Filhas da Terra: a codeputada Chirley Pankará fala como atuar em um governo genocida
Neste #AgostoIndígena os Povos Indígenas, mais uma vez, uniram-se em debates, seminários e diálogos que acontecem pelas redes sociais, em uma proposta de organização coletiva, para dar visibilidade às questões urgentes e sensibilizar a sociedade. Desde 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas, diferentes temas foram abordados como mudanças climáticas, alimentação, arte, cultura, além de ações contra a pandemia de Covid-19.
Enquanto o Brasil chega a recordes históricos com mais de 3,5 milhões de casos e 112 mil mortos em razão do coronavírus, entre os indígenas especificamente são 26.615 casos confirmados, 700 mortes, em 155 diferentes povos afetados, segundo boletim de 21/08 da Plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus (Covid-19) no Brasil.
Trabalhando nas questões coletivas Chirley Pankará é uma mulher indígena, mãe, ativista e codeputada da Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) pelo PSOL. Há 22 anos foi morar em São Paulo formada em Técnico em Magistério. A partir de 1998 atuou como empregada doméstica, diarista, e dedicou-se à maternidade. Após os 30 anos cursou Pedagogia e Teatro, e trabalhou focada nas questões ambientais por meio da Arte e da Educação. Participou do Observatório da Educação Indígena de acordo com a Lei 11.645/2008 que prevê o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígenas. Hoje, é mestra em Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC).
Militante e articuladora do Acampamento Terra Livre já visitou vários países para dar visibilidades às questões indígenas como a França, o México, esteve na Conferência Global de Mulheres Indígenas no Peru, no Encontro das Mulheres Indígenas na Guatemala, na Colômbia, e na Suíça, onde se posicionou enquanto mulher parlamentar indígena, entre outras participações.
O território do Povo Pankará, segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), está atualmente localizado na região da Serra do Arapuá, município de Carnaubeira da Penha, sertão do semi-árido pernambucano, na mesorregião do São Francisco, pertencendo à microrregião de Itaparica. O grupo está em processo de territorialização, portanto, a auto-identificação como indígena está em curso para muitas famílias que habitam a Serra, dinamizado em todos os aspectos da vida social, política e cultural do grupo.
Em entrevista ao Catarinas, Chirley Pankará falou que desde 1940 o Povo Pankará está mobilizado pelo reconhecimento da etnicidade, uma realidade vivida por muitos Povos Indígenas do Nordeste, a primeira região do país a ser impactada pelo projeto genocida de colonização.
CATARINAS – Estamos vendo o projeto político de um governo que tem se mostrado genocida. Como é para você atuar nesse momento político? Quais os desafios encontrados?
Atuar nesse momento tem sido muito difícil, mas tem sido necessário para que a gente continue falando por nós mesmos. E tendo essa representatividade dentro desses espaços que sempre foram fechados para os excluídos dessa sociedade racista e machista.
E continua cada dia pior a situação dos povos indígenas neste território, que antes da colonização era ocupado somente por Povos Indígenas, que hoje é denominado Brasil.
Dentro da política, que é um espaço cheios de conflitos, um ano que a Covid-19 se alastra de Norte a Sul do país, os retrocessos não param e aumenta as negligências na defesa dos Povos Indígenas. Se manter neste espaço é um ato de sobrevivência diária, o que nos fortalece é saber da possibilidade de oportunidade de falar aos Povos Indígenas.
Precisamos estar atentos e sermos cuidadosos para contribuir de fato com o que interessa a nós. Quando pensamos que sanamos um problema, outros já estão sendo criados. Tentam nos silenciar para nos tomar os direitos básicos. Vivemos uma necropolítica instaurada neste país. São 520 anos de lutas e resistências para existir e manter nossos costumes e direitos territoriais, de educação, saúde e da nossa própria cosmopolítica.
CATARINAS – Como parlamentar, como você avalia o seu Mandato Coletivo? De que maneira esta proposta vem contribuindo com a sociedade?
Com tantos desafios enfrentados eu tenho participado do Mandato Coletivo, com a nossa representação como Codeputada Estadual na luta por direitos, para que tenha o alcance das necessidades dos nossos povos, fazendo valer as políticas públicas direcionadas aos Povos Indígenas do Estado de São Paulo. Ainda temos muito a ser feito, a demanda é muito grande e são muitos os retrocessos, mas ainda assim, está tudo se encaminhando para o bem viver dos nossos povos.
É uma oportunidade de ocuparmos esses espaços e falarmos por nós mesmos, com uma política que não venha de fora para dentro, mas sim de dentro para fora.
Essa representação é parte do primeiro Mandato Coletivo/PSOL no Estado de São Paulo, e eu a primeira codeputada nesse espaço. Tenho levado vozes e construído um ambiente para acolher os demais parentes, sempre levando em consideração que não estou lá pensando por mim mesma e, sim, por uma coletividade existente no estado. Tenho autonomia para falar enquanto codeputada dentro da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP), construindo PLs-Projetos de Lei, ofícios, audiências e tudo que as bases necessitarem para garantir direitos. Consultar a diversidade de Povos Indígenas é fundamental e nunca devemos nos esquecer disso.
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Me adaptar a um Mandato Coletivo foi difícil no sentido das burocracias e das demais pessoas que não estão no mandato e não aderem à nossa causa. Mas tenho como base de vida a coletividade, e ser da coletividade. Ter nascido nesse contexto coletivo tem me ajudado a compreender como sobreviver e fazer valer nossos direitos. Fomos eleitos 9 codeputades. Logo no início saiu uma por questões particulares, ficamos em 8 e, hoje, saem 3 para a pré-candidaturas ao município, e ficaremos em 5 codeputadas, levando as pautas. Temos várias reuniões no mandato para afinar o diálogo, nos colocamos solidários as pautas dos outros, visto que, são pautas justas e vem de bases.
