria existência.
A dicotomia princesa-bruxa, que disciplina as mulheres ao sabor de uma sociedade patriarcal, também é representada no filme. Sparkle passa a ser caracterizada como uma bruxa, em contraste com a versão sedutora de si mesma, a Sue. Em uma cena particularmente simbólica, a protagonista prepara uma comida, quase como se fosse uma poção envenenada para a sua versão idealizada, ilustrando que, mesmo entre as duas, que surgem da mesma essência, existe uma disputa e, mais do que isso, um processo de autodestruição mútuo.
Nos momentos finais do filme, a personagem começa a confrontar o monstro que se tornou, tanto na sua versão original, com o envelhecimento acelerado pelos exageros cometidos pela nova versão, quanto na aprimorada, que narcisicamente abocanha toda a vida para si.
Essa transformação reflete a monstruosidade de uma sociedade que, ao descartar Elisabeth profissionalmente, também nega sua humanidade, impondo-lhe a busca por padrões inatingíveis. Ao tentar recuperar a juventude, vista como pré-requisito para manter o trabalho que ocupava, a apresentadora se dá conta de que, na busca por atender a essas expectativas, se transformou em algo irreconhecível. Ao mesmo tempo, ela se vê aprisionada pela repetição de comportamentos e pela obsessão por um corpo sem limitações, incapaz de se libertar desse ciclo.
Esse monstro toma conta de Sparkle à medida que ela permite que sua versão “melhorada” se torne a única beneficiária de seus desejos, consumindo tudo ao seu redor em nome de um ideal impossível de se atingir e, mais precisamente neste caso, de manter.
Ao fim, Sparkle só queria ser amada, mas este amor estava condicionado à sua capacidade de continuar a ser a estrela idealizada, em um mundo onde, como afirma bell hooks:
“as mulheres são ensinadas que o amor é a realização de sua identidade, enquanto os homens são ensinados que o amor é uma ameaça à sua autonomia. Esse desequilíbrio cria relações de poder desiguais, onde as mulheres são frequentemente exploradas emocionalmente”.
Enquanto Sparkle se submeteu a transformações para se encaixar nesses padrões, Demi Moore também passou por várias cirurgias plásticas que lhe renderam críticas duras. Sua vida pessoal, marcada por um relacionamento com o ator Ashton Kutcher, que a ridicularizava publicamente, intensificou ainda mais as pressões e cobranças que ela enfrentou.
Moore brilha neste filme, ao passo que mostra a potência de sua experiência profissional, fazendo justiça a sua trajetória, já que desta vez é ela quem faz a crítica, apontando para a indústria tóxica da beleza. Ela mostra o espelho para o monstro, desafiando as expectativas que sempre lhe foram impostas.
“Nos momentos em que não achamos que somos inteligentes o suficiente, bonitas o suficiente, magras o suficiente, bem-sucedidas o suficiente ou, basicamente, apenas não o suficiente. Uma mulher me disse: ‘Apenas saiba que você nunca será suficiente, mas pode conhecer o valor do seu próprio mérito se simplesmente largar a régua de medir’’, revelou a atriz durante o Globo de Ouro.
O filme nos desperta, revelando que o monstro está sempre à espreita, pronto para nos devorar, seja quando olhamos para uma mulher mais velha e nos sentimos detentoras de um bônus de juventude, seja quando nos entregamos a procedimentos, compras ou experiências que drenam nosso tempo e recursos. Nesse looping incessante, nos afastamos do verdadeiro exercício da transcendência, acreditando que ela só pode ser alcançada por meio de uma perfeição corporal ilusória.
Superar o etarismo e abraçar o envelhecimento de forma saudável e realista é um desafio constante, especialmente quando enfrentamos expectativas sociais desproporcionais em comparação aos homens. “Há uma pressão em Hollywood para que sejamos sempre jovens. O que vejo é que as mulheres fazem de tudo para não envelhecer… Tentam parar o relógio, mas o que percebo são pessoas inseguras que não se permitem envelhecer”, afirmou a atriz Jennifer Aniston, em 2014. Na época, aos 45 anos, a atriz, também estrela na Calçada da Fama de Hollywood, se viu obrigada a desmentir rumores sobre o uso de cirurgias plásticas para manter sua aparência jovem.
Ao final, A substância nos deixa uma poderosa reflexão: que possamos continuar a celebrar nossos aniversários, que não abdiquemos do direito de envelhecer com dignidade, saúde mental e autoestima, conscientes de que os cabelos grisalhos e as marcas de expressão são únicas e nossas, como a nossa própria vida.
Que possamos, enfim, carregar nosso corpo com orgulho, reconhecendo o direito à nossa história, que, ao ser contada por ele, continua sendo escrita e construída por meio dele. Que honremos cada ano de vida a ser vivido e que não percamos o horizonte da beleza da vida a ser continuada.
Que a comparação não seja parâmetro para definir quem somos ou quem poderíamos ser. Por fim, não existe alguém mais bela do que eu, quando não me comparo a ninguém. Parafraseando Simone de Beauvoir “que nada nos limite, que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja nossa própria substância”.