Filhas da Terra: cartilha sobre violência doméstica orienta mulheres do Rio Negro
A região do Rio Negro no Amazonas, maior bacia de águas negras do mundo, é habitada por mais de vinte e três povos indígenas falantes das línguas Aruak, Maku, Tukano e Yanomami. Há mais de três mil anos esses povos se relacionam com as águas de rios afluentes e igarapés como Uaupés, Içana, Curicuriari, Marié, Padauiri, Uneiuxi, Cauaburi, Marauiá, Xié em meio a uma diversidade cultural. Atualmente, estas terras são pertencentes à União e os indígenas convivem entre Terras Indígenas (TIs) demarcadas, comunidades rurais e centros urbanos.
O município considerado o mais indígena do Brasil, São Gabriel da Cachoeira, Noroeste do estado, tem cerca de 45 mil habitantes e 90% da população é indígena. Para enfrentar e combater a violência doméstica contra mulheres e crianças uma cartilha foi criada a partir de um diagnóstico com dados que trazem preocupação nesse período de isolamento social pela pandemia. Uma rede de apoio está sendo formada com a distribuição da cartilha “Violência doméstica e violência sexual em tempos de pandemia” para conversar com as mulheres sobre os seus direitos e sobre como denunciar o agressor.
A publicação é uma ferramenta que tem por objetivo avaliar estratégias de prevenção e combate à violência doméstica, valorizar a tradição indígena e criar ações que possam gerar renda para essas mulheres. O direito à medida protetiva após a denúncia, a pensão provisória, a garantia de alimentos caso se tenha filhas/os, a prisão do agressor, e o sigilo nos processos estão os temas abordados.
Rodas de conversas estão sendo realizadas aos poucos por conta da pandemia para promover o debate sobre a violência contra a mulher. A cartilha está sendo distribuída em escolas, instituições públicas, organizações indígenas, territórios indígenas, e para as 33 associações de mulheres indígenas do Rio Negro. Hoje Elizângela Baré, Cecília Piratapuya e Janete Desana falam sobre os diferentes aspectos que estão relacionados à violência doméstica contra mulheres indígenas.
O material lançado em julho é produto de um projeto colaborativo de pesquisa e extensão da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) com o Departamento de Mulheres Indígenas da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (DMIRN/FOIRN), o Instituto Socioambiental (ISA) e o Observatório da Violência de Gênero no Amazonas da Universidade Federal do Amazonas (OVGAM/UFAM).
O número de casos de indígenas acometidos pela Covid-19 nessa pandemia ainda é crescente, assim como o número de mortes. O isolamento social se faz necessário já que não há previsão de vacina para ser distribuída entre os grupos prioritários no Brasil. A Plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus (Covid-19) no Brasil, em boletim mais recente (21/9), revela que entre os indígenas são 32.615 casos confirmados, 818 mortos em 158 diferentes povos.
O QUE A PESQUISA PARA A PRODUÇÃO DA CARTILHA REVELA
Entre 1º de janeiro de 2010 e 31 de dezembro de 2019 foram registrados 4.681 boletins de ocorrência com vítimas mulheres em São Gabriel da Cachoeira (AM). Uma média de 1,28 registro diário. É como se não passasse um dia sem que uma mulher fosse exposta à violência.
No período entre 2010 e 2014, os principais crimes contra as mulheres foram: lesão corporal 590 casos (50% dos registros); ameaças 139 (11,7%); ameaças de morte 110, (9,31%); calúnia, injúria e difamação 115 (9,7%); estupro 50 (4,2%). e violência doméstica e familiar 26 (2,2%). As ocorrências revelam que mulheres de todas as idades estão expostas à violência sexual. A maior parte das vítimas eram adolescentes entre 13 e 15 anos.
Os dados apontam o estado civil das vítimas: mulheres solteiras 40%; união estável 30%; casadas 25%; viúvas 3% e separadas 2%. Quanto à idade das vítimas: adultas (25 a 64 anos) 622 mulheres, o que corresponde a 52,6% dos casos; jovens (18 a 24 anos), com 221 casos (18,7%); adolescentes (13 a 17 anos) 110 casos (9,3%); crianças (0 a 12), 47 registros (4%); idosas (acima de 65 anos), 20 registros (1,70%). Em 161 casos (13,7%) não há informação sobre a faixa etária. Apenas 7 das 1.181 ocorrências traziam a informação sobre a etnia da vítima: Tukano, Tuyuka, Baré e Baniwa.
O PERFIL DO AGRESSOR
Companheiros ou ex-companheiros das mulheres correspondem a 40% do total de agressores identificados (499). Na maioria dos casos o agressor era alguém conhecido da vítima. Em apenas 4 casos o agressor(a) era desconhecido.
