A relação saúde-doença para os povos indígenas perpassa um emaranhado de regras sociais, comportamentos e relações culturais que fundamentam a cosmologia de cada povo, de maneira diversa. Dentro desse contexto, o tratamento de qualquer doença pode ter especificidades de acordo com cada indivíduo, por meio de um sistema coletivo de cura pela tradição.

Por outro lado, no Brasil, a institucionalização da saúde indígena é regida pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), de responsabilidade federal por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), vinculada ao Ministério da Saúde. Em todas as regiões há o trabalho de profissionais capacitados em rede atuando com medidas preventivas, dando o suporte básico para controle do vírus dentro das aldeias. Porém, com a falta de investimento do governo federal, a resolução de questões urgentes se torna cada vez mais complexa.

Atualmente a Plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus (Covid-19) no Brasil revela, em recente boletim (03/11), que entre os indígenas há 38.343 casos confirmados, 867 mortos em 161 diferentes povos, demonstrando a ampliação do contágio.

Para compreendermos essa relação entre saúde-doença o Portal Catarinas conversou com a estudante de medicina pela Universidade de Brasília (UNB), Sandra Pankararu e com as médicas Miriam Guarani Nhandewa (SP) e Yara Karipuna (AP) que falam sobre a relação entre a Covid-19 e os povos indígenas.

RELAÇÃO SAÚDE-DOENÇA: a cosmovisão do profissional indígena de saúde

Sandra Monteiro de Souza, do Povo Pankararu, é estudante de Medicina pela Universidade de Brasília (UNB), e trabalha com saúde da família. Em seu fazer, destaca a necessidade da compreensão sobre a cosmovisão de cada povo para que a relação saúde-doença possa ser considerada no processo de cura.

Sandra Pankararu, estuda a saúde da família e a saúde coletiva/ Foto: arquivo pessoal

“É importante, antes de tudo, quando falamos de povos indígenas, entender a cosmovisão de lugar, de pertencimento, como nós apresentamos e vivenciamos os ciclos. Seguindo na possibilidade de visualizar o que somos e como percebemos e vivemos o processo de saúde-doença”, relata Sandra Pankararu.

Segundo a entrevistada, a relação dos povos indígenas com o tempo é pautada por parâmetros próprios, por saberes e conhecimentos diferenciados. “A sociedade não indígena pode estar acostumada com um tempo diferente do nosso, onde esse tempo não indígena é tudo dinheiro… capital. A nossa história não pode ser resumida, pois tudo tem um porquê, um ensinamento”, comenta.

Sandrinha Monteiro Pankararu recebeu Menção honrosa no Programa de Iniciação Científica da Faculdade de Medicina (UnB)/ Foto: arquivo pessoal

A estudante ressalta que as relações de cuidado entre indígenas e não indígenas que aliam o conhecimento em prol da coletividade podem trazer benefícios para todos, mas há um diferencial quando o profissional da saúde é indígena. “A medicina indígena Pankararu é muito importante, aliada à empatia da medicina ocidental. Somos indígenas antes de sermos profissionais, entendemos e compartilhamos a mesma cosmovisão de nosso lugar e vida”, declara.

Sandra Pankararu afirma que a Covid-19 agrava a situação dos povos indígenas, pois além  da doença, há outras preocupações como a falta de assistência e a falta de alimentos. 

RELAÇÃO SAÚDE-DOENÇA: o cuidado e o improviso no atendimento formal à saúde

Miriam Alessandra de Moraes Viegas é médica indígena do Povo Guarani Nhandewa. Ela trabalha no Vale do Ribeira, em Miracatu, São Paulo, e relata que o atendimento à saúde indígena ainda ocorre de forma precária, com pouca estrutura e muito improviso. “Não temos local, então atendemos onde dá, às vezes usamos espaço da escola, outras vezes levamos barraca e atendemos nela. Tudo improvisado”, conta.

A médica indígena Miriam Guarani Nhandewa presta atendimento nas aldeias da região do Vale do Ribeira, em Miracatu, São Paulo/ Foto: arquivo pessoal

Até o momento, na região em que atua, vários casos de Covid-19 foram registrados nas aldeias. “Já perdemos um guerreiro para este vírus cruel. Nossa maior preocupação era exatamente que este vírus chegasse até as aldeias. Uma vez que eles têm cozinha comunitária, a casa geralmente é de um cômodo, com várias pessoas morando junto. Sabíamos que se chegasse seria difícil evitar a propagação em massa. Mas graças a Nhanderu (Deus) temos passado com muitos pacientes assintomáticos ou com sintomas leves”, comenta.

