Eu, como muitas pesquisadoras brasileiras, fui intensamente marcada pela obra da antropóloga indiana Veena Das1, que tem sido de grande influência em pesquisas etnográficas realizadas no país em cenários de violência, precariedade e sofrimento social. Seus textos, conceitos e propostas metodológicas possibilitaram voltar o olhar às costuras da vida ordinária e a generificação do trabalho do luto (Das, 2020).
Pensar a vivência do dia a dia, da descida ao ordinário, como uma maneira de reabitar um espaço de vida destruído por um “evento crítico” disruptivo, refletir sobre linguagens de dor e sofrimento e as negociações com o silêncio, discutir memória e testemunho levando em conta que a lembrança do ocorrido é carregada no corpo e se imiscui nas relações interpessoais no tempo presente como um “conhecimento venenoso” a partir da leitura de suas etnografias, trouxe novas perspectivas e levantou questões éticas nas interlocuções de pesquisas antropológicas.
Estas, por sua vez, permitem a compreensão das diversas maneiras de agenciamento que as pessoas corporificam em meio à vulnerabilização de seus corpos e ao destroçamento de seus mundos.
Para Das, a morte de uma vida revela a potência de novas formas de vida, por meio de uma reconstrução na tessitura da vida ordinária.
No filme “Ainda Estou Aqui” dirigido por Walter Salles e indicado ao Oscar nas categorias de Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e também na categoria de Melhor Atriz pela incrível e elogiada atuação de Fernanda Torres como Eunice Paiva, o diretor retrata, por meio da adaptação ao cinema do livro com o mesmo título do escrito pelo filho de Eunice e Rubens Paiva, Marcelo Rubens Paiva, a descida ao ordinário da protagonista provocada por um “evento crítico” e pelo esforço em reabitar o mundo destruído, em um gesto de luto (Das, 2020).
A família é composta pelos filhos: Veroca, Nalu, Eliana, Raul Ryff, Marcelo Rubens, além do casal Eunice e Rubens. Eles vivem momentos felizes que serão lembrados, de afeto, entre amigos. Eles sabem que são dias dignos de registro, feitos por fotografias e filmagens. Também tem conhecimento da importância da memória.
Quando sua vida pacífica e harmoniosa, muito bem mostrada na primeira metade do filme, é interrompida com o “desaparecimento” do marido promovido pelo regime da ditadura militar que governou o país entre 1964 à 1985 – após levá-lo para interrogatório –, vemos a destruição da vida, e do mundo, como eles conheciam.
Eunice tem de enfrentar questões burocráticas que a vida habitual impõe diante do indizível que circundava como uma “atmosfera de violência”: o fato que Rubens, seu companheiro de vida e pai dos seus filhos, estava morto.
Não é que a ditadura militar não atravessasse a família Paiva antes daquele episódio, existir sob um regime totalitário é violento e opressivo – embora para tantos outros tenha sido muito mais, como mostra-nos, por exemplo, o Relatório Figueiredo, que documenta a história de violação dos direitos e do genocídio praticado contra povos indígenas no Brasil (que incluía instrumentalização da tortura, do estupro e da escravização).
Ou ainda o filme “Temporada de Caça” da cineasta lésbica Rita Moreira, que documenta narrativas de violência contra pessoas LGBTQIA+ no país durante a década de 1980, e também a perseguição, remoção e tortura de famílias inteiras moradores de favelas no Rio de Janeiro ou a intensa repressão policial à população negra e dissidentes políticos durante o período.
A morte de Rubens provocada pela ditadura militar é o “evento crítico” (Das, 2020) que arruína o mundo de Eunice, a protagonista do filme dirigido por Walter Salles. A vida como ela conhecia não existe mais.
Existir no mundo devastado, destruído pelo horror e pela violência “na intenção de habitá-lo outra vez, em um gesto de luto” (Das, 2020), é um movimento “um tanto monocórdico”, para citar a crítica do jornal francês Le Monde, assinada por Jacques Mandelbaum, sobre a atuação da Fernanda Torres. Embora ele tenha dito isso para censurar a atuação irretocável da Fernanda como Eunice, penso que ele pode ter tido essa sensação porque esse existir está no mesmo tom, uma vez que se reitera, é uma rotina.
A vida precisa acontecer, e ela se desenrola dia após dia, através da repetição. Eunice vai ao banco, vende a casa, muda-se, cuida dos filhos, estuda, trabalha – cenas cuidadosamente montadas de pequenos gestos diários que caracterizam a sobrevivência.