Relação entre vítima e autor: 355 dos agressores tinham relações afetivas atuais com a vítima; 144 dos agressores tiveram relações afetivas no passado com a vítima; 136 eram conhecidos da vítima; 90 eram pais/mães/irmãos (ãs); 68 eram filhos/netos/ sobrinhos; 21 eram tios/primos; 17 eram sogro/sogra; 4 eram desconhecidos da vítima; 346 não foram informados.
A grande maioria dos agressores é formada por homens (913), representando 77% do total de ocorrências. As mulheres respondem por 277 agressões. Em 41 ocorrências não consta tal informação. Apenas 10% das 1.181 ocorrências traziam a informação da ocupação do autor. As mais citadas foram: militar, funcionário público, professor e motorista (dados analisados entre 2010 e 2014).
A VOZ DAS MULHERES INDÍGENAS CONTRA A VIOLÊNCIA
Janete Alves do Povo Dessana, integrante do Departamento de Mulheres da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) conta que ao longo dos anos elas vem mobilizando as mulheres focando nas políticas públicas referentes ao Bem Viver das mulheres Indígenas, como na saúde, segurança alimentar, segurança pública, autosustentabilidade, entre outros temas como a violência doméstica.
“Sobre a violência contra mulher, nós viemos nos preocupando com as situações que aconteciam. Tivemos apoio do José Miguel, professor da USP, para a realização, no ano passado, de rodas de conversa com as mulheres, também nas escolas. Então, realizando essas rodas de conversa pensamos numa maneira de mobilizar através de um instrumento, que é a cartilha. É bem simples e objetiva. Com essa mobilização esperamos que diminuam as violências”, explica Janete.
Nas rodas de conversas muitos depoimentos foram revelados fazendo com que as mulheres indígenas dessem prioridade a discussão pelo combate à violência doméstica. “Nessas rodas de conversa ouvimos vários casos que nos motivaram a levar o nosso trabalho adiante, para que com essa cartilha possamos fazer mobilização. Com o aparecimento da pandemia, as mulheres, crianças, adolescentes passam mais tempo em casa. Nos preocupa bastante imaginar como elas devem estar, aquelas que já estavam sofrendo violência”, comenta.
Ela descreve que, atualmente, são vários os motivos que levam à violência, tais como “o consumo de bebidas alcoólicas, fofocas, homens que não deixam a mulher trabalhar, e assim há desentendimentos nas casas, nas famílias, entre outras situações. Na nossa cultura não tinha violência, não sabíamos o que era. Agora existe a violência e a Lei Maria da Penha, que tivemos a oportunidade de conhecer e saber que também podemos ter apoio”, relata.
Segundo a entrevistada, na cultura indígena há hábitos coletivos que levam as pessoas a conversarem mais para resolverem seus conflitos; pela oralidade acessam os conselhos, os conhecimentos e os saberes dos mais velhos. Esses hábitos, no entanto, sofreram modificações em alguns grupos. “Somos povo do coletivo e na convivência familiar cotidiana compartilhamos nossos sentimentos, em reuniões, festas e, enfim, tudo era no coletivo”, referindo-se ao processo de mudança influenciado pelo processo colonizador.
Cecília Barbosa Albuquerque do Povo Piratapuya, integrante da Associação dos Artesãos Indígenas de São Gabriel da Cachoeira (ASSAI), conta que as associadas já receberam a cartilha e participaram de uma conversa com a professora Rosilda Cordeiro sobre o conteúdo. Ela considera a rede de apoio fundamental para que as violências sejam reconhecidas e as mulheres indígenas sejam amparadas durante a pandemia.
“O conteúdo da cartilha é muito bom. As mulheres leem, mas não sei se entenderam. Muitas vezes, elas denunciam o agressor, e no dia seguinte retiram a denúncia. Como mulher indígena, a cartilha é ótima. Mas teria que fazer um encontro para discutir e levar ao entendimento. Porque sozinha a mulher vai ler e não terá força para conscientizar a sua vizinha”, acredita Cecília.
Alguns hábitos foram adquiridos com o contato a partir da colonização, como o consumo de bebidas alcoólicas, aumentando a violência. Cecília diz que “atualmente a mulher indígena bebe cachaça junto com o marido e há essa violência. Pra mim não basta só falar e escrever. Deveria haver ação, fazer trabalho nas comunidades”.