Miriam Alessandra de Moraes Viegas do Povo Guarani Nhandewa/ Foto: arquivo pessoal

A profissional de saúde conta que os indígenas utilizam uma medicina própria, com o uso de plantas medicinais. “Eu não passo nada de medicina tradicional, mas sei que eles usam muito. Até mesmo porque antes de passar comigo eles consultam um pajé, onde é feito a pajelança e feito uma preparação com ervas medicinais. Só depois que o pajé autorizar eles me procuram. E, então, o tratamento é feito com medicamento convencional”, relata a médica.

RELAÇÃO SAÚDE-DOENÇA: a eficácia do uso de plantas medicinais

Yara Ayllyn dos Santos, do Povo Karipuna, trabalha como médica no Hospital Estadual de Oiapoque, no estado do Amapá. Na região, grande parte dos moradores são indígenas e um terço de todo atendimento do hospital são de pacientes indígenas vindos de aldeias ou de áreas urbanas de Oiapoque.

Yara Ayllyn Karipuna, médica indígena/ Foto: arquivo pessoal

A indígena comenta que no início da pandemia as aldeias foram isoladas, mas após a reabertura todas foram contaminadas. Para ela, a quantidade de profissionais atuando na área ainda não supre a demanda local: o hospital é único na região, e não há Unidade Básica de Saúde (UBS) e Unidade de Pronto Atendimento (UPA).

“O hospital recebeu poucos pacientes indígenas, bem menos que nós profissionais da saúde esperávamos, levando em conta o número populacional. Entrei nas aldeias para ver como estavam de saúde e como estavam lidando com o vírus. Conversei com alguns familiares e conhecidos e descobri que eles, desde o início da pandemia, tomavam Quina. Estudando, descobri que era o princípio ativo da planta ao qual tratam também malária”, relata.

Yara Ayllyn Karipuna em visita aos indígenas moradores do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, Unidade de Conservação entre Amapá e Pará/ Foto: arquivo pessoal

O Hospital Estadual de Oiapoque mantém uma ala para infectados pela Covid-19 com internações diárias de pacientes em estado grave. A médica conta que os indígenas têm dificuldades em manter as recomendações de evitar aglomerações e usar máscaras.

“A população indígena acredita que o uso das plantas medicinais amenizam a infecção. O percurso da doença nas terras indígenas foi responsável pelos poucos casos graves que tivemos e, isso, de certa forma acabou dando muita confiança que a doença pode ser combatida com as ervas, deixando-os mais despreocupados”, diz e médica.

Ela alerta para a permanência de sintomas após os pacientes receberem o diagnóstico negativo para a doença, fase chamada de síndrome pós-Covid, pois ainda é necessário o acompanhamento de saúde em cada caso.

“Minha preocupação atual são os pacientes no pós-Covid ao qual permanecem com sintomas como mialgia (dor muscular), cefaleia (dor de cabeça), astenia (fraqueza) dentre outros. Assim como o Sistema Único de Saúde, por meio das várias Unidades Básicas de Saúde, não estavam preparados para a pandemia, a Saúde Indígena também não estava. Esses pacientes ainda não têm um plano de intervenção ou de acompanhamento dentro das áreas indígenas. Na nossa região ainda não tem. Isso me preocupa muito, pois os indígenas em geral não são pacientes queixosos ou que procuram médico, e isso pode implicar em permanecer em casa sem assistência necessária”, ressalta.

*A série do Portal Catarinas Filhas da Terra: Mulheres indígenas em luta contra a pandemia Covid-19 irá publicar textos que irão abordar o contexto de como as mulheres indígenas estão vivendo na atualidade e de que forma a pandemia de coronavírus vem afetando o cotidiano dos povos indígenas. Acompanhe nossas postagens quinzenais e conheça o que as mulheres indígenas têm a dizer.

Equipe: Vandreza Amante (jornalista), Inara Fonseca (jornalista), Paula Guimarães (jornalista) e Pietra Dolamita Kuawa Apurinã (conselho editorial).

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Vandreza Amante

    Jornalista feminista, antirracista e descolonial atua com foco nos olhares das mulheres indígenas. A cada dia se descobr...

Últimas