O que vemos adiante no filme é Eunice descendo ao cotidiano. Para Veena Das (2020), esse é um movimento que não ocorre mediante a transcendência, atos heroicos ou extraordinários, mas da repetição cotidiana, da vivência do ordinário e do dia a dia. Para a antropóloga, “[é] na tessitura do dia a dia que o trauma é absorvido: em outras palavras, sugiro que a autocriação no registro cotidiano é uma cuidadosa reagregação da vida – um engajamento concreto com as tarefas de refazer […]” (Das, 2020, p. 289).
Eunice Paiva demonstra como testemunhas de “eventos críticos” de horror e violência no Brasil tem reconstruído suas vidas descendo ao cotidiano construindo cenários nos quais os sentidos de vida são costurados pela perda comum e envolvem formas de agenciamento.
Tenho observado a partir da minha das minhas pesquisas envolvendo violência de gênero (especificamente, o estupro) que, para mulheres, isso pode significar se lançar aos estudos e, por vezes, engajar-se em lutas políticas (Andrade, 2024).
Aqui, a teoria da Das encontra o pensamento de Judith Butler (2019), para quem há potencialidade política no “luto”, na medida que, ao transformá-lo e se relacionar com o sofrimento, é possível pensar na construção de comunidades imbricadas pela perda e dor comum, mas também pela possibilidade de vulnerabilidade do encontro com o outro. O “luto” torna-se categoria êmica com sentido de ação: lutar (Butler, 2019).
Há um aspecto do sentido de cotidiano que é particular ao nosso contexto brasileiro, e escapa à teorização de Das sobre a experiência de se refazer através do ordinário, realizada no cenário da/pós Partição, na Índia: as maneiras em que a política – e as mobilizações em causas conduzidas, uma vez que foram marcadas por “eventos críticos” – está presente na existência do dia a dia da população, em especial de mulheres e outras minorias políticas.
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O que proponho é que, para algumas pessoas, o cotidiano e o ordinário são investidos de um caráter político indissociável – e que, o sentido de vivência do ordinário deve abranger esse aspecto. No Brasil, a luta e a mobilização política, da colonização ao período da ditadura militar, durante a redemocratização e atualmente no século 21, sobretudo, diante do avanço da extrema direita nos últimos anos, têm sido parte da existência cotidiana de comunidades políticas inteiras, que se agenciam diante de cenários de sofrimento, violência, horror e precariedade.
Através do engajamento em movimentos feminista, indígena, negro, LGBTQIA+, campesinato e sem-terra (dentre outros), mulheres tornam-se lideranças e agentes de mudança social, politizando o pessoal e fazendo da luta parte da sua vivência mais rotineira. As indígenas mulheres foram lideranças importantes da Ocupação da Secretária de Educação do Pará (Seduc) feita por movimentos indígenas, em Belém, realizada entre janeiro e fevereiro de 2025.
Diversos povos indígenas, aliados à professores, mobilizaram-se contra a tentativa do governador Helder Barbalho de extinguir com o ensino presencial em aldeias indígenas e pleitearam pela revogação da Lei 10.820/24, que também prejudicava os professores do ensino estadual em termos de carga horária, gratificações, planos de carreira e aposentadoria no Estado do Pará. A lei, um atentado aos direitos dos povos indígenas e de toda a classe do magistério, foi revogada no dia 12 de fevereiro de 2025, após 30 dias de luta, mobilização e ocupação.
No filme, Eunice desce ao cotidiano, reconstrói sua vida no esforço de reabitar um mundo destruído pelo horror da violência, mas também se entrelaça na luta política em busca da memória de Rubens Paiva, do reconhecimento da sua morte pelo Estado brasileiro, e dos direitos indígenas a partir da advocacia que praticava.
Assim como ela, são também mulheres, as principais lideranças de movimentos de familiares de vítimas de violência estatal em dias atuais, já no período democrático, que buscam do Estado brasileiro o reconhecimento da memória dos seus filhos assassinados pela violenta polícia do país.
Existe um antes e um depois daquele dia, e todas as relações são afetadas. Quando Eunice segura o choro na sorveteria ao sentir no corpo a memória do sofrimento imposto pela destruição da normalidade do seu mundo, Fernanda Torres nos convida a sentir aquela dor.
“Ainda Estou Aqui” e a performance sensível de Fernanda nos demandam a (re)conhecer da dor e do sofrimento dos sobreviventes da ditadura militar que, dia após dia, reconstruíram e seguiram vivendo suas vidas e lutando pelo direito à memória. Sentir esse sofrimento, permitindo-nos ser marcadas por ele, é um convite que o filme nos faz.
