Fernanda Torres e o Oscar: o que é ser uma atriz no Sul Global?
A trajetória de Fernanda Torres e do filme que temos acompanhado deixa visível um sistema falho, no qual apenas poucos chegarão ao topo.
Atrizes recebem bastante atenção da mídia e das redes sociais. Se perguntarmos a qualquer pessoa, muito provavelmente esta saiba de cor o nome de alguma atriz e mais raramente poderá citar uma geógrafa, engenheira civil ou desenvolvedora de softwares. Isso poderia dar a impressão de ser uma profissão conhecida do público: afinal, quase todo mundo já viu uma atriz fazendo seu trabalho, ao menos na televisão ou no cinema (muito menos frequentemente no teatro, mas acontece).
Porém, em nossa cultura, cada vez menos atrizes ganham visibilidade pelo seu trabalho de atuação mas sim, pelos motivos mais torpes, como novos cortes de cabelo, onde passam as férias, se trocam de namorado/a ou quando se envolvem em alguma treta que possa render alguma repercussão e alimentar a quantidade de likes, coraçõezinhos ou comentários do dia. Do ofício, da função social que carregam, da profissão milenar que as sustenta, muito pouco se pensa.
Há muito que a percepção do que é uma atriz sofre uma transformação gradual e vê suas bases se transformarem dentro do capitalismo e da indústria da cultura de massa.
Cada vez menos é vivenciada como um ofício que requer labor, estudo e dedicação. Tem a ver com ter o rosto ou o corpo “correto”, com bom manejo da imagem nas redes sociais, com certa vocação para vendas, muitas vezes a possibilidade de viver em um grande centro e o estômago para vivenciar um mercado de trabalho predatório, competitivo e precário. Mercado esse que objetifica os corpos e te transforma em um produto na prateleira a ser consumido de acordo com a moda do momento.
É muito bonito ver a atenção e a festa que Fernanda Torres tem recebido nos últimos tempos, em virtude da trajetória realizada junto ao filme “Ainda estou aqui”.
Por mais que esta atenção esteja voltada às indicações e premiações do mainstream mundial do cinema, como o Globo de Ouro ou o Oscar, as declarações de Fernanda que têm saído nas mídias passam por explicar o que é uma atriz em seu ofício e ressaltar que este acontecimento específico de ser premiada e indicada neste contexto é quase uma experiência de outro planeta para uma artista do Sul Global.
O realismo e o respeito que ela imprime em suas declarações demonstram a maturidade de uma atriz com mais de sessenta anos de idade que, mesmo tendo sempre vivenciado um contexto privilegiado no Brasil, esbanja consciência de classe e de uma visão realista sobre a profissão. Em um post recente no Instagram da @revistatpm, eles recuperam uma entrevista que Fernanda deu em 2017 em que ela declara que “a profissão de ator é um eterno recomeçar e você fica muito exposto às mudanças climáticas do país, da economia, da política e do mundo. É seu dever se relacionar com essas mudanças, propor diálogo, produzir pensamento, saídas. A cultura é o reflexo do próprio país”.
Fernanda resiste a embarcar no glamour e na ilusão deste mercado (sim, estas premiações nada têm a ver com merecimento e, sim, com intensas campanhas de divulgação e lobby internacional no meio cinematográfico).
A atriz ressalta a poeira do chão da profissão: enaltece a pessoa que foi Eunice Paiva, a pessoa que interpreta ou a importância de um filme como “Ainda estou aqui” estar ganhando toda essa visibilidade em um momento em que muitas pessoas declaram em alto e bom tom saudades do tempo da ditadura militar no Brasil.
Temos centenas de atrizes em Santa Catarina hoje, assim como temos uma produção cinematográfica que, vez em quando, consegue furar a falta de financiamento e apoio e chegar aos cinemas comerciais, como o filme “Alegria do amor”, de Márcia Paraíso, em cartaz nos cinemas neste mês de fevereiro em Florianópolis. Temos uma trabalhadora e criadora do audiovisual catarinense que participa de instâncias federais, como Cíntia Domit Bittar que deu seu apoio direto à indicação do filme “Ainda estou aqui” para ser nosso representante no Oscar, tendo voz e voto em lugares conquistados com muito suor e ranger de dentes do campo da política cultural, ainda mais por mulheres.
Atrizes, diretoras e criadoras do teatro e do cinema que cumprem esta função de se relacionar com seu contexto, produzir diálogos e propor à sociedade novos mundos existem, hoje, em Santa Catarina e estão aqui. Infelizmente a visibilidade do grande público só acontece quando uma de nós chega ao “patamar mais alto” da carreira, uma ilusão nociva nos dias de hoje: para que uma atriz possa chegar a este lugar, centenas e milhares viveram, morreram, desistiram de suas carreiras, enfrentaram a objetificação e a precariedade todos os dias para dar vida a personagens e histórias que serão pouco conhecidas do grande público. Mas nem por isso têm menos valor ou devem ser menos respeitadas.
A trajetória de Fernanda Torres e do filme que temos acompanhado com esperança e alegria, também deixa visível um sistema falho, no qual apenas poucos chegarão ao topo (e deverão ainda competir em frente às câmeras), enquanto milhares se afundam na obscuridade de um sonho impossível. Foi bonito ver Fernanda ganhar o Globo de Ouro.
Porém mais bonito ainda é o dia em que essa régua for substituída por elementos como a importância de investir recursos financeiros na arte e na cultura também fora dos grandes centros e primar pela dignidade das trabalhadoras desse setor, que podem também mudar mundos a partir de seus próprios lugares de ação, bem longe da corrida midiática que um Oscar impõe.