CATARINAS – O movimento de mulheres indígenas vem se fortalecendo em várias frente de atuação. Por que é importante ter mulheres indígenas na política?
Ser mulher nesse país já é um tanto desafiador, imagine uma mulher indígena na política, a primeira a entrar na ALESP dentro de uma mandato inovador e uma diversidade de pautas. Nós, mulheres indígenas, que sempre fomos vistas como frágeis, agora ocupamos espaços ditos de poder. Somos nós as mulheres indígenas que mantemos o equilíbrio da natureza, somos forças em nossas bases. A literatura tem nos visto por anos como frágeis, mas estamos aqui para dizer que somos a força, e não estou trazendo aqui o feminismo ocidental, pois o que queremos é andar ao lado dos homens, sermos reconhecidas pela capacidade de lutar e não deixar ninguém para trás. A força vem da união de andarmos juntes, nem na frente, nem atrás.
CATARINAS – O que seria necessário para que as estruturas de poder fossem descolonizadas e antirracistas?
Para que haja um diálogo antirracista e decolonial as pessoas precisam entender a importância da presença indígena neste País, precisam parar de nos limitar e nos dividir. Antes da chegada dos colonizadores já estávamos aqui com nossa cultura e cuidando dos bens naturais, transmitindo saberes de geração a geração. E se hoje continuamos com nossa cultura viva, devemos ser entendidos e respeitados, não perdemos identidade por ocupar universidades e espaços políticos. Fomos bem instruídos com nossos mais velhos a caminhar com sabedoria. Pensar que por estarmos nesses espaços perdemos a cultura é um tanto colonizador. Quando recebemos xingamentos e deslegitimação por estamos nesses espaços é racismo, tanto nas cidades como nas bases somos vítimas de racismo e da menta colonizadora, por pessoas que querem impor seus valores e nos dizer como e o que devemos fazer.
Em todos os âmbitos sofremos essa tentativa de apagamento. Este projeto genocida que vem desde a invasão deste país.
CATARINAS – Como está sendo o monitoramento do Covid-19 nas aldeias e nos centros urbanos? Há especificidades de ação nesses diferentes contextos? Quais as ações realizadas?
Quando deu início a pandemia muitas políticas públicas foram feitas. Aqui pelo mandato foi enviado ofício aos órgãos governamentais como FUNAI- Fundação Nacional do Índio, SESAI-Secretaria da Saúde Indígena, foi protocolado um Projeto de Lei Emergencial em defesa dos Povos Indígenas durante a pandemia.
Foram feitas campanhas de arrecadação de alimentos, instrução da chegada desses alimentos até as comunidades,campanhas de arrecadação de cobertores novos e máscaras, distribuídas entre os Povos Indígenas que estão dentro das aldeias, bem como para os Povos Indígenas que estão em comunidades em contextos urbanos. No atendimento foi dada ênfase aos Povos Indígenas do estado de São Paulo, independente se estão nas aldeias ou fora delas.
As próprias lideranças de cada território têm feito um esforço próprio de cuidado com a saída dos indígenas para a cidade e quem está na cidade evita ir às aldeias. Toda essa orientação é feita pelos respectivos povos que vivem no local, se precisar sair, orientam-se pelas medidas protetivas para que a pandemia não se alastre na comunidade.
Além de muitos terem doenças preexistentes, o modo de viver coletivo faz agravar a situação, pois sempre estamos em contato um com o outro e se alguém contrair o vírus a proliferação é rápida.
Por isso, muitas orientações são feitas nesse cuidado para salvar vidas.
CATARINAS – Com o aumento do número de casos de Covid-19 entre indígenas em algumas regiões a perda anciãos e lideranças se tornou uma realidade. Quais são as preocupações atuais?
A realidade do Estado de São Paulo é cheio de especificidades, são muitas etnias, muitos que vivem em contexto urbano. Sabemos que todo esse território é nosso e quem fez essa divisão foi o não indígena, que fez arranha-céus sob a memória dos nossos ancestrais. A cidade foi engolindo nossos territórios e, hoje, vivemos essa situação.
Nos negam direitos por considerarem que não estamos em nossos territórios.
Muitos dos nossos mais velhos partiram por conta da negligência e falta de cuidado institucional contra a pandemia, que se alastrou levando varias vidas. Os mais velhos são nossas fontes do saber, são eles que nos orientam. Perder nossos anciões é muito entristecedor e lamentamos muito.
Enquanto mulher indígena, mãe, doutoranda, educadora, escritora e codeputada, tenho o comprometimento de cuidar do bem viver dos nossos povos, em todos esses espaços, levando a memória dos nossos ancestrais e na luta para efetivação de políticas públicas em defesa dos nossos direitos. Não é nada fácil, visto que estamos em um desgoverno que só nos ataca, mas sempre fomos força e seremos força. Resistir para existir é uma meta que não deixarei de cumprir jamais, pois estar nesses espaços só valerá a pena de for para lutar pelos nossos direitos, que são tão negados e invisibilizados.
Salve os Encantos de luz!
*A série do Portal Catarinas Filhas da Terra: Mulheres indígenas em luta contra a pandemia Covid-19 irá publicar textos que irão abordar o contexto de como as mulheres indígenas estão vivendo na atualidade e de que forma a pandemia de coronavírus vem afetando o cotidiano dos povos indígenas. Acompanhe nossas postagens quinzenais e conheça o que as mulheres indígenas têm a dizer.
Equipe: Vandreza Amante (jornalista), Inara Fonseca (jornalista), Paula Guimarães (jornalista) e Pietra Dolamita Kuawa Apurinã (conselho editorial).