“O que é recolher os pedaços e viver nesse lugar de devastação?” é uma pergunta feita por Veena Das (2020), ao desenvolver uma noção de fragmento relacionada à ideia de perda, a qual tem um sentido de habitar o mundo dilacerado em um aceno ao luto. A atuação de Fernanda Torres é tão primorosa, e o filme tão poderoso, justamente por retratarem tão bem esses fragmentos de perda, luto, sofrimento e silêncio que possibilitaram à Eunice Paiva a construção de novas formas de vida.
A interlocutora de Veena Das é Asha, seu cotidiano consistia na reestruturação do dia a dia, de uma rotina com cuidados da casa, das crianças e das relações no tempo presente, de preparo de alimentação, construindo novos modos de reabitar o mundo destruído pela violência. Eunice realizou semelhante reestruturação na sua rotina diária, formou-se em direito, tornou-se advogada e foi atuante das casas dos direitos dos povos indígenas, combatendo a política indigenista da ditadura.
Vinte e cinco anos depois, Eunice Paiva conseguiu que o Estado brasileiro reconhecesse a morte de Rubens provocada pelo regime ditatorial, emitindo seu atestado de óbito: pela memória, para que nunca mais aconteça. Tornou-se testemunha da ditadura militar no Brasil.
Testemunha aqui entendida através da obra de Das (2020), como quem foi atravessada por ela, cuja existência foi marcada e um sofrimento foi imposto: os olhos não apenas como o órgão que vê, mas também como órgão que chora (Das, 2020, p. 97). E, no entanto, não vemos Eunice chorar em “Ainda Estou Aqui”.
A “violência originária” – e o terror da ditadura militar – se infiltra(m) no cotidiano como uma “atmosfera”, tanto estar no mundo quanto se relacionar com os outros é transversalizado. Rubens ainda está aqui, lá, não só porque lutou-se pela sua memória, mas porque a memória de sua vida permanece com os que sobreviveram. Mesmo diante de uma Eunice acometida por Alzheimer, doença que destrói até as lembranças mais preciosas daqueles que sofrem com ela, a memória do “trauma” manifesta-se no tempo presente.
Ao final, Eunice é interpretada pela magnífica Fernanda Montenegro. Com poucos minutos em cena, tendo silêncio enquanto linguagem, ela nos mostra a inscrição do sofrimento no corpo e a presença da lembrança da violência naquele momento. Diante de uma violência inenarrável, o silêncio torna-se o único meio de expressão da dor. Mas o silêncio não deve ser compreendido como ausência de linguagem, antes como uma linguagem própria ao sofrimento.
Acredito que seja o retrato dessa descida ao cotidiano de Eunice, da reconstrução da vida, das formas de reabitar o mundo devastado, das linguagens construídas para enunciar a dor e o sofrimento, sobretudo dos silêncios, tão bem traduzida na atuação de Fernanda Torres, que dão conta do caráter de indizível e inenarrável, assim como das tramas entre “luto” e “luta”, que concedem ao filme o que ele tem de mais compassivo, atento e precioso: um enquadramento da reconstrução do mundo pela vivência da vida ordinária.
A história de Eunice Paiva, e de tantas outras testemunhas de “eventos críticos”, têm demonstrado que, ao menos no Brasil, a luta política tem feito parte da vida cotidiana. E que é nesse aspecto mais rotineiro e ordinário de viver a vida, que as sobreviventes têm dado sentido às suas existências em meio ao horror e a violência.
Nota de rodapé
1 – Veena Das é uma antropóloga indiana, cujas etnografias abordam a maneira como a Partição, na Índia, atravessou a vida de suas interlocutoras. No Brasil, sua obra tem sido difundida através da publicação da tradução de seus livros “Vida e palavras: A violência e sua descida ao ordinário” em 2020 e “Texturas do ordinário: Fazendo antropologia à luz de Wittgenstein” (2024), ambas pela editora Unifesp.
Referências bibliográficas
ANDRADE, Mailô de Menezes Vieira. Os sentidos do estupro na Amazônia: tecendo significados, disputando narrativas. 2024. 215 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2024. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/23290
BUTLER, Judith. Vidas Precárias: O poder da violência e do luto. Editora Autêntica, Belo Horizonte, 2019.
Das, Veena. Vida e palavras: A violência e sua descida ao ordinário. Editora Unifesp, São Paulo, 2020.