Em contraponto, ela relaciona a violência como um comportamento adquirido em algumas famílias. “Estou dizendo que no presente momento na minha família não há violência. Em outras famílias indígenas tem violência contra a mulher. Como resolver isso eu não sei. Quando a gente tenta falar, dizem que sempre foi assim. O homem que manda, se não fizer o que pede, apanha”, comportamento que estrutura o sistema patriarcal ocidental.
Por conta da pandemia não puderam mais reunir as mulheres do modo que haviam pensado inicialmente, em alguns lugares estão acontecendo os encontros com distanciamento social e o uso de máscaras. Para Cecília o fato de os encontros presenciais das artesãs não serem constantes faz com que algumas informações possam não ser compreendidas. “Não fizemos nenhum trabalho sobre a cartilha no tempo da pandemia. Apenas nos preocupamos de ficarmos em casa para cuidar da nossa saúde e de nossos familiares”, declara.
A LEI MARIA DA PENHA NÃO CONTEMPLA AS MULHERES INDÍGENAS
Elizângela Baré do Departamento de Mulheres da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), criado em 2002, comenta que a partir de 2010 a organização vem trabalhando o tema da violência doméstica, as questões de gênero e juventude. Com a pandemia elas criaram uma rede de apoio para levar informações às mulheres indígenas, e para que elas possam denunciar o agressor.
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É importante ressaltar, para ela, que há algumas especificidades relacionadas às mulheres indígenas não estão contempladas pela Lei Maria da Penha, por ser genérica e não contemplar regras culturais. “Era importante construir uma rede de mulheres porque aqui dentro do município de São Gabriel da Cachoeira não existe delegacia de mulheres. Para nós, mulheres indígenas, fica mais difícil nos adequarmos à Lei Maria da Penha porque é uma lei que abrange todas as mulheres. É uma oportunidade de lei para as mulheres que moram na cidade. Para as mulheres que moram no interior, nas aldeias, nos territórios indígenas não atende as necessidades”.
Segundo Elizângela, a violência contra mulheres e crianças atualmente é uma realidade. “A gente teve essa ideia junto com o pessoal da Fiocruz de organizar uma cartilha e falar para as mulheres desse problema. Não era só a violência doméstica, mas também a violência sexual contra as crianças. A ideia foi tornar essa cartilha mais simples e mais fácil para as mulheres entenderem, para que elas possam usá-la a seu favor”, comenta.
A cartilha está sendo distribuída para os territórios indígenas, com tradução oral no momento da distribuição de acordo com a língua de cada povo. “Saiu uma equipe para entregar as cartilhas em um distrito do povo que é falante de Tukano. Então, a mulher que viajou para lá vai explicar a cartilha em Língua Tukano, tanto para as mulheres quanto para os homens. Aqui a gente fala que a violência não é única, não é individual. Ela só acontece quando tem duas pessoas, porque uma quer fazer mal a outra”, declara.
Para Elizângela Baré a cultura da violência faz parte da assimilação de um hábito que não faz parte da cultura indígena, como o consumo de bebidas alcoólicas industrializadas, que pode gerar casos de violência. “Cultura é diferente de violência. A bebida alcoólica que é ingerida pelos homens indígenas não é da nossa cultura. É uma bebida que vem com várias químicas e ninguém sabe como que é usada. Muitas vezes isso faz com que os seus esposos, os seus filhos, os seus cunhados se prejudiquem e até mesmo uma mulher. Por isso, que a gente está fazendo essa cartilha”.
A violência doméstica é um problema social que está há muitos anos impactando a vida das mulheres indígenas. O objetivo desse grupo de mulheres é criar propostas para a construção coletiva de políticas públicas que contemplem as realidades das indígenas. Elas pensam em organizar uma audiência pública para discutir os dados de violência contra as mulheres.
“A gente quer mostrar o que ocorre diariamente em nosso município onde 70% das ocorrências são feitas pelas mulheres. Eram muitas ocorrências que estavam acontecendo aqui na Delegacia de São Gabriel da Cachoeira, em que elas contavam que estavam sendo maltratadas, expulsas de casa, entre muitas outras coisas. A intenção é mostrar o que estava acontecendo com essas mulheres”.
Para ela a atuação pública e coletiva é parte do caráter da associação. “A nossa organização atua com a questão indígena e controle social para fazer propostas de políticas públicas. Fazer o controle social não é fácil na área da saúde, na área da educação, na área de aquisição de renda, na área dos benefícios sociais. Para a gente mostrar a nossa proposta como conselheiras da sociedade civil no intuito de minimizar ou frear esses problemas sociais. É um papel não só das famílias, é um papel construído em rede para que as instituições atuem de forma corretiva frente a esse grande problema que há anos vem persistindo no meio da população” diz a indígena.
Você está sendo agredida ou se sentindo agredida? Seus filhos ou filhas estão sofrendo agressões, violências, toques inadequados ou estupros dentro de casa neste período de isolamento domiciliar?, pergunta a cartilha.
Um dos problemas encontrados durante a execução do projeto foi o atendimento às mulheres indígenas que estão em seus territórios sem acesso ao telefone ou à internet. Em uma parceria com as profissionais de saúde dos Polos Base do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), um formulário foi criado para que os relatos e as denúncias possam ser feitas pelas mulheres dos locais mais afastados das áreas urbanas.
“Criamos uma estratégia que não está na cartilha que é o apoio da equipe do DSEI, para quem faz atividade na área pudesse levar e trazer pra a gente um formulário caso a mulher queira fazer alguma denúncia, ela pode preencher o formulário e nos encaminhar pelo ISA, COIAB, FUNAI, Delegacia e pelo Conselho Tutelar para a gente poder resolver ou minimizar o problema. Quem faz a prevenção é a equipe de saúde que está na área junto com os 25 Polos Base, em 750 comunidades, para que a mulher não se exponha” revela Elizângela.
Durante a pandemia foi criada a campanha Rio Negro Nós Cuidamos que tem como objetivo arrecadar cestas básicas, material de higiene, fabricação de máscaras, a elaboração de cartilhas contra o covid-19 e a distribuição da cartilha sobre a violência doméstica e sexual, como uma estratégia de prevenção.
AS MULHERES INDÍGENAS E AS ELEIÇÕES
Os grupos de mulheres do Rio Negro estão atuando nos espaços de decisão, para o acesso à Universidade, atuação em outras instituições e na política partidária. “Muitas mulheres professoras vão sair candidatas. É muito importante isso, principalmente para a mulher indígena. A gente vê que são avanços e isso está crescendo pouco a pouco. A gente se revela aos poucos até porque a nossa cultura é muito mais forte do que qualquer outra. Para nós, aqui, é a nossa própria cultura que impede de acessarmos esses espaços”, explica a resistência por parte dos indígenas em acessarem instituições não indígenas.
Elas fazem seminários, rodas de conversa, oficinas, capacitações para que essas mulheres possam aprender a se expor, para assumir determinados espaços nos territórios na área da educação, na área da saúde, o que representa a luta das mulheres.
“Eu tenho certeza que as mulheres ao fazerem parte, estarem nas candidaturas e poderem assumir, elas podem criar meios. A gente tem que estar ciente que um vereador tem que estar lá para criar lei e direcionar, de como resolver os problemas de uma determinada região, de um determinado território, de um determinado povo. Então, eu acho que elas podem contribuir. Eu digo para elas: ‘não tire do seu coração que você é uma liderança. Quando você chegar lá você vai pensar ‘eu consegui, mas eu sou uma liderança indígena e eu vou pensar no futuro’. E ter alguém para poder amparar quando estiver fora. Eu tenho muito esse diálogo com elas. Porque depois chega lá e o sistema muda. ‘Não deixe o sistema consumir vocês. Vocês têm que chegar lá e criar uma lei que possa nos amparar’”.
Para as mulheres com quem conversamos é fundamental a criação de uma delegacia especializada no atendimento de mulheres indígenas, para promover ações que possam fazer a prevenção e rodas de conversas com os jovens, de 15 a 20 anos, por conta da relação entre a cultura indígena e a cultura não indígena. Contribuir na promoção da saúde pelo Bem Viver.
“Eu acho que as delegacias são para atender as pessoas, mas pode fazer tudo isso. Às delegacias têm que pensar nessa estratégia de fazer atividades voltadas à promoção da saúde. Eu converso muito com a delegada aqui. A gente vê a delegacia como um lugar que é só para prender. A gente não pode pensar só nesse sentido, principalmente às delegacias que estão dentro dos territórios indígenas. A população indígena tem que fazer parte. A gente chama a delegada para falar o que é errado e como se deve proceder”, declara.
A CULTURA INDÍGENA NÃO LEGITIMA A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
A promoção do Bem Viver, conceito compartilhado por diferentes povos indígenas na atualidade, passa pelo enfrentamento da desigualdade social, econômica, política, ambiental, educacional, entre outros aspectos que impactam o cotidiano desses povos, incluindo a questão da violência doméstica e sexual. Para Elizângela Baré, os papéis sociais definidos pela cultura interferem no comportamento social da pessoa.
“Eu, como mulher indígena, sempre falo que não sou nenhum objeto, o homem não pode bater em mulheres, assim como ele também não quer apanhar. Porque na nossa cultura os meus pais nunca ensinaram. Quando tem uma formação do kariamã, dos homens e karipã, das mulheres, os homens não ensinam a bater na mulher. Eles ensinam para os homens a curar, a fazer roça, a escolher uma terra boa, escolher madeira boa para fazer casa, a tirar palha, cortar o karanã. É isso que os nossos avós e os nossos pais ensinam. Isso é cultura dos homens”, explica.
Na relação entre o masculino e o feminino ela aponta regras sociais que revelam as especificidades culturais. “Quando a gente vai fazer farinha, o homem não pode pegar a massa, quem pega a massa da mandioca que a gente acabou de ralar é a mulher. Se ele pegar naquela massa mais tarde vai dar problema para ele. E as mulheres também não podem fazer o que os homens fazem. Então, nós temos práticas determinadas a fazer conforme a nossa regra. Nenhuma vez em nenhum lugar eu vi que a regra do homem indígena é bater em uma mulher, e nem da mulher bater no homem indígena. Existe regra do que a mulher vai aprender a fazer e do que o homem vai aprender a fazer. A mulher vai aprender a plantar roça, a escolher sementes, aprender a fazer beiju, aprender a fazer farinha, essas coisas. E o homem a caça, e outras coisas”.
“Rodas de conversas devem ser realizadas com homens e mulheres. É papel da sociedade se conscientizar que essa violência não é da nossa cultura. A gente não quer que os nossos filhos e que ninguém passe por essa situação complicada, que não vai prejudicar só a mulher, vai prejudicar o homem também”.
A riqueza da diversidade de culturas indígenas para Elizângela não legitima a violência ou a opressão entre homens e mulheres, ou entre os diferentes gêneros. “Em nenhum momento essa cultura de apanhar ou bater, falar palavrão, isso não é ensinado por nossos antepassados. Eu coloco isso porque eu vejo que nós aprendemos muita coisa do mundo ocidental. Pegar a cultura do outro e botar no meio da nossa cultura. Eu digo ‘não é nosso’. A bebida que a mulher prepara tem todo um segredo, um saber possuído por aquele povo, por aquela cultura. É totalmente diferente o que a gente faz. O que os nossos antepassados ensinaram para nós é totalmente diferente do mundo ocidental”, faz a distinção.
Ela conta que as plantas medicinais ou remédios da mata, chamada de medicina ou ciência tradicional é determinante para frear os comportamentos agressivos e violentos. “Tem plantas para serem usadas para que este homem não se torne ciumento, como diz na cultura da Língua Portuguesa. Então, a gente também tem plantas medicinais que a gente pode usar, mas tudo isso é ensinado no momento que você faz o seu Kariamã. Por isso que algumas mulheres indígenas que moram na cidade acabam sofrendo algum tipo de violência. Morando na cidade ela não faz todo aquele ritual de benzimento, no nascimento, no momento da primeira menstruação, no momento da primeira gravidez. A cultura indígena nunca sai da gente. A gente precisa aprender com as nossas mães e com os nossos pais”.
Elizângela revela como o processo de colonização impactou o comportamento de muitos indígenas e que o resgate dos saberes é necessário para o Bem Viver. “O que é bom a gente não deve esquecer. A gente pode usar as plantas para uma pessoa que está brava com você. A gente não colocou na cartilha, mas a gente fala para as mulheres fazerem o medicamento indígena para que possa ajudar. Tem pessoas tão ligadas com a cultura ocidental que, às vezes, não consegue mais fazer aquele remédio, aquele chá conforme a cultura. O que a gente vem falando muito também”.
Na atualidade muitas violências são estruturais e afetam as sociedades indígenas e não indígenas: comuns a todas as mulheres. “Vocês mulheres brancas e nós, mulheres indígenas, como estamos no mesmo mundo temos os mesmos problemas sociais, por isso a gente precisa se unir. São as mulheres que também estão na linha de frente dessa pandemia. São as mulheres que estão cuidando da família. As mulheres precisam se fortalecer”, enfatiza Elizângela Baré.
*A série do Portal Catarinas Filhas da Terra: Mulheres indígenas em luta contra a pandemia Covid-19 irá publicar textos que irão abordar o contexto de como as mulheres indígenas estão vivendo na atualidade e de que forma a pandemia de coronavírus vem afetando o cotidiano dos povos indígenas. Acompanhe nossas postagens quinzenais e conheça o que as mulheres indígenas têm a dizer.
Equipe: Vandreza Amante (jornalista), Inara Fonseca (jornalista), Paula Guimarães (jornalista) e Pietra Dolamita Kuawa Apurinã (conselho